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Comissão Europeia quer aproveitar crise energética para recuar na regulação ambiental

A invasão russa da Ucrânia agravou a subida dos preços da energia, que já vinha do ano passado, e colocou novos problemas aos países da União Europeia, dadas as discussões sobre o possível embargo às importações de petróleo e gás natural russos, que constituem uma parte substancial do consumo de combustíveis fósseis da UE.
Poucos dias após o início da guerra, a Comissão Europeia apresentou uma comunicação em que afirmava a necessidade de acelerar a transição energética, substituindo os combustíveis fósseis por outras fontes (sustentáveis) de energia e reduzindo a dependência da Rússia. Na mesma comunicação, a Comissão sublinhava a importância de diversificar as fontes e reconhecia a necessidade de medidas de curto prazo para fazer face ao aumento dos preços da energia, como a regulação temporária dos preços ou a definição de impostos sobre os lucros extraordinários registados pelas grandes empresas do setor.
Mas as ações não se parecem alinhar com as palavras. Num documento de trabalho a que o Financial Times teve acesso, percebe-se que a orientação é para reduzir a regulação ambiental da União. A Comissão considera que “os processos administrativos longos e complexos são uma barreira fundamental aos investimentos em renováveis e nas infraestruturas relacionadas”, pelo que quer passar a permitir que as empresas construam projetos de energia solar ou eólica sem terem de apresentar um estudo de impacto ambiental. Estes estudos são o que permite perceber os impactos que os projetos podem ter no ambiente e na biodiversidade.
Cortar ou promover o gás natural?
Um dos aspetos chave da comunicação da Comissão Europeia é o das metas estabelecidas para o aumento da produção e utilização de renováveis (e, em consequência, para a redução dos combustíveis fósseis). A proposta apresentada esta quarta-feira pela Comissão prevê aumentar a meta estabelecida para o peso das renováveis até 2030 de 40% para quarta-feira 45%. Além disso, refere por diversas vezes a urgência de diversificar as fontes de energia para reduzir a dependência de combustíveis fósseis.
O problema é que, em simultâneo, decorre um processo legislativo lançado pela mesma Comissão Europeia para incluir o gás natural e a energia nuclear na Taxonomia europeia. A Taxonomia é uma espécie de guia para os mercados financeiros da UE, já que define os critérios para a classificação de energias verdes para efeitos de investimento sustentável. A ideia é permitir aos investidores identificar os projetos que são ambientalmente sustentáveis na hora em que decidem investir.
Ao incluir o gás natural neste documento, a Comissão está a promover o investimento privado na sua produção e distribuição. A decisão contraria a posição de várias ONGs ambientais e a opinião dos próprios especialistas da Comissão, que criticaram o enfraquecimento dos critérios ambientais. A palavra “greenwashing” (isto é, a tentativa de “enverdecer” atividades que não o são) tem sido utilizada para descrever a atuação da Comissão.
Um grupo de 28 eurodeputados do grupo da Esquerda, incluindo os bloquistas Marisa Matias e José Gusmão, publicou um manifesto contra esta decisão, que denunciam como “um instrumento de lavagem verde para investidores e empresas”. Na prática, a decisão “poderá implicar que os recursos e fundos públicos e privados, destinados ao financiamento da mudança do modelo de produção, sejam utilizados para consolidar a remediar um modelo ultrapassado”.
Indústria fóssil continua a expandir-se
Enquanto a União Europeia se debate com as contradições entre os discursos e as medidas adotadas, a indústria fóssil continua a expandir as suas atividades. A investigação do jornal britânico Guardian dá conta de que as grandes empresas mundiais do setor têm planos milionários para expandir as atividades relacionadas com a exploração de petróleo e gás natural.
Entre estes planos de expansão, incluem-se 195 “bombas carbónicas”, ou seja, projetos de enorme escala que implicariam, cada um, um aumento de mil milhões de toneladas de emissões de CO2. O Guardian refere ainda que boa parte destes projetos se localiza nos países do Sul Global (nomeadamente, África, América Latina e Ásia) e acusa os países ricos de terem “uma mentalidade colonial” ao não atuarem para impedir que as multinacionais continuem a desenvolver estes projetos nesses continentes.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, já se referira a este problema aquando da publicação do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental Sobre as Alterações Climáticas). “Posto de forma simples, [as empresas] estão a mentir e os resultados serão catastróficos”, disse. Guterres afirmou ainda que “os ativistas climáticos são por vezes apresentados como radicais perigosos, mas os verdadeiros radicais perigosos são os países que estão a aumentar a produção de combustíveis fósseis”.
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