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“Crise energética alimentou corrida aos combustíveis fósseis em Moçambique”

Em entrevista ao Esquerda.net, o ambientalista moçambicano Daniel Ribeiro, da Justiça Ambiental, explicou como vários países europeus, mas não só, estão a centrar a sua atenção em África para encontrar uma solução temporária para a crise europeia, em detrimento dos interesses dos povos africanos. Por Mariana Carneiro.

Recentemente, o primeiro-ministro português proferiu declarações que ilustram com clareza os interesses predatórios que, em plena crise energética na Europa, se voltam para Moçambique em busca de uma solução de curto prazo que é devastadora para o povo moçambicano. António Costa afirmou que, se a primeira resposta à crise passa por acelerar a utilização de energias renováveis, na transição, serão necessários “recursos como aqueles em que Moçambique é rico, como o gás natural”. “O início da exploração de gás natural em Moçambique não podia vir em melhor altura para quem é importador, como somos quase todos os países da União Europeia”, congratulou o governante português.

O Esquerda.net entrevistou Daniel Ribeiro, membro da organização não governamental Justiça Ambientali, para perceber por que razão, ao contrário do que acontece em relação aos países da União Europeia, ou, melhor dizendo, às elites da União Europeia, o início da exploração de gás não poderia vir em pior altura para o povo moçambicano.

Ainda antes de iniciada a entrevista, o ambientalista explicou a vulnerabilidade climática a que Moçambique está sujeito devido às suas características geográficas. O país conta com extensas terras baixas e planícies aluviais, com 40% da topografia a menos de 200 metros acima do nível do mar; nove das quinze principais bacias hidrográficas da África Austral e 50% do território coberto por rios internacionais; e uma costa litoral longa e sensível à erosão. Em 2000, o país foi atingido pelo primeiro ciclone a registar ventos superiores a 150 km por hora. Em 2019, os ciclones Kenneth e Idai excederam os 200 km por hora. Este último ciclone, de categoria 3, teve um comportamento muito diferente do que tinha vindo a ser observado até então. As alterações climáticas são “uma boa explicação para esse fenómeno”, apontou Daniel Ribeiro.

Os custos diretos e indiretos do Idai e do Kenneth ultrapassaram os 3 mil milhões de dólares. Ora, conforme sublinhou o ambientalista, o valor total estimado das receitas do gás é de 18 a 20 mil milhões de dólares. E 70% desse valor virá apenas depois de 2040. Tendo em conta a inflação, percebemos que os 18 mil milhões de dólares, que só estarão disponíveis daqui a 18 anos, equivalerão a apenas 3,4 mil milhões de dólares em dinheiro atual (a uma taxa de desconto de 10%). Ou seja, a esmagadora maioria do rendimento do gás é eliminado “só com uma época ciclónica má”. “E isto é algo que as pessoas não estão a levar a sério ainda”, lamentou Daniel Ribeiro [Sobre esta matéria, ler o relatório Too late to count: Mozambique’s Offshore Gas Sector]

Já a temperatura da superfície do mar já registou um aumento de cerca de 1.2 ̊C, o que representa uma taxa mais rápida do que em qualquer outra região dos oceanos tropicais. Registos meteorológicos também apontam que a temperatura média da superfície aumentou em 0.6 ̊C entre 1960 a 2006. E as projeções das temperaturas apontam para uma subida entre 2-2.5 ̊C por volta de 2030/40 e de 5-6 ̊C para períodos mais longos.

Reconhecendo que a capacidade do governo de reagir a crises climáticas melhorou, inclusive a nível de fundos, organização e capacidade logística, o ambientalista alertou que Moçambique tem apostado quase exclusivamente na adaptação. Ou seja, em ações para reduzir a vulnerabilidade aos impactos das mudanças climáticas. Já a mitigação, para permitir reduzir as causas das alterações climáticas, tem sido negligenciada.

