“CPLP deve despir-se de todas as formas de expressão da colonialidade”

24 de setembro 2023 - 12:30

Em entrevista ao Esquerda.net, o ativista e investigador guineense Sumaila Jaló afirma que teremos de estar sempre vigilantes no objetivo de fazer com que, no seio da CPLP, nos possamos envolver numa construção conjunta, e não numa relação de subalternidade. Por Mariana Carneiro.

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Sumaila Jaló no Fórum Socialismo 2023. Foto de Hugo Andrade.

No fim de semana de debates do Fórum Socialismo 2023, que decorreu de 8 a 10 de setembro, em Viseu, Sumaila Jaló apresentou, em conjunto com Leonor Rosas e Miguel Cardina, o painel “Colonialismo: um passado que não passa? Memória, legados e reparações”.

No final desta sessão, o Esquerda.net falou com o ativista e investigador guineense sobre o tema da sua intervenção, que abordou o legado do racismo colonialista no seio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), através da imposição da identidade de “lusofonia”.

A instrumentalização da língua portuguesa como forma de subalternização, no campo geopolítico, dos países ex-colónias de Portugal; a cumplicidade do governo e do presidente de Portugal com ditadores como Umaro Sissoco Embaló, para atender às agendas neocolonialistas do país; ou as discussões no sentido de confrontar a CPLP com todas as suas contradições, e com a persistência da colonialidade nas suas estruturas, são alguns dos temas abordados nesta entrevista.

De que forma é que o legado do racismo colonialista está patente na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)?

Na própria denominação da organização. Mesmo que os defensores da ideia da identidade lusófona recusem a primazia da língua portuguesa na sua invenção, encontramos este aspeto logo na denominação da organização. Depois, todos os instrumentos da organização, acordos, tratados, pactos, estatutos, reproduzem essa primazia dada à construção de uma comunidade a partir do uso da língua portuguesa como único elemento de ligação entre os seus membros.

Desde logo, cria-se um problema. A língua portuguesa, apesar de ter sido assumida pelos países ex-colónias de Portugal, sobretudo em África, como língua oficial, não é a língua veicular em nenhum desses países. No caso guineense, que conheço melhor, existem mais de 15 línguas nacionais. E essas línguas são mais espontaneamente usadas no espaço público do que o português. De acordo com o último censo populacional realizado no país, em 2009, a língua guineense (o crioulo) é representada por cerca de 91% de falantes e o português com apenas 27%, mas é a única língua oficial do país.

Foto de Ordem dos Contabilistas Certificados, Flickr.

A própria evolução do português no país tem dois problemas. Por um lado, pretende-se impor o português como língua de civilização e de modernidade, e a ideia da globalização na Guiné-Bissau a partir da subalternização das línguas veiculares nesse contexto, o que provoca o afastamento das pessoas em relação à língua portuguesa, que continua a ser um instrumento de exclusão entre os próprios guineenses. Ainda hoje, o uso fluente do português é associado à ideia de civilização ou até de elevação intelectual. Um segundo problema, derivado do primeiro, é o método e a estratégia pedagógica usados nas escolas da Guiné-Bissau para o ensino do português, com responsabilidade partilhada por Portugal nesta questão, através do Instituto Camões, que é a organização, ligada ao Ministério de Negócios Estrangeiros português, que estabelece a ponte entre as autoridades educativas da Guiné-Bissau e de Portugal para a cooperação no domínio da língua e da educação, assumindo até um papel preponderante na formação de professores da língua portuguesa no país.

Os professores são treinados para ensinar o português como se fosse uma língua materna, que não é, no caso guineense. O português tem um estatuto mais político, por ainda ser a única língua oficial do país, o que não quer dizer que seja a língua veicular da população, tendo em conta a diversidade étnica e cultural caraterístico à Guiné-Bissau, que é também a razão de o país ter mais de uma dezena de línguas em uso.

Sumaila Jaló no Fórum Socialismo 2023. Foto de Hugo Andrade.

Qual deveria ser, no teu entender, o estatuto da língua portuguesa no contexto de países como a Guiné-Bissau?

