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“Considero indispensável a luta sobre a Memória”

Não para que a História consagre uma verdade sem falhas, mas para que a Mentira não prevaleça, que foi, afinal, o projeto da Censura criada pela Constituição de 33. Não se tratou, só, de conformar o então presente à visão do poder que estava, mas de deixar, por muito tempo, para as gerações futuras, o germe da sua falsa verdade. Por Diana Andringa.

Tal como as minhas companheiras de mesa, nasci numa colónia. No caso, em Angola, no Dundo, Lunda-Norte. (Elas são da Contracosta.) A minha certidão de nascimento descreve-me como “um indivíduo de sexo feminino e de raça branca” instalando-me assim, desde logo, na ambiguidade de um estatuto de menoridade, pelo sexo, e de superioridade, pela cor da pele. Mas, tendo nascido em Angola, era aquilo a que os portugueses europeus chamavam “portuguesa ou branca de segunda”.

Mas como a minha pele era branca não tive de provar, como aconteceu a uma amiga de pele mais escura, que falava português, usava sapatos, dormia numa cama, comia à mesa e sabia usar talheres. Ou seja, que era “civilizada”.

Na escola, onde as salas de aula tinham na parede um crucifixo e os retratos do Senhor Presidente do Conselho e do Venerando Chefe de Estado, ensinavam-nos que Portugal era um país imenso, em que, em teoria, todos eram portugueses, do Minho a Timor. Só fora dela – onde todos os meninos eram brancos – poderíamos vir a saber que algumas das pessoas entre quem vivíamos não eram consideradas portuguesas como nós, mas por vezes “assimiladas” e, maioritariamente, “indígenas”.

Ensinavam-nos também, em vez da realidade com que convivíamos, astros que não víamos, linhas de caminho-de-ferro e rios que nos eram estranhos, frutas que não cresciam perto de nós. Crescíamos na ambiguidade, africanos pelo ambiente, europeus pela instrução. A sonhar com uma civilização que, dizia-se, havia na “Metrópole”. Lá longe, no “Puto”.

De vez em quando, a realidade interpunha-se nessa noção idílica de civilização. Vendo as mãos rebentadas pela palmatória de um dos criados de nossa casa, por exemplo. Ouvindo outro dizer que não podia circular de noite na vila porque não tinha passe para isso. Vendo os meninos negros a capinar os nossos jardins, enquanto nós andávamos de bicicleta ou de baloiço. Percebendo a segregação na habitação, na escola, no hospital, até na igreja. Pensando no que queria dizer a professora que, mostrando-nos os impecáveis cadernos dos meninos da escola negra, comentara: “Eles não se podem dar ao luxo de não estudar!”

No Puto, a que vim ainda na primária, percebi que havia diferentes maneiras de ser negro. Ser pobre, por exemplo. Na Associação Protetora de Meninas Pobres, a escola mais próxima da casa dos meus pais, eram raros os meninos que andavam calçados, muitos os que começavam a trabalhar antes mesmo de terminarem a terceira classe, muitas as meninas que muito cedo iam servir como criadas em casas muitas vezes longe da sua. Muitos não tinham livros e só podiam fazer os TPCs se lhes pudéssemos emprestar os nossos; e era quase sempre sobre as mãos deles, marcadas pelas frieiras, que se abatiam as ponteiradas da muito católica e beata professora.

Felizmente, havia a leitura. O regime bem intuíra que saber ler era o início da subversão. Pois não é que livros aparentemente tão inocentes como “Sandokan, o Tigre da Malásia”, continham o perigoso germe do anticolonialismo?

Na minha casa de estrangeirados havia muitos livros e a firme noção que ler nunca podia ser uma coisa negativa. E eu, com pouco jeito para o desporto e ainda menos para tarefas domésticas, ia-me formando ao sabor das leituras. Nem toda a argúcia da Censura poderia imaginar quão subversivas podiam ser as histórias de Pocahontas ou de Sitting Bull, Mulherzinhas, de Louisa Alcott, os livros de Pearl Buck ou até as crónicas sobre a II Guerra Mundial das Selecções do Reader’s Digest.