Sobre as metas que têm vindo a ser negociadas a nível mundial, Daniel Ribeiro defendeu que há um desfasamento “entre o que é permitido e o que é necessário”. Se as metas estipuladas, um cenário de aquecimento de 1.5º a 2º, não são suficientes, a verdade é que nem estas estão a ser cumpridas. No caso de Moçambique, a manter-se o atual ritmo, o aumento ascenderá a 3º ou mais graus e a agricultura deixará de ser viável em muitas zonas.

Neste contexto, é fácil antever as consequências desastrosas da corrida ao gás em África para resolver uma crise europeia, em detrimento dos interesses dos povos africanos. Se os impactos dos projetos que já estavam no terreno, e que ainda não iniciaram a sua fase de exploração, já são dramáticos, o futuro de Moçambique é ainda mais precário mediante os negócios predatórios despoletados com a crise energética resultante da invasão da Ucrânia e da especulação desenfreada pré-existente.

Com a descoberta, em 2006, de reservas significativas de gás em Cabo Delgado, as atenções de verdadeiros gigantes energéticos focaram-se nesta província no norte de Moçambique. A exploração nesta zona ainda não teve início, mas os seus impactos ambientais, económicos, sociais já se fazem sentir. Podes falar um pouco sobre a situação no terreno?

Os impactos são tantos que é difícil saber por onde começar. O sistema económico é baseado em projeções, pelo que assim que foi encontrado o gás e assinados os primeiros contratos, abriu-se uma porta a Moçambique para aceder a vários empréstimos internacionais. O número de estruturas financeiras que estão ligadas ao negócio do gás é muito elevado. Moçambique tornou-se um foco para as estruturas financeiras em redor do mundo. E daí a relação entre combustíveis fósseis e aumento de dívida. Passou a existir um maior e mais fácil acesso a empréstimos internacionais, como aconteceu com os empréstimos ilícitos da Ematum e do ProIndicus. Esses empréstimos foram ilegais e o dinheiro envolvido simplesmente desapareceu. Quando foram descobertos os valores em causa, foi criada uma crise económica. A dívida externa era então de 40% em relação ao PIB, e subiu para 150%. Acresce que 40% a 50% do nosso orçamento do Estado provém de doadores, como o Banco Mundial e a União Europeia. Estamos entre os dez países mais pobres do mundo e muitos dos nossos setores não funcionam sem apoio internacional. E quando os doadores começaram a diminuir o financiamento devido às dívidas ocultas, setores como a educação e a saúde foram afetadas. Isso teve impacto direto na vida das pessoas. Não só a pobreza aumentou como se tornou mais difícil o acesso a bens e serviços básicos.

A outro nível, o problema das terras agravou-se. Normalmente, em Moçambique, quando temos temos influência num determinado local, essa influência é vista como uma ferramenta importante para a Frelimo. É-nos dada uma posição política para que a utilizemos para angariar votos. Esse poder político é depois convertido também em poder económico e na capacidade de fornecer acesso a terra e de retirar terras às comunidades para as entregar a investidores. Quando mais de 70% da população vive da terra e estás a roubar-lhe a terra, estás a tirar-lhe os meios de subsistência. Isso acontece, nomeadamente, através das grandes extensões de agro-indústria, essencialmente plantações. A Portucel [da portuguesa The Navigator Company], por exemplo, está a usurpar grandes extensões de terras comunitárias.

Clicar na imagem para aceder ao mapa:

Tivemos também a criminalização da economia informal. Os garimpeiros informais da zona estavam ligados a indivíduos nacionais e estrangeiros que levavam os rubis ilegalmente para os mercados internacionais. O governo, em vez de formalizar a atividade, criminalizou-a, mandou a força militar para essas zonas, e vendeu as concessões a investidores estrangeiros.

Os garimpeiros, afastados através da força militar, não foram incluídos na transformação destas economias informais. O mesmo aconteceu com o corte ilegal de madeira. Em várias zonas, mas especificamente em Cabo Delgado, as elites ocuparam essas atividades económicas de uma maneira violenta e injusta, excluindo aqueles que dependiam delas para a sua subsistência.