Ganhava-se mais com o ensino do português como língua estrangeira, que é o seu estatuto real. E isso não retirava a oficialidade da língua portuguesa, e também não representava qualquer expressão de aversão à língua portuguesa. Essa aversão, se existisse, seria contra um projeto de construção da Guiné-Bissau e do seu progresso. No meio século de existência da Guiné-Bissau, a administração pública arquivou todos os seus registos em língua portuguesa. A eliminação da língua portuguesa nesse contexto seria a aniquilação desse arquivo fundamental para a construção do país, do Estado guineense.

É preciso assumir a língua portuguesa no seu estatuto real: língua estrangeira, língua segunda ou língua não materna. Mas essa responsabilidade é sobretudo dos Estados-membros que debatem com essa urgência. No caso da Guiné-Bissau, nada, praticamente, se tem feito nesse sentido, apesar de não faltarem estudos que apontem para essa direção. E é preciso que o próprio espaço da CPLP não fique preso à ideia da disseminação e construção de uma identidade lusófona através da utilização da língua portuguesa para reprimir outras línguas que existem nos países que fazem parte da organização. Ou até mesmo à ideia de impedir o uso das línguas veiculares desses contextos pelas suas diásporas em Portugal. E não é raro os pais e as mães das crianças afrodescendentes serem aconselhados a não se comunicarem com os seus filhos nas suas línguas de origem, com a justificativa de que isso dificulta os seus filhos na apropriação do português. Será que o mesmo conselho é dado aos pais e às mães das crianças de origens espanhola, inglesa ou francesa?

A ausência das línguas nacionais nos sistemas educativos da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, por exemplo, impede que a própria língua portuguesa seja apropriada e usada com maior facilidade pelas populações. Disseminada nesses contextos com outra abertura, mediante o ensino bilingue em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, usando as línguas guineense e cabo-verdiana, a par do português como língua não materna, possibilitaria maior difusão do português, porque as duas línguas estariam a mediar o processo de aprendizagem, e não existiria qualquer tipo de opressão linguística, nem de um lado nem do outro. A promoção das línguas nacionais nesses contextos possibilitaria uma relação de maior multiculturalidade no espaço da própria CPLP, uma organização que deve despir-se de todas as formas de expressão da colonialidade que ainda estão presentes nas suas estruturas.

Consideras, portanto, que a língua portuguesa é utilizada como instrumento para a subalternização, no campo geopolítico, dos países ex-colónias de Portugal que constituem a CPLP?

Na construção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, partimos de lugares desiguais, de forças não equiparáveis. Portugal já tinha percorrido um longo caminho na construção do seu Estado, da sua identidade e do seu poder político, e na sua presença em espaços internacionais. A luta pela independência da Guiné-Bissau teve essa direção, mas não de forma proporcional ao caminho feito por Portugal.

Desde logo, partimos de posições diferenciadas e de lugares não equiparáveis, de todo. E depois avançámos em direção à construção de uma suposta comunidade em que o poder de um antigo colonizador continua a impor-se através da instrumentalização da questão da língua que, malgrado nosso, escolhemos como língua oficial, ainda que com o cuidado de pensarmos no desenvolvimento das nossas línguas nacionais para servirem de meio de comunicação ao mesmo nível que o português.

Por exemplo, quando se cita Cabral a dizer que o português é a melhor herança deixada pelos colonialistas portugueses na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, omite-se que Cabral, no mesmo parágrafo, logo a seguir, diz "até quando encontrarmos boas regras e estudarmos melhor o nosso crioulo para servir de língua veicular também no ensino". Não excluindo nunca o português, mas com o português de mãos dadas com as nossas línguas nacionais.

A instrumentalização da questão da língua portuguesa serve para afirmar outros objetivos, objetivos geopolíticos. Hoje, sem a CPLP a servir a sua agenda no sistema político internacional, Portugal remetia-se ao seu caráter periférico nesse tabuleiro de disputas geopolíticas e geoestratégicas.

Mas a CPLP não terá pernas para andar se continuar nessa lógica de instrumentalização por parte de Portugal ou de qualquer outro Estado hegemónico no seu seio. O Brasil podia ter essa força, mas não se dá a esse trabalho, porque tem outros interesses no quadro político internacional, mais prioritários do que propriamente disputar este espaço.

Daí que o único caminho para a viabilidade da CPLP é despi-lo do objetivo de afirmar a identidade lusófona, oprimindo outras identidades, porque a identidade lusófona, tanto pela sua âncora à língua portuguesa como pelo seu significado etimológico, é uma identidade mais portuguesa, e talvez até exclusivamente portuguesa. Um guineense não é lusófono. A origem da palavra "Guiné" não nos remete para a lusofonia, mas a origem da palavra lusofonia remete-nos para a identidade portuguesa.

