As eleições europeias estão muito próximas e as sondagens indicam uma forte ascensão das direitas radicais. Os dois grupos do Parlamento Europeu a que pertencem – Identidade e Democracia e Conservadores e Reformistas Europeus – podem vir a ter mais trinta lugares se as previsões se confirmarem, com 23% dos votos a seu favor, como explica Steven Forti nesta análise. Mas o que poderá significar esta ascensão para outros tipos de direitos associados ao género – das mulheres ou da diversidade sexual – que a União Europeia apresenta frequentemente como a sua identidade própria?
Realmente não é fácil responder, sobretudo porque depende tanto dos consensos prévios com que são confrontados, como das resistências que possam surgir. (Além disso, para que estes direitos relacionados com o género sejam plenamente eficazes, teriam de ser considerados como parte de um sistema mais vasto de garantias dos direitos sociais e não isoladamente. Por exemplo, as leis anti-discriminação são inúteis se as pessoas não tiverem acesso a cuidados de saúde, rendimentos, habitação condigna… ou simplesmente se as pessoas não tiverem igual acesso à justiça para fazer valer esses direitos).
De qualquer forma, para compreender o que está a acontecer na Europa neste âmbito, é necessário prestar atenção a uma questão que não é frequentemente focada: a influência crescente da direita religiosa norte-americana. Há anos que esta se estabeleceu como um ator nas instituições europeias através de uma miríade de organizações fundamentalistas bem financiadas. Esta direita religiosa – e as suas organizações – é a mesma que apoia diretamente Donald Trump que, caso regresse à presidência, irá sem dúvida utilizar os recursos do Estado para tentar impulsionar os seus aliados: a direita radical europeia e as suas agendas ultra-conservadoras.
As tropas de Trump
Boa parte do modo como o ativismo anti-direitos é concebido hoje em dia – com ONG grandes e bem financiadas a lançarem campanhas coordenadas com outros atores políticos, copiando frequentemente as formas de mobilização dos movimentos sociais de esquerda – devemos a estas direitas religiosas norte-americanas. Começaram a organizar-se de forma muito semelhante à que conhecemos hoje, a partir da segunda metade da década de 1970 e em reação às revoltas de valores de 68 e às lutas feministas/LGTBIQ+. Desde essa década, o seu principal objetivo tem sido anular o acesso ao aborto nos Estados Unidos, algo que conseguiram em grande parte. Desde que o Supremo Tribunal anulou a proteção deste direito, calcula-se que uma em cada três mulheres já não tem acesso a um aborto seguro neste país.
Durante a década de 1990, foram criados os principais grupos anti-direitos, como a International Organization for the Family – que organiza os Congressos Mundiais da Família -, a Alliance Defending Freedom (ADF) ou o American Center for Law and Justice (ACLJ), que tem uma versão europeia. Estas, em concreto, são as que têm uma presença mais forte no continente europeu, pois compreenderam que para lutar contra o aborto nos Estados Unidos – ou contra outros direitos associados ao género – era necessário influenciar a legislação ou a jurisprudência de outros países, o que constituiu um grande impulso para a campanha transnacional contra a “ideologia de género”.
Uma das mais ativas na Europa é a Alliance Defending Freedom (ADF), que se gaba de ter contribuído para a elaboração de leis sobre o aborto tão restritivas como a do Mississipi e de ter conseguido travar políticas anti-bullying em instituições públicas destinadas a prevenir a depressão ou mesmo o suicídio de pessoas LGTBIQ+.
Funciona como uma espécie de Abogados Cristianos, apesar de enorme – em 2022 o seu orçamento era de 104 milhões de dólares. A sua última declaração fiscal indica que duplicou o seu investimento na Europa desde 2018 – de 2,6 milhões de dólares em 2018 para 4,3 milhões de dólares em 2019 – de acordo com a Corporate Europe. Dispõe de 2.200 advogados colaboradores que estiveram envolvidos em mais de 500 casos perante fóruns nacionais e internacionais, como explicam na sua página de Internet. “Dirigimos casos que apresentamos perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e colaboramos à escala local com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, acrescentam.
O Centro Europeu para o Direito e a Justiça e a ADF intervieram em dezenas de processos judiciais europeus ao longo da última década: opuseram-se à adoção por casais do mesmo sexo; apoiaram médicos e empresas que se recusam a prestar serviços a mulheres e a pessoas LGBT; e, em pelo menos sete casos, apresentaram argumentações jurídicas – Amicus curiae – em tribunais europeus em apoio das posições anti-género do Governo polaco.
O direito como arma ofensiva
Hoje em dia, estes grupos não só promovem os valores fundamentalistas cristãos no campo social, como também fazem lóbi junto da UE, financiam organizações com os mesmos objetivos e tentam influenciar a legislação na Europa ou noutras partes do mundo, fazendo pressão para que sejam aprovadas leis nacionais ou mesmo reformas constitucionais.