Nas viagens entre o Dundo e Rio de Mouro, nas leituras em casa ou na Biblioteca da Casa do Pessoal, fui criando a ideia que as culturas eram muitas e diversas, e nenhuma prevalecia sobre as outras. Que a Bambilambila tocada em kissange podia provocar emoções idêntica às de um trecho de Bach. Que o Pensador do Museu da Lunda não ficava atrás do de Rodin, era simplesmente diferente. E que se era bom ler os clássicos da literatura, não devíamos desprezar as lendas da cultura oral – nem, naturalmente, a banda desenhada...

Esta cultura aberta e plural não me tornou a vida fácil: no Colégio de freiras, era suposto que havia coisas a saber e coisas a desconhecer, que o Novo Testamento se devia conhecer e o Velho desconhecer, que dos Lusíadas deviam ser lidos todos os Cantos menos o Nono; que havia países bons, que se deviam estudar, e países maus, que deviam ser ignorados; que a independência da Pátria era uma coisa boa, se a Pátria fosse Portugal e os inimigos os espanhóis; mas que a mesma independência era péssima, se em causa estavam Dadrá e a Pragana de Nagar-Aveli e eram outros que contra Portugal a reclamavam; no Liceu, que os existencialistas não mereciam ser estudados nas aulas de filosofia. Não falando sequer de Marx...

Criada numa família em que a liberdade de discutir era aceite e respeitada, foi duro descobrir que essa era uma estranha cultura, num país em que o pensamento era menos livre ainda que a palavra, e onde não havia clima para que mil escolas de pensamento rivalizassem (para citar uma frase maoista, das que também fazem parte do meu património cultural). Que o meu dever de estudante era decorar e não compreender. E que incomodava profundamente a maioria das pessoas com quem me relacionava, porque, sendo de sexo feminino, me arrogava o direito a ter opiniões.

Sei que este caldo de cultura em que vivi era raro na minha geração, mais ainda na da minha mãe, que, sendo mulher, não deveria almejar a mais que ser uma excelente dona de casa, tocar piano e falar francês, coisas que aliás fazia. Mas foi também ela que, lamentando não ter uma profissão, me encorajou a escolher uma e a não ver como único futuro casar e ter filhos. O que se fazia, aliás, no medo: caloira de Medicina, ouvi uma colega mais velha contar o medo que tinha da relação sexual, da gravidez, deixando-me espantada a olhá-la, sem perceber como podia ela conciliar a ciência e o obscurantismo.

Mas o tempo de Faculdade foi, nesses idos de 64/65, um tempo de revelação: afinal, os Subterrâneos da Liberdade também nos diziam respeito;afinal, tinha de me ocupar de política, porque a política, essa, se ocupava de nós: a prisão de dezenas de estudantes no dia 21 de Janeiro de 65 ensinou-me que, para lá dos poemas que o Juvenil do Diário de Lisboa me publicava, havia outras coisas mais urgentes a escrever. E quando, na minha profunda inexperiência, escrevi no Boletim da CPA de Medicina que, ainda que esses presos fossem comunistas, como o regime alegava, deviam ser defendidos pelas Associações de Estudantes, percebi de repente que estava a fazer política, como o Monsieur Jourdain de Le Bourgeois Gentilhomme, de Molière, ao descobrir que fazia prosa sem o saber.

E depois o tempo da Faculdade era também o do cinema, do teatro, das longas discussões em que a política se misturava à literatura, à psicanálise, à crítica de cinema, em que, mais do que nas aulas, se rasgavam novas ideias, novas dúvidas, novas perplexidades e a extraordinária noção de estar vivo que o risco traz.

Tempo de perceber também que tudo estava nas palavras dos poetas, que cabíamos inteirinhos no “Estou vivo e escrevo sol!” de um Ramos Rosa, nos encontrávamos no Herberto Helder de Os Passos em Volta, odiávamos os que queriam transformar-nos em funcionários cansados – e antevíamos a prisão e o risco de trair em A Longa Viagem, de Semprun, ou A Cabra-Cega, de Vailland e nos parecia evidente que a Escrita de Deus passava nas manchas do jaguar – e nas próprias palavras de Borges...