No domínio de cooperação, Portugal, Brasil e outros países devem encontrar um ponto de encontro em que as relações passam a ser entre iguais, em que os países mais poderosos não interferem até na construção de poderes políticos nos países ex-colónias, como Portugal tem intervindo, por exemplo, no caso da Guiné-Bissau.

Umaro Sissoco Embaló é recebido por Marcelo Rebelo de Sousa numa visita a Portugal a 8 de outubro de 2020. Foto António Coutrim, Lusa.

 

Guineenses protestam contra a visita do Presidente da República da Guiné-Bissau, General Umaro Sissoco Embaló, em Belém, Lisboa, 8 de outubro de 2020. Foto António Coutrim, Lusa.

A este respeito, temos o exemplo da cumplicidade entre o presidente da República e o primeiro-ministro português com o ditador Umaro Sissoco Embaló. Essa cumplicidade com forças políticas retrógradas e reacionárias tem como objetivo uma melhor manipulação de poderes políticos dependentes dessas agendas neocolonialistas e alimentadoras de uma ideia imperialista ainda persistente no subconsciente do Estado português enquanto estrutura que não se consegue libertar, de todo, de relações de subalternidade com as suas ex-colónias.

O primeiro-ministro, António Costa, cumprimenta o Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, à chegada para um encontro bilateral entre delegações dos dois países, em Bissau, Guiné-Bissau, 5 de março de 2022. Foto de António Amaral, Lusa.

Consideras que o caminho que está a ser traçado pela CPLP vai no sentido de eliminar as formas de opressão e de subalternidade que persistem?

As discussões no sentido de confrontar a CPLP com todas estas contradições, e com a persistência da colonialidade nas suas estruturas, não estão a acontecer como podiam ter acontecido. O funcionamento da própria organização não tem demonstrado interesse em abandonar os sintomas imperialistas de Portugal persistentes nas suas estruturas.

Mas na academia, em alguns movimentos sociais, sobretudo, têm existido questionamentos que levam a essa direção. Porque o perigo seria não haver qualquer tipo de expressão no sentido de contrariar essa lógica colonial e imperialista no espaço da CPLP. É verdade que, entre os decisores com maior influência na estrutura da CPLP, não tem havido esse debate. Mas, se prestarmos atenção até aos discursos que acontecem no seu interior na tentativa de evitar os protestos que vêm de fora, reparamos que as disputas de fora chegam lá. Quando nos discursos de responsáveis dos Estados-membros, e até das estruturas da própria CPLP, encontramos justificações para desmentir a primazia dada à língua portuguesa e a sua instrumentalização pela diplomacia portuguesa; quando surgem estudos, reflexões e abordagens que tendem a defender e a desculpabilizar essa tendência lusotropicalista e de imposição da identidade lusa em todo o espaço, é porque o debate está presente, é porque o caminho se está a fazer e vamos chegar lá.

Esse debate parte de intervenções políticas que podem não ser dos partidos mais influentes ou de instituições mais formais e formalizadas junto da CPLP, mas dos espaços políticos que partem das sociedades dos países-membros da organização.

No espaço intelectual, o debate tem um viés mais de confronto, que é saudável, de afirmação de posições antagónicas que conduzem a uma direção mais produtiva, que se recusa ao silenciamento do debate. Essa recusa do silenciamento conduz a respostas das sensibilidades mais reacionárias, o que alimenta o debate. O debate é uma forma da luta, e a luta deve acontecer em todas estas vertentes para desconstruir a colonialidade patente no seio da CPLP e construir uma alternativa comunitária mais igualitária, mais justa e despida progressivamente da colonialidade que a caracteriza.

Não vai ser um trabalho de um dia para outro, tem de ser um trabalho progressivo. Teremos de estar sempre vigilantes no objetivo que temos a concretizar, que é despir a CPLP de todo o seu viés colonial e colonialista e fazer com que, no seio da comunidade, nos possamos envolver numa construção conjunta, e não numa relação de subalternidade.

Sumaila Jaló no Fórum Socialismo 2023. Foto de Hugo Andrade.
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