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A Contra-Hegemonia

Contributo de Ricardo Sá Ferreira

O debate interno do Bloco está a acontecer num período político complicado, depois de umas eleições de onde saiu uma maioria absoluta de uma coligação de direita e onde o Bloco saiu derrotado. Num país com 2 milhões de pobres, onde a precariedade ganha amplitude e profundidade destruindo as relações de trabalho, onde o populismo cavalga perante a inércia popular, onde o Bloco teve uma retração a nível parlamentar, a questão central é como é que o Bloco, com os movimentos sociais e com os sindicatos, organiza a resistência popular? Perante a ideia hegemónica da inevitabilidade, como é que o Bloco organiza a contra hegemonia? Perante o sentido de desistência, como é que o Bloco cria uma nova cultura de ideias de esquerda, para o sacudir? Perante o escalar da abstenção, inércia popular e o sentido da indiferença, como é que o Bloco transforma estes indiferentes em activistas?

Neste período temos de dar muita importância à resistência e temos de trabalhar sobre a questão da cultura no sentido de Antonio Gramsci. Gramsci falava da hegemonia para explicar como é que uma determinada política de classe surge, se consolida e como se transforma em senso comum. A inevitabilidade instalada explica, como refere o Fernando Rosas, que uma franja tão vasta de sectores populares tenham desistido de votar ou tenham transferido o voto para quem lhes ofereceu “segurança” e uma alternativa que parecia palpável (o empréstimo da troika). A esquerda não conseguiu romper este senso comum, que assentou em pensamentos como “isto é mau mas pode ser que depois deste sacrifício a coisa endireite e a vida melhore”ou que “o FMI é mau mas ao menos vem por ordem nas contas e nos políticos”ou que “nós não temos dinheiro para pagar salários e a troika é quem nos vai emprestar dinheiro para resolver esta situação”ou ainda que “numa altura de desemprego tem de se perder alguns direitos para se ter alguma coisa.”A hegemonia da direita ganhou e temos de saber como organizar a contra-hegemonia para disputar a sociedade civil.

O trabalho de uma contra-hegemonia tem que se basear em propostas, em capacidade de debate, em (novas) formas de comunicação, em redes de pensamento e difusão de forma a consolidar respostas e na criação de dirigentes. Isto é muito importante nesta fase se quisermos, de facto, organizar uma luta intelectual e cultural para romper com o mito da inevitabilidade. Todas estas perguntas têm que ser pensadas ao nível da discussão política, e em torno dessas questões, como é que o Bloco se organiza internamente para disputar a batalha de ideias na sociedade civil.

Ao falarmos do Bloco a nível interno, as correntes organizadas são incontornáveis. Ultimamente tem-se dado importância ao papel das correntes dentro do Bloco. Falar sobre o Bloco e as suas propostas políticas é também falar sobre as correntes, como funcionam, como não funcionam, como são um espaço de pluralidade e de pensamento político mas também como descambam muitas vezes para o recrutamento agressivo dentro do Bloco, para a angariação de quadros e a negociação de lugares para distribuir sob forma de quotas. O que tem de se falar no Bloco não é a legitimidade ou existência das correntes, mas a forma como se organizam e determinam os espaços do Bloco.

Os Círculos de Discussão

Saiu no Ionline, uma notícia em que vários dirigentes do Bloco, inclusive um dirigente anónimo da Comissão Política (já vai sendo hábito, mas não sabia que o anonimato existia no Bloco, não existem dirigentes por alguma razão?) que falava sobre a formação de um tendência maioritária. Como explicou o Fernando Rosas no acampamento, a proposta inicial da tendência maioritária foi transformada na criação de debates temáticos, descentralizados, que irão ser discutidos em todos os distritos do país. Isto é bom porque vem contrariar a lógica dominante no Bloco em que os debates faziam-se dentro das actuais correntes, o que faz com que muito militantes que não integram nenhuma destas correntes fiquem à margem da discussão interna.

Mas há muitas questões. Questão inicial, onde é que ficam as correntes? Certamente não voltarão para dentro do armário, nem se vão desintegrar, até porque não se pode “decretar o fim das correntes”, como diz o Bruno Maia. Quem é que cabe neste espaço? Vai haver órgãos eleitos? Será somente um espaço de discussão, ou de decisão? Um novo aderente que chegue ao Bloco, onde é que fica? A sua primeira decisão política vai ser escolher entre um espaço de discussão da maioria ou outra coisa qualquer? Onde é que ficam os espaços do Bloco? Quem é que toma as decisões?

Sobre esta questão tenho muitas perguntas, poucas certezas e bastantes receios. A ideia é boa, mas pode correr-se o risco de esvaziar os espaços do Bloco porque cria uma super-corrente, que se alarga em nome da discussão mas retira espaço à discussão dentro do Bloco. Isto faz-me lembrar a teoria dos três círculos que o Alex Callinicos popularizou no partido em que militei quando vivi em Inglaterra.

Nessa altura, no SWP (Socialist Workers Party), decidiu-se formar uma nova força política, que era o RESPECT, onde estavam os militantes do SWP e outros aliados seus do movimento contra a guerra e das lutas sociais. A lógica de funcionamento do SWP, de que saí devido à sua falta de espaços de discussão e democracia na tomada de posições, era baseada na existência de três círculos. Um núcleo duro ideologicamente fechado onde a decisão era realmente tomada onde só cabiam os verdadeiros revolucionários, o SWP. No segundo círculo estava uma frente eleitoral, o RESPECT, onde se fazia a negociação política, que intervinha publicamente, que concorria a eleições e onde estavam muitos milhares de pessoas, mas que se não fossem do SWP não tinham grandes espaços de participação, muito menos na tomada de decisões. E o terceiro círculo, das outras frentes onde se recrutava militantes, o Stop the War Coalition, que era igualmente controlada pelo SWP, apesar de serem movimentos abrangentes, apartidários e de massas.