No caso dos projetos de gás, começaram a surgir críticas entre as comunidades, que perante a falta de oportunidades, mobilizaram-se. O governo, muito preocupado em garantir os financiamentos, atuou com muita agressividade. E quando não se aposta numa forma construtiva de lidar com os problemas que a comunidade está a sofrer, só se agravam os problemas.

Foram ainda subestimadas pequenas ações no terreno. Por exemplo, em 2015, existiu a promessa de que iriam dar prioridade às comunidades locais afetadas pelo gás para ocupar postos de trabalho: condutores, cozinheiros… e criar as capacitações necessárias para que as pessoas pudessem desempenhar essas funções. Foram criados os fundos, mas ninguém controlou a corrupção em torno do processo. Quem foi para o terreno listar as pessoas interessadas em ter formação começou a cobrar às comunidades. Essas capacitações depois não aconteceram e, quando os postos de trabalho começaram a aparecer, as comunidades locais não tinham as capacidades para os ocupar. As vagas foram ocupadas por gente de fora.

O projeto de gás criou as condições no terreno para o aumento da frustração, do desespero perante a falta de oportunidades. O governo e as empresas fizeram promessas ridículas, disseram que os projetos de gás iam acabar com a pobreza, criar riqueza para todos, criar trabalho. Para terem um consenso público geral, criaram uma perspetiva sobre o gás que nunca vai ser atingida. Toda a gente tinha expectativas não realistas.

A forma como o governo reagiu foi a de entrar agressivamente pelas comunidades. Suspeitava de tudo e todos. E, ao aumentar a capacidade militar muito rapidamente, deu armas e poder a pessoas que não tinham a formação necessária. A logística do Estado também não estava preparada no momento, existiam problemas na distribuição da comida, atrasos nos salários, o que causou insatisfação entre os militares. Houve muitos erros nesse aspeto. E falta de controlo do abuso de poder por parte dos militares moçambicanos.

Quando houve consciência de todos estes problemas, não existiu a devida reação, porque o projeto não podia atrasar-se. Como o calendário é imposto pelo investidor, automaticamente, estes problemas não podem atrasar o processo. O que acontece é que não se levam estes problemas a sério, não há tempo para mudar, para repensar o processo.

Mesmo agora, começaram a pôr a cerca antes de recolocar as comunidades, e nessas zonas há restrições sobre o que se pode ou não fazer. Mas há falta de entendimento. A comunidade não sabe se pode continuar a abrir machambas, se pode continuar a fazer agricultura naquele espaço. Também não sabe quando vai ser recolocada, porque faltam os terrenos. Existem também restrições devido ao conflito em Cabo Delgado. As pessoas têm medo de voltar para a pesca, pela possibilidade de existirem erros de identificação e serem confundidos com extremistas. Há muito medo, muito receio. Os consultores que vão ao terreno ver como está a situação, por questões de segurança, têm de ir acompanhados de militares. Assim, as comunidades não têm coragem de criticar o Estado, os militares ou o projeto, e parece estar tudo bem. No entanto, os projetos estão ligados a graves abusos dos direitos humanos.

Tem-se tornado mais difícil a denúncia destes abusos?

Existe uma opressão da sociedade civil, de jornalistas e líderes comunitários.

Uma das leis recentemente aprovada pelo governo coloca restrições ao que a sociedade civil pode dizer sobre o terrorismo em Cabo Delgado, e prevê sentença de prisão para quem falar sobre questões que põem em risco as operações militares, por exemplo. Mas o que implica pôr em risco operações militares? Tecnicamente, não podemos falar sobre quase nada que inclua operações militares.

O governo pretende ainda aprovar uma nova lei, que será em breve analisada pela Assembleia da República, para regular a criação, organização e funcionamento das organizações sem fins lucrativos no país. Esta proposta de lei, que já foi aprovada pelo Conselho de Ministros, é um exemplo claro do encolhimento do espaço cívico, pois vários dos seus artigos contrariam as liberdades e direitos consagrados na Constituição da República, e condicionam de forma abusiva a atuação das ONG, tanto nacionais como internacionais. Esta lei, se entrar em vigor, poderá provocar a extinção de inúmeras organizações da sociedade civil, principalmente organizações de base comunitária ou pequenas associações.