E depois houve a chuva, as grandes inundações de 67 que se encarregaram de nos fazer conhecer a realidade das pessoas que morrem quando há cheias, porque as casas são frágeis e as condições nenhumas e me empurraram para o jornalismo, altura em que verifiquei que um republicano podia estar de acordo com um fascista em que as mulheres servem é para coser meias: foi assim que para o meu primeiro emprego como jornalista, abandonada a Medicina, tive de entrar como tradutora, porque o diretor não admitia que uma mulher escrevesse por sua própria iniciativa. Isto quando havia já, nas redações, algumas mulheres que faziam excelente trabalho, como a Antónia de Sousa ou a Maria Antónia Palla.

Por essa altura também já tinha aprendido que, quando se quer vencer um homem numa discussão se lhe rebatem os argumentos, mas quando se quer vencer uma mulher se fazem insinuações sobre o porte moral... Que em muitas das questões de costumes não se distinguiam no privado a esquerda e a direita. Que pensar pela própria cabeça é mal visto nos mais variados quadrantes – e que um dos problemas de Portugal era que, mesmo quando Império, mesmo derramando-se pela emigração, era demasiado pequeno, demasiado fechado, e nos fechava a todos na sua pequenez. Como se não pudéssemos sair nunca do Portugal dos pequeninos...

Tinha também aprendido que uma mulher não podia passear sozinha numa rua sem ser provocada verbalmente, entrar sozinha num café ou num restaurante sem ser comida com os olhos, que éramos uma espécie cinegética sem defeso. E esse era um traço tão marcante que ainda hoje chego atrasada a todos os encontros em restaurantes, para evitar esse embaraço da espera, sozinha, exposta como uma peça de caça...

Esse peso, essa sensação de menoridade faz parte da minha cultura, por muito que a deteste. Como fez parte a necessidade de pensar com outros jovens, sobretudo rapazes em idade de serviço militar, sobre fazer a guerra, correr o risco de ser morto ou de matar, se se devia optar pela deserção e o exílio, ou ir para as colónias fazer guerra à guerra. E sobre o risco de ser preso, talvez torturado ou, pior ainda, de trair. A nossa geração não tinha uma vida fácil, os nossos anos 60 não foram só Beatles, drogas e rock’n’roll. Para nós foram, sobretudo, os amigos presos, a PIDE, as prisões e a guerra colonial.

De tudo isto se fez o percurso para o jornalismo. A entrada nele como uma militância, a crença de que com as palavras se pode mudar o Mundo. Com as nossas e as dos outros – porque pertenço a uma geração de jornalistas que entendia dar a palavra aos outros, com infinito respeito, dever dar voz a quem não a tinha, e dignificar as suas palavras…

De algum modo, a liberdade de pensamento que me deram em casa conseguiu resistir aos anos que se seguiram. E, num tiro saído pela culatra, foi a própria opressão a manter esse vício de pensar livremente. Era a Censura que, com os seus cortes – tantos, que um patrão entendeu dever dispensar-me por, entre o original e o que era publicado, gastar demasiado chumbo na tipografia… – nos ensinava a refletir mais, a cuidar mais das palavras, a usá-las para que a mensagem chegasse aos leitores.

Tive também a sorte de trabalhar numa redação fantástica, a da Vida Mundial, tão fantástica que, quando o patronato quis normalizar-nos, 12 dos 14 jornalistas se demitiram, com a solidariedade da maioria dos colaboradores.

Conheci depois outros patrões, numa agência de publicidade: gente de esquerda, que me recebeu bem por ser uma das demissionárias da revista, mas logo me chamou a atenção quando suspeitou que tinha ajudado as dactilógrafas a protestarem por escrito pelos baixos salários: “a política”, explicaram-me, “é para fora da empresa, não para o interior”.

Mas o trabalho na Vida Mundial tinha-me posto em contacto com pessoas ligadas à luta pela libertação de Angola, permitindo-me ajudar, na modesta medida que me estava ao alcance, a essa luta. E assim, a 27 de Janeiro de 1971, uma brigada da PIDE foi prender-me na agência de publicidade – obviamente com toda a legalidade formal. E, como passaram antes por minha casa e, na mesma rua, prenderam uma grande amiga, fui avisada a tempo e pude, com a ajuda de camaradas de trabalho, deixar preparada uma procuração para o advogado. Prendendo-me, a PIDE dava-me uma importância que estava longe de ter – e que me fortalecia para o confronto.

