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Chile rebelde prepara-se para reescrever a Constituição

Um ano depois de uma rebelião que sacudiu as bases do projeto neoliberal, o plebiscito definirá, neste domingo, formato da Constituinte. Quem a comporá? Quais os seus poderes? Como as elites tentam limitar ou mesmo sabotar processo? Por Vitor Hugo Tonin.
Chile, comício de apoiantes de uma nova Constituição, 22 de outubro de 2020 – Foto de Elvis Gonzalez
Chile, comício de apoiantes de uma nova Constituição, 22 de outubro de 2020 – Foto de Elvis Gonzalez

No próximo domingo, dia 25, o povo chileno irá às urnas responder a duas perguntas: 1) se quer ou não ter uma nova constituição e 2) que tipo de órgão deve escrevê-la. Esta consulta popular foi uma das principais vitórias do povo chileno que se rebelou em 18 de outubro de 2019 e ocupou durante semanas as ruas de todo país. No auge das manifestações, o presidente direitista Sebastián Piñera disse que o país estava em guerra, apenas poucos meses depois de ter afirmado que o Chile era um oásis de paz e prosperidade na América Latina.

Nesta guerra contra o seu próprio povo, Piñera mobilizou todo o aparato repressivo do Estado para reprimir as manifestações e tentar assustar os manifestantes: mais de 30 pessoas foram mortas, 460 tiveram trauma ocular, muitas delas ficaram cegas já que a polícia mirava as balas de borracha na altura dos olhos dos manifestantes, mais de 2 mil pessoas presas e 5 mil vítimas de violações e abusos por parte da polícia. Mesmo assim o povo não deixou as ruas.

as manifestações não eram somente pelos 30 pesos de aumento no transporte público, mas por 30 anos de abuso

Sem nenhuma legitimidade, restando-lhe apenas o apoio da alta elite chilena e das forças repressivas, Piñera ameaçou elevar ainda mais o nível da repressão se os partidos não chegassem a um acordo de pacificação do país. Este “Acordo pela paz”, feito por cima, no Congresso, propôs ao povo chileno decidir sobre a realização de uma convenção constituinte para finalmente substituir a Constituição escrita em 1980 e atualizada em 1988 durante a ditadura de Augusto Pinochet. Afinal, as manifestações não eram somente pelos 30 pesos de aumento no transporte público, mas por 30 anos de abuso, como afirma a principal palavra de ordem da rebelião popular.

Assim originou-se o plebiscito, que deveria ter se realizado em 26 de abril, mas foi adiado para o domingo próximo em virtude da pandemia. Abaixo elenco as principais possibilidades de resultado e seus desdobramentos para o futuro.

1. Tende a ser a maior participação eleitoral da história do Chile, apesar da pandemia;

2. Até a maior parte das classes dominantes estão a apoiar a realização da convenção constituinte, portanto, a vitória eleitoral do “sim” deve ser grande;

3. As disputas começam mesmo na segunda pergunta do plebiscito que se refere ao “como” será a constituinte. As classes dominantes querem uma convenção mista, com apenas metade eleita pelo povo e a outra metade indicada pelo congresso atual, profundamente deslegitimado. Com isso, as classes dominantes querem restringir a participação popular. Os setores populares fazem campanha por uma “convenção constitucional” totalmente eleita, com paridade de género e cotas de representação para os povos originários.

4. Os resultados em relação a esta segunda pergunta expressarão a correlação de forças do processo constituinte. É provável que o povo vença essa segunda pergunta, mas com que margem?

5. Esse resultado é importante indicador sobre o futuro do processo. Após o plebiscito o povo será chamado a eleger “deputados” constituintes no dia 11 de abril de 2021. Esta eleição será decisiva, pois uma das regras colocadas para a convenção constituinte é o quórum mínimo qualificado de dois terços para qualquer aprovação. Este alto quórum tem objetivo de bloquear mudanças mais radicais exigidas pelo povo chileno.

6. Além disso, alguns temas como os Tratados de Livre Comércio (TLC), o regime “democrático” e até o nome do país foram proibidos de serem debatidos pela assembleia constituinte (artigo 135 do acordo de paz). O que é uma grave limitação ao poder originário constituinte. Os TLCs, por exemplo, são os principais responsáveis pela manutenção e aprofundamento do modelo económico primário exportador em vigência no Chile desde Pinochet. Logo, se os TLCs não forem revistos, o modelo económico tende a continuar a ser o mesmo. Não se parte, portanto, de um livro completamente em branco.

7. Para fazer frente a estes desafios o povo chileno precisa de forças e organização para: i) garantir com ampla margem uma assembleia constituinte totalmente eleita para este fim no próximo domingo; ii) eleger mais de dois terços de representantes constituintes no próximo 11 de abril; e iii) pressionar para reverter no atual Congresso, na Convenção Constitucional ou no Supremo Tribunal, as ilegítimas limitações impostas ao poder constituinte pelo artigo 135.

Depois de derrotarmos Macri na Argentina e o golpe na Bolívia é hora de derrotar a direita também no Chile.

Artigo de Vitor Hugo Tonin, doutorando em Desenvolvimento Económico, investiga questão urbana no Chile, publicado em Outras Palavras.

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