O governo está a criar leis para gerar mais opressão e eliminar o espaço da sociedade civil. Como os investidores e parceiros podem revisitar o seu investimento e abandonar os projetos, como foi o caso da Galp, o governo está preocupado em diminuir a influência da sociedade civil e a silenciar as suas críticas.

A indústria está a ser liderada por gigantes multinacionais como a Total, a ExxonMobil e a Eni, mas a verdade é que há muitos outros atores envolvidos. Com a invasão russa da Ucrânia e o aumento do preço dos combustíveis o apetite por investimentos em Moçambique que são ruinosos para o ambiente e para as populações tem aumentado?

O problema de muitos dos investimentos em Moçambique, e em África em geral, é que existe falta de infraestruturas e o custo associado ao transporte e processamento é maior. Antes da invasão da Ucrânia, Moçambique não era tão competitivo, por causa do preço total do investimento. Mas, com a crise da energia, a análise já não é tão baseada só no custo económico, mas também na estabilidade e na menor dependência da Rússia, com a procura de uma maior diversidade dos locais de onde recebem o gás.

Não há dúvida de que o panorama mudou muito. Antes da invasão da Ucrânia, a ExxonMobil, um dos parceiros da Eni, no Norte, estava a ponderar abandonar o projeto de gás em Moçambique. Mas agora isso tudo mudou. O gás africano passou a ser mais competitivo e mais viável. E a crise energética alimentou a corrida aos combustíveis fósseis em Moçambique. Temos atualmente na costa da província de Nampula projetos de exploração de gás. Existe um aumento de interesse de repente.

E a Europa está a investir em infraestrutruras para receber o gás africano. Há um foco em África para resolver esse problema de forma temporária, porque a Europa também já tem planos para a transição energética. Esta é uma solução temporária para dar tempo à Europa de entrar em formas energéticas mais limpas. Muitas empresas estão a pôr todos os benefícios, todos os lucros, logo na fase inicial do projeto, para garantir retorno. E muitos países africanos estão a aceitar ter retornos mais atrasados para garantir que o projeto vai para a frente. Sem aceitar essas condições, os projetos não são viáveis. Empresas como a Total e a Eni não têm confiança na janela de longo prazo, sabem que há apenas uma janela de curto prazo, e estão a transferir muito o risco. Sabem que têm de se preparar para a transição, mas estão a tapar esse buraco.

Há estudos muito interessante que mostram a responsabilidade financeira dos países africanos. Para investir em África, alguém tem de dar garantias da segurança do investimento. E quem está a fazer isso são os próprios países através de acordos bilaterais. São incluídas cláusulas que preveem que os países africanos, como Moçambique, assumem todos os riscos e cobrem as perdas dos investidores em resultado de guerras ou conflitos armados, por exemplo. Por outro lado, estes contratos bilaterais incluem uma cláusula que prevê o mecanismo de Resolução de Litígios Investidor-Estado (ISDS, em inglês) , que favorece as empresas.

Quando analisamos todos os projetos vemos uma coisa muito interessante: Moçambique é um dos dois países que ficariam mais vulneráveis a reivindicações no âmbito de litígio se decidissem cancelar os projetos de petróleo/gás que estão atualmente em desenvolvimento. O único país acima de nós é a Rússia [Para mais informação aceder aqui a um estudo publicado na revista Science]

Mesmo que o nosso governo chegue à conclusão que estes projetos estão a criar muitos problemas e queira cancelá-los, não tem a capacidade para fazê-lo, porque as implicações económicas são muito graves e vão penalizar o país. Não temos soberania. Existe um colonialismo político, económico. Não temos o poder de dizer não sem termos consequências gravíssimas. A coisa triste é que já foi reconhecido que essas cláusulas e esses mecanismos de resolução de litígios não são justos. A SADC [Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral] já disse que os países africanos não vão aceitar essas cláusulas. Mas o problema é que muitos desses contratos bilaterais têm renovação automática. Vários países africanos têm medo de cancelar esses bilaterais por causa da sua dependência económica. Seria muito fácil retirar essas cláusulas e esses riscos se os dois países que os assinam concordassem em fazê-lo. Mas a Europa, apesar de dizer que já não vai fazer novos acordos bilaterais com essas cláusulas, que transferem os riscos para os povos africanos, não altera os acordos em vigor.