Ao contrário de milhares de outros presos, não sofri torturas físicas. O isolamento, sim – mas que encher com as muitas palavras lidas ao longo dos anos me ajudava a suportar. Ameaças e chantagens sim, tentativas de humilhação também, mas diz um velho ditado que “vozes de burro não chegam ao céu” e a minha preocupação era controlar o que dizia, não ouvir o que diziam.

Foi um tempo de confirmação das minhas próprias convicções, de conhecer melhor – por outras presas – as desigualdades de género mesmo em partidos que proclamavam a paridade, de perceber as diferenças entre carcereiros, de conhecer melhor as minhas próprias forças e fraquezas. E de, no Tribunal, me sentir livre de dizer o que a minha infância em Angola me ensinara sobre o colonialismo e por que razão sim, sem ter partido, apoiava a luta de libertação nacional.

Quando saí da cadeia, 20 meses depois da prisão, a esquerda que eu conhecia dividira-se em vários grupos. A agência onde trabalhava recomendava-me muito, desde que não voltasse para lá. Foi um administrador do DL que se mostrou solidário e, ainda não passara um mês, me deu emprego. Também aí criei obstáculos por não agir dentro da norma. Fui dispensada pouco depois.

Depois de um breve autoexílio, o 25 de Abril encontrou-me de novo em Portugal. Esperando um golpe de direita, quando a Fernanda Tomás, com quem estivera presa e era então minha vizinha, me acordou a anunciar um golpe militar, voltei para a cama, preparando-me para uma eventual segunda prisão.

Depois tocou o telefone e um amigo disse-me: “A Revolução está na rua!” Fui ver a Revolução, mas do que me lembro, para lá da dignidade recuperada das pessoas com quem me cruzei, é de ter passado parte do dia e da noite a discutir a questão dos presos da FAP e da LUAR que a Junta de Salvação Nacional não queria libertar. E de, dias depois, ter ouvido a Internacional no Metro da Rotunda, tocada em acordeão por um pedinte cego. Um dos sons mais extraordinários das minhas memórias.

E, mais tarde, das bandeiras dos novos países independentes – aqueles que nos deram, de facto, o 25 de Abril – substituindo, nos mastros, a portuguesa.

O país é hoje outro. As antigas colónias são, hoje, países parceiros na CPLP. O acesso à Educação democratizou-se e abriu-se aos que antes eram excluídos. Tal como o analfabetismo, a mortalidade infantil e materno infantil desceram exponencialmente. O Serviço Nacional de Saúde fez agora 40 anos. As mulheres são hoje a maioria dos alunos das nossas Universidades, embora sejam ainda poucas nos centros de decisão e de poder, nos que forjam a cultura de um país.

Cumpriu-se aquilo tudo que esperávamos? Certamente que não. Falhámos, nomeadamente, na passagem à população em geral, aos jovens em particular, da consciência do que foi viver antes do 25 de Abril. Deixámos que as brumas da memória se transformassem numa amnésia que permite que, de vez em quando, lá surjam frases como “antigamente era melhor” e “o que faz falta é outro Salazar.” Falhámos em explicar que a corrupção só se democratizou, não nasceu da Democracia. Que o jeitinho, o favor, as galinhas, os ovos, o folar pela Páscoa, os bolos-rei pelo Natal, as garrafas deixadas no pódio do polícia sinaleiro, as grandes fortunas e as festas de milionários sempre conviveram com os discursos sobre a austeridade e os mitos das galinhas e dos ovos criados no quintal de São Bento para as refeições do Senhor Presidente do Conselho...

Por isso, neste momento, considero indispensável a luta sobre a Memória. Não para que a História consagre uma verdade sem falhas, mas para que a Mentira não prevaleça, que foi, afinal, o projeto da Censura criada pela Constituição de 33. Não se tratou, só, de conformar o então presente à visão do poder que estava, mas de deixar, por muito tempo, para as gerações futuras, o germe da sua falsa verdade.


Intervenção de Diana Andringa na Sessão Pública: Mulheres de Abril: Resgatar a memória da resistência antifascista, que contou também com as intervenções de Joana Lopes e Luísa d'Espiney e a moderação de Beatriz Gomes Dias (candidata às legislativas por Lisboa).

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