O exemplo da Roménia é claro. Aí apoiaram as organizações locais que, em 2018, promoveram uma iniciativa legislativa popular que procurava impedir a futura aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo – e outros direitos associados, como a adoção. Esta iniciativa procurava incluir na Constituição desse país uma definição de casamento como consistindo exclusivamente na “união de um homem e uma mulher”. Neste caso, a direita norte-americana ajudou as suas organizações locais afins com recursos económicos, argumentação jurídica ou patrocinando várias conferências no parlamento nacional em apoio à mudança.
No entanto, a grande campanha, com notícias falsas incluídas, onde se dizia, por exemplo, “se não fores votar, dois homens podem adotar o teu filho”, não surtiu efeito. A reforma não foi para a frente por falta de participação, mas como acontece nestes casos, para estes atores, colocar no debate público que o casamento é unicamente heterossexual pode já aproximá-los dos seus objetivos. Além disso, este tipo de guerras de género projeta politicamente os atores fundamentalistas locais ou os partidos de ultra-direita, que assumem protagonismo durante estas campanhas. Embora noutros casos, como na Polónia, propostas semelhantes promovidas por grupos anti-direitos como o Ordo Iuris tenham funcionado e conseguido proibir a principal forma de acesso legal ao aborto através de uma moção de inconstitucionalidade. É fácil ver aqui uma réplica do funcionamento dos seus congéneres americanos.
Litígio estratégico
Para impulsionar as suas guerras de género, servem-se de uma ferramenta fundamental para a extrema-direita em todo o mundo, nomeadamente o litígio estratégico, que serve tanto para processar os seus adversários como para criar precedentes legais. Por exemplo, apresentam muitos casos ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem porque essas sentenças podem ser utilizadas como argumentos legais em processos judiciais nos EUA.
A Abogados Cristianos, em Espanha, é uma réplica do funcionamento destas organizações na Europa ou nos EUA, defendendo gratuitamente aqueles que assediam, à porta das clínicas (as “orações públicas”), mulheres que vão fazer abortos; pais que protestam contra a educação sexual nas escolas; acusam ativistas feministas ou LGTBIQ+ de crimes de ódio ou contra a liberdade religiosa; ou agem contra políticos e políticas progressistas. Um exemplo recente são as ações judiciais apresentadas contra a mulher do presidente do governo espanhol Pedro Sánchez. Tanto o Hazte Oír como o Manos Limpias apresentaram as suas próprias queixas, e partidos de ultra-direita como o Vox ou os ultra-minoritários Iustitia Europa e PorTodos apresentaram acusações populares em busca de atenção mediática e de informação direta sobre o processo.
Uma das principais estratégias jurídicas que estão a ser importadas dos Estados Unidos para a Europa é a defesa da “liberdade religiosa” ou da “liberdade de expressão”. Wendy Brown, em The Ruins of Neoliberalism, fala da criação de uma “jurisprudência neoliberal” nestes casos, em que a liberdade de expressão das empresas é reconhecida, permitindo-lhes contornar a legislação anti-discriminação ou de crimes de ódio – que criminaliza declarações públicas contra pessoas trans ou outros dissidentes sexuais. Brown dá o exemplo de um pasteleiro que se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal homossexual, mas ganhou o caso porque qualquer atividade ou produto – neste caso, o bolo – foi considerado “discurso” protegido pela liberdade de expressão. Embora estes casos estejam muito adaptados ao direito americano, demonstram a astúcia do movimento anti-direitos, acumulada ao longo de 50 anos de atividade, que utilizam para criar uma nova jurisprudência europeia a seu favor.
Tarefas de lóbi
Para ter uma ideia da capacidade destas organizações norte-americanas na Europa, podemos seguir o rasto do dinheiro. As doze maiores investiram pelo menos 80 milhões de dólares desde 2008, de acordo com o Corporate Europe Observatory. Não se trata de um valor pequeno e é provável que seja muito mais elevado, uma vez que a opacidade é considerável. Desde 2010, as instituições europeias têm assistido a um aumento muito significativo da atividade dos grupos de pressão religiosos. As suas atividades no Parlamento Europeu consistem em fornecer formação e recursos a deputados que partilham as mesmas ideias ou em organizar campanhas mediática e de pressão. Mas também se dedicam a bombardear os deputados com relatórios e comunicações sobre as suas questões emblemáticas. Uma delas, evidentemente, é o aborto. Recentemente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução – simbólica – para tornar o aborto um direito fundamental, depois de a França o ter incluído na sua Constituição. Durante a votação, os eurodeputados receberam um feto de plástico realista, juntamente com uma carta contra o aborto.
Em todo o caso, e apesar da auto-promoção da sua propaganda – que normalmente exagera a sua própria capacidade – estes atores internacionais não são omnipotentes. Evidentemente, os vastos recursos materiais de que dispõem e as suas redes internacionais servem para fazer avançar as suas ideias e o seu projeto político em aliança com outras forças conservadoras; no entanto, precisam de encontrar um ecossistema cultural favorável e não conseguem grandes vitórias onde os movimentos feministas/LGTBIQ+ são mais fortes. A batalha, portanto, continua em aberto.
Nuria Alabao é uma jornalista, investigadora e antropóloga espanhola especializada em feminismos. Colabora com diferentes meios de comunicação social e participou em vários livros coletivos.
Texto publicado originalmente no CTXT. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.