Neste contexto, não podemos dizer que os países africanos têm autonomia sobre as suas decisões. E as empresas têm mais poder do que os próprios governos, têm formas de levar os países a tribunal. Já os governos não têm ferramentas para levar multinacionais a tribunal, porque, no minuto em que as empresas saem do território nacional, não há uma estrutura internacional que permita responsabilizar as multinacionais. Há muitos anos que está a ser discutido um tratado sobre empresas transnacionais e direitos humanos para a criação de regras e instituições para levar as multinacionais à justiça, mas o lobi existente dentro das Nações Unidas está a fazer com que o processo não ande.

Agora mesmo a Vale, do Brasil, que tem vários casos em tribunal pendentes, vendeu a sua mineira de carvão. Mas se a empresa sair de Moçambique, o país não tem nenhuma ferramenta para responsabilizar a Vale por todas as injustiças.

No que respeita às alterações climáticas, não há responsabilidade histórica. Sabemos quem são os responsáveis mas não conseguimos penalizá-los. E sabemos que existe injustiça climática. Não são os países que têm maiores emissões de gases com efeito de estufa que sofrem os maiores impactos dessas emissões. É ao contrário. Quem menos polui sofre mais. África é sempre mais penalizada. Repara que 15% das emissões vêm dos 1% mais ricos. Os 10% mais ricos são responsáveis por 52% das emissões. E não falamos do povo destas zonas do mundo, do povo da Europa, e sim das elites. Sabemos quem cometeu o crime, quem é a vítima, sabemos qual é o processo de causa-efeito, mas não temos forma alguma de conseguir justiça.

Exatamente para colmatar todas essas dificuldades em responsabilizar os verdadeiros culpados também têm vindo a lutar no plano internacional. Disso é exemplo a campanha “Diz Não ao Gás! em Moçambique”. Podes falar-me um pouco sobre essa campanha, sobre quais são as suas atividades e reivindicações?

No nosso país, o governo não ouve a sociedade civil. E, por outro lado, os projetos estão associados a vários países: temos a Eni, de Itália, a Total, da França, a ExxonMobil, dos Estados Unidos, a Shell, já tivemos a Galp… Enfim, estamos a falar de vinte e tal países que são fornecedores de algum serviço, são investidores ou compradores. A campanha “Diz Não ao Gás! em Moçambique”, basicamente, tenta interligar todas essas partes.

Na Europa, muitos dos investimentos vêm dos fundos de pensões. Esse dinheiro tem dono e os cidadãos podem influenciar a decisão sobre para onde esse dinheiro vai. Também há decisões políticas em nome do povo de que as pessoas têm de ter conhecimento.

Por exemplo, expusemos o caso do investimento inglês no negócio do gás em Moçambique. Questionámos se esse projeto estava alinhado com as promessas de Paris e as promessas climáticas de Inglaterra, e foi-nos respondido que sim. Então avançámos para tribunal, defendendo que a forma como essa análise foi feita é muito fraca. A Inglaterra afirma que se o gás for para a Índia e China, e se for substituir o carvão, vai diminuir as emissões globais. No entanto, quando o documento saiu já sabíamos que só 15% do gás ia para esse mercado e não era para substituir o carvão, era destinado a crescimento, a novos negócios. Existem muitas manipulações para garantir os investimentos. Nesse processo, tivemos um resultado interessante. Eram dois juízes, e um deles concordou que existiam compromissos fraudulentos. A juíza que inicialmente deu pareceu favorável tem experiência na área e o juiz que eles puseram no fim era da área dos seguros automóveis.

Ter estas campanhas internacionais com parceiros locais permite-nos também pedir acesso a informações no âmbito da legislação europeia, que é mais forte. Muitas vezes, só sabendo os detalhes concretos dos contrato podemos saber os impactos concretos dos projetos.