Este modus operandi, de pequenos núcleos com discussões prévias, a tomar as decisões e a concertar estratégias foi uma das razões para as cisões no Respect e para que muita gente da frente mais ampla se tenha cansado de fazer militância sem capacidade de decidir as políticas e as opções que se colocavam. O maior problema do RESPECT e do Stop the War Coalition não era a presença do SWP, mas era a maneira como é que o SWP se relacionava com o próprio RESPECT, estando no seio do RESPECT. As direcções eram controladas pelo SWP, direcções estas que não reflectiam os órgãos de base e os seus militantes. Devido à falta de estratégia do RESPECT para o RESPECT, o projecto implodiu porque era o SWP, uma minoria, que controlava os destinos deste novo projecto político. Assim se destruiu um projecto novo e de esquerda com capacidade de transformação.

O Bloco representa uma experiência muito diferente e é por isso que estou no Bloco de corpo e alma há 5 anos. Mas é preciso ter cuidado com estas questões.

Correntes e Discussão

Num texto sobre as correntes para o Debate Aberto do esquerda.net, o camarada Bruno Maiadisse que:

As correntes do Bloco não são nem indispensáveis ao partido, nem nocivas para o mesmo”.

É verdade, em parte. As correntes são indispensáveis para manter a pluralidade do pensamento interno no Bloco. Só torna as correntes nocivas, quando a discussão e as decisões já vêm tomadas, asfixiando a participação de qualquer militante que esteja fora das correntes. O camarada Bruno Maia responde no seu texto que:“Pode parecer mal que existem discussões prévias, soluções procuradas em conjunto no seu interior, concertação de estratégia, entre outras coisas, mas esse é o preço que pagamos pela democracia.”

Todos os militantes, têm o direito ao seu espaço de discussão com camaradas, círculos ou correntes com as quais se mais identifica e com qual desenvolveu uma relação de confiança. Mas as discussões e as tomadas de posições nunca devem ser feitas em detrimento de uma discussão alargada com todos os militantes do Bloco, independentemente de terem ou não terem corrente. As melhores decisões são tomadas em colectivo, com o maior número de cabeças a pensar e problematizar o mesmo problema. Se as decisões já estão todas tomadas, para o que é que servem os espaços do Bloco? Para dar uma pertença de inclusão onde a inclusão não existe? Se já está tudo decido a priori, não corremos o risco de estar a ver o Bloco como uma frente eleitoral? O Bloco é um partido que conta com todos para a sua militância, então tem de contar com todos para tomar decisões.

Sobre o futuro das correntes no Bloco, o Victor Franco diz que “é um problema delas [correntes] e dos seus membros.”Só que o futuro das correntes está directamente ligado ao futuro do Bloco. Assim, é uma questão que de certa forma diz respeito a todos nós. O Victor Franco está certo quando diz que “a superação da lógica / lóbi das correntes na ‘escolha’ de lugares leva a que às correntes só reste a ideologia. Cada um valerá por si.” Mas o Victor sabe que o Bloco não tem funcionado assim e não vale a pena olhar para o lado.

Odebate plural, a participação de base e a responsabilidade colectiva deve ser feita dentro no Bloco como um todo. Somente com a democratização do Bloco, das discussões e das tomadas de decisão é que se pode criar responsabilidade colectiva. O Victor Franco faz uma boa defesa das correntes e do que deveriam ser em teoria, mas na prática não tem sido assim. O problema não é a existência de correntes dentro do Bloco, mas a relação das correntes com o Bloco. Quer dizer que as decisões nem sempre estão a ser discutidas nos órgãos eleitos do Bloco, mas na liderança das correntes que por sua vez incorporam o Bloco. Para fortalecer o Bloco, é preciso agir mais dentro do Bloco. Quanto mais Bloco houver, mais capacidade terão todos os militantes de contribuir. Só assim o Bloco terá futuro.

Solução: Mais Bloco.

De forma ao Bloco ser porta-voz da grande maioria social, o Bloco terá que se organizar em função das propostas políticas que temos para a sociedade civil. A nossa organização interna tem que estar em sintonia com a nossa linha política. Se nós queremos um Bloco que faça a articulação entre os movimentos sociais e o Parlamento, temos que formar activistas, dirigentes e quadros políticos nos movimentos. Neste momento de retracção política, onde os movimentos sociais são escassos e onde a CGTP tem poder político mas não tem poder social, o Bloco tem que desenvolver a guerra de posições, em que leva a cabo uma luta intelectual e cultural na rua e no parlamento para criar uma força contra-hegemónica à inevitabilidade. Para isto, precisamos de formar quadros no Bloco. Temos muitos quadros políticos que estão e que não estão nas correntes e têm sido sub-aproveitados. O Bloco precisa de mais debate, para assim formar mais quadro políticos. O Bloco precisa de mais participação e mais partilha, isso só vem com responsabilização e mais discussão colectiva a todos os níveis.

Ricardo Sá Ferreira

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