Credit Suisse admite culpa no caso das dívidas ocultas de Moçambique

24 de outubro 2021 - 12:02

O banco assumiu na semana passada que o empréstimo da Ematum foi “fraudulento" e pagará 475 milhões de dólares em multas. No entanto, o Credit Suisse apenas irá cancelar 200 milhões de dólares dos 390 milhões ainda em dívida por Moçambique.

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Foto de EPA/PETER KLAUNZER, Agência Lusa.

Na passada terça-feira, 19 de outubro, foi anunciado o acordo conjunto com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ), a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC), a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido (UK FCA) e a Autoridade de Supervisão do Mercado Financeiro Suíço (FINMA).

Os documentos de liquidação assinalam a fraude e má conduta por parte do Credit Suisse e detalham os valores a serem pagos pelo banco. O DoJ receberá 175 milhões de dólares, o SEC 100 milhões e o UK FCA 200 milhões.

Dois bancos estão envolvidos neste processo: O Credit Suisse Group com a sua sede em Londres - Credit Suisse Securities Ltd (CSSEL) - e o braço do banco de investimento com sede em Londres do VTB Group, maioritariamente detido pelo governo russo.

O caso das dívidas secretas envolve três empréstimos, todos para empresas recém-criadas controladas pelos serviços de segurança moçambicanos: 622 milhões de dólares para a Proindicus (Credit Suisse 504 milhões, VTB 118 milhões), 850 milhões de dólares para a Ematum (Credit Suisse 500 milhões, VTB 350 milhões) e 535 milhões de dólares para MAM (Credit Suisse 100 milhões, VTB 435 milhões).

Grande parte da ação movida pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos refere-se apenas ao refinanciamento da dívida da Ematum em 2016.

O VTB, encarado como um parceiro secundário no negócio, teve uma penalização leve, sendo multado em apenas 6 milhões de dólares pela SEC por má conduta. De acordo com a SEC, o banco russo não divulgou o conflito de interesses e sonegou outras informações relevantes, como a verdadeira natureza da dívida do país e o alto risco de incumprimento. Acresce que o VTB colocou os seus próprios interesses como credor acima dos interesses dos detentores dos títulos. Ao contrário do Credit Suisse, que se assumiu culpado, o banco russo não admite ou nega as alegações da acusação da SEC.

Dívidas secretas são parte de uma 'conspiração criminosa global' do Credit Suisse

“Ao longo de vários anos, o Credit Suisse, através da sua subsidiária no Reino Unido, envolveu-se numa conspiração criminosa global para defraudar investidores, incluindo investidores nos Estados Unidos, ao deixar de divulgar informações materiais aos investidores, nomeadamente milhões de dólares em suborno aos seus banqueiros e um alto risco de corrupção”, refere o procurador da República Breon Peace para o Distrito Leste de Nova Iorque, citado no comunicado do DoJ.

O Credit Suisse disse aos investidores “que os recursos do empréstimo seriam usados ​​apenas para o projeto de pesca do atum. Em vez disso, os co-conspiradores desviaram os recursos do empréstimo obtidos dos investidores. Especificamente, um contratante [Privinvest], que forneceu barcos e equipamentos para a EMATUM e que recebeu o produto do empréstimo do Credit Suisse, pagou subornos de aproximadamente 50 milhões de dólares aos banqueiros [ do Credit Suisse London] e subornos totalizando aproximadamente 150 milhões de dólares a funcionários do governo moçambicano ”, detalha o DoJ.

A SEC assinala que o Credit Suisse foi alertado pelos seus próprios funcionários sobre corrupção e má conduta, mas continuou com os empréstimos. E que o Credit Suisse e o VTB não divulgaram os elevados níveis de dívida de Moçambique, sendo parte dessa dívida empréstimos concedidos pelos próprios VTB e Credit Suisse ao MAM e Proindicus.

A SEC avança ainda que todas as fontes contactadas no âmbito deste processo estavam confiantes do envolvimento passado e contínuo do diretor da Privinvest na entrega e recebimento de subornos.

Multas são gota no oceano' e pouco vai para Moçambique

De acordo com um relatório divulgado em maio pelo Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique, a dívida fraudulenta e secreta de cerca de 2 mil milhões de dólares custou a Moçambique pelo menos 11 mil milhões e empurrou 2 milhões de pessoas para a pobreza.

Joseph Hanlon, jornalista, investigador e editor do boletim informativo Mozambique News Reports and Clippings, cita Denise Namburete, à época líder do Fórum de Monitoria do Orçamento: Os "475 milhões de dólares são uma gota no oceano em comparação com os danos que as dívidas ocultas infligiram a Moçambique".

Também Tim Jones, da Jubilee Debt Campaign, considera que “uma multa de 475 milhões de dólares é pequena para um banco tão grande como o Credit Suisse". "Essas multas fazem pouco para evitar que um caso semelhante aconteça novamente", acrescenta.

Para o Fórum de Monitoria do Orçamento (FMO) de Moçambique, “o reconhecimento do Credit Suisse da sua responsabilidade reforça a justeza e legitimidade da exigência do FMO de cancelamento total das dívidas ilegais".

Em nota de imprensa, o FMO considera que a decisão do banco suíço reforça a ideia de que as dívidas ocultas "são odiosas" e nunca serviram "para beneficiar Moçambique". 

"O FMO continua a exigir a compensação justa e à medida dos efeitos e impactos do escândalo [para o país], nomeadamente, a crise da dívida, a redução dos investimentos, a retirada dos parceiros de cooperação e os efeitos económicos que empurraram milhões de moçambicanos para a pobreza", lê-se na missiva.

“Um passo importante para a obtenção de plena reparação para o povo de Moçambique"

Num comunicado emitido na quinta-feira através do escritório britânico de advocacia Peters & Peters, Moçambique saudou a admissão de má conduta por parte da Credit Suisse.

"Este é um passo importante para a obtenção de plena reparação para o povo de Moçambique", lê-se no documento.

Moçambique quer que o Credit Suisse, o VTB, e a empreiteira Privinvest compensem o país pelos danos causados pelos subornos e fraude, tendo apresentado processos no Supremo Tribunal contra estas entidades. Por sua vez, o VTB e outros bancos também avançaram com ações contra Moçambique. Em julho, o Supremo Tribunal fundiu os casos, As audições terão início no próximo ano.

O Estado moçambicano pretende ser indemnizado por "prejuízos com os pagamentos de dívidas que tenha ou venha a fazer, decorrentes de qualquer um dos três empréstimos, incluindo aqueles que já foram reestruturados, e por perdas macroeconómicas como resultado da crise financeira provocada pelo escândalo e consequente perda de financiamento de doadores", lê-se na acusação, com data de 19 de agosto de 2019.

Entretanto, dezanove pessoas, incluindo o filho do ex-presidente Armando Guebuza, estão a ser julgadas na capital de Moçambique, Maputo, por acusações relacionadas com os empréstimos, incluindo suborno, peculato e lavagem de dinheiro. De acordo com a acusação, os arguidos associaram-se em "quadrilha" e delapidaram o Estado moçambicano em 2,7 mil milhões de dólares. O ex-ministro das Finanças de Moçambique, Manuel Chang, está sob custódia na África do Sul desde 2018, a aguardar a extradição para os EUA ou Moçambique para enfrentar acusações relacionadas aos empréstimos.