Estão a acontecer violações dos direitos humanos, e é preciso que quem investe saiba que, ao investir nestes negócios, fica ligado a esses crimes. Fica com esse sangue nas mãos. A decisão tem de incluir a verdade [Sobre esta matéria, ler o novo relatório que expõe como o dinheiro público é utilizado para financiar projetos de gás destrutivos no norte de Moçambique].

Em maio de 2022, mais de duzentos ativistas bloquearam a entrada da assembleia geral de acionistas da Total em Paris. Foi uma vergonha para a empresa, porque foi denunciado o que está a acontecer em Moçambique e noutros países.

Através desta campanha, os cidadãos de vários países podem demonstrar que os seus governos não estão a ser capazes de representar os seus interesses, e fazer parte da mudança. As ligações que se criam são fundamentais não só para as lutas atuais como também para as lutas futuras. Esta mobilização dá-nos esperança.

Recentemente a Justiça Ambiental também subscreveu a Carta Aberta a todos os Chefes de Estado e Ministros africanos sobre a proposta de um comité técnico da União Africana (UA) para uma “Posição Africana Comum sobre Acesso e Transição de Energia” a ser lançada na COP 27. Podes explicar-me o que está em causa?

Os líderes africanos querem ter uma posição comum no COP 27 e exigem o direito de África explorar os seus recursos naturais, especialmente o gás. Eles dizem que a Europa se desenvolveu com o gás e petróleo, e que África tem o mesmo direito. Mas isso é mentira. A Europa não se desenvolveu com os combustíveis fósseis, a Europa desenvolveu-se com o colonialismo, a escravatura e a exploração de outros países.

Em termos de modelos económicos, a Europa beneficiou de uma cadeia de valores: tiveram as patentes, a investigação, a produção, eram donos das empresas, controlavam o transporte e a distribuição. África não tem nada disso. Apenas tem um componente, que é a matéria-prima, e que nem é o componente mais valioso. Não temos nenhum exemplo de um país em África que tenha conseguido desenvolver-se com combustíveis fósseis.

Não acredito que seja falta de noção. Os governos africanos sabem que não é possível. Sabem que, economicamente, o pequeno pedaço de valor que fica em África não é suficiente para criar o desenvolvimento necessário. O problema é que há muito dinheiro a ganhar pelas elites políticas com estes projetos. Mesmo projetos falhados criam milionários políticos.

Defendes, portanto, que o gás não vai ser o caminho para o desenvolvimento dos países africanos e, concretamente, de Moçambique?

O interesse do gás é um interesse europeu, para necessidades europeias e para uma crise europeia. Não é para resolver as necessidades africanas. O povo africano não quer o gás, o povo africano quer desenvolvimento, quer soluções para as dificuldades que está a passar, para a pobreza e a desigualdade. A única alternativa que os líderes africanos estão a dar é a aposta nos combustíveis fósseis. Isso implica prejudicar o ambiente, perder terras, perder direitos. E, ainda por cima, o povo não vai receber o benefício económico. O problema é que narrativas simples são fáceis. E narrativas fáceis têm ressonância: gás e petróleo valem dinheiro, e dinheiro é igual a riqueza. As empresas ligadas aos combustíveis fósseis estão a investir nesse discurso em África. Vês isso, por exemplo, nos comentários e nos debates que passam na televisão. Estamos a lutar pela narrativa da verdade.


i A Justiça Ambiental é uma organização não governamental sem fins lucrativos que atua em três áreas fundamentais: o extrativismo, mega projetos e corrupção, nomeadamente no que respeita ao setor do carvão, gás e petróleo; o acesso ao ambiente e aos recursos naturais, com a primazia do acesso à terra, da qual cerca de 70% da população moçambicana depende; e as alterações climáticas e energia. Os métodos de trabalho da Justiça Ambiental incluem a ação legal; ciência, com a aposta em investigação; e educação. A ONG integra a rede internacional Amigos da Terra.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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