No próximo mês passam cem anos do que é considerado o momento fundador do movimento surrealista. Foi em outubro de 1924 quando André Bretón, o pai do movimento, apresentou na forma manuscrita o Manifesto do Surrealismo.
A 1 de outubro de 1924 foi publicado o primeiro número da revista Surrealismo com um manifesto, mas o manuscrito de Breton, publicado a 15 do mesmo mês, é considerado o Primeiro Manifesto do Surrealismo, que levou à primeira cisão do movimento em construção. Passados cinco anos redigiu-se o Segundo Manifesto que já evidenciava um claro e polémico conteúdo político.
Em 2017 o Ministério da Cultura de França recuperou para o património público o Manifesto original e declarou-o “Tesouro nacional”.
Por estes dias, o Centro George Pompidou de Paris, comemorando o centenário, montou uma mega-exposição em forma de labirinto, com mais de 500 obras e documentos. Como comenta o jornalista cultural Álex Vicente, “os criadores hoje voltam a defender os ensinamentos do surrealismo: o poder do maravilhoso e do poético como arma para sobreviver num mundo à deriva”.
Realidade absoluta, irrealidade
Segundo Bretón o surrealismo “É um ditado do pensamento, sem a intervenção reguladora da razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral”. No seu manifesto, apresenta a “escrita automática” como aquela que exprime verdadeiramente o pensamento sem barreiras, que favorece o desabrochar da imaginação e propõe prescindir das reflexões e as análises racionais “… que distorcem o produto do pensamento puro”. Ao mesmo tempo, atribui grande importância à força das imagens e dos sonhos, que muitas vezes combinam visões muito lúcidas com verdadeiros absurdos…
É uma outra forma de ver a realidade. “Uma realidade absoluta, uma irrealidade” que deu origem a um movimento que se opunha firmemente à mecanização da sociedade. O surrealismo forjou-se como um pensamento ancorado na literatura, mas depressa se estendeu a outras expressões de arte, como o cinema (Luis Buñuel), as artes plásticas (Salvador Dalí), a música (John Cage). Tentava transcender os limites da arte para invadir os próprios problemas da vida e da sociedade. O surrealismo converteu-se assim numa verdadeira conceção do mundo e a sua influência foi e continua a ser fundamental em todos os esforços de renovação no campo da cultura.
O movimento nasceu em Paris no período entre guerras, com o impulso inicial vindo de um grupo de homens jovens a que rapidamente se juntaram muitas mulheres. Nesses anos, a Cidade Luz foi o epicentro de uma intelectualidade renovada e muito ativa em todas as expressões artísticas e literárias, naquilo a que se chamou “Os Anos Loucos” e que o escritor Ernest Hemingway descreveu em “Paris era uma festa”. Mas foi também o período da ascensão das direitas nazi e fascista. Hitler na Alemanha, Primo de Rivera em Espanha, Mussolini em Itália, Oliveira de Salazar em Portugal…, a morte de Lenine deu lugar à ascensão de Estaline na Rússia Soviética. Foi neste contexto que surgiu o Surrealismo, que rapidamente se universalizou, dando origem a um movimento verdadeiramente internacionalista que teve uma forte influência durante a maior parte do século XX. Embora tenha sido formalmente dissolvido em 1969, continua em vigor como forma de pensar e ver a vida de uma maneira diferente. De acordo com o diretor do Centro de Estudos Surrealistas do México, Ricardo Echávarri, o movimento “é a vanguarda poética mais importante do período entre guerras e o movimento poético mais fértil da era contemporânea em todo o mundo”. Para o filósofo e sociólogo Michael Lowy, constitui “…uma visão do mundo, um modo de vida e uma tentativa eminentemente subversiva de mudar o mundo”. Uma confluência da aspiração utópica e revolucionária de Marx para transformar o mundo e da paixão poética de Rimbaud para mudar a vida.
Politização
A necessária revolução que o movimento propunha nas suas origens centrava-se no movimento artístico, na arte em geral. O Segundo Manifesto (fins de 1929), é um texto programático muito político e polémico que o diferencia do Primeiro. Bretón trata aí de explicar porque o surrealismo teria implicações políticas com a necessária revolução social.
O movimento já tinha dado sinais da sua politização em 1925, com fortes críticas às guerras, à Igreja Católica e pela liberdade dos presos e dos loucos. A revolução marxista e o comunismo definem-no cada vez mais e vários dos seus membros, entre os quais o próprio Breton, aderem ao PCF. Alguns dos seus membros assimilaram a lógica política do movimento comunista internacional, totalmente controlado pelo estalinismo, mas Breton e outros não duraram muito tempo. Foram expulsos pela direção do PCF e, a partir daí, aproximaram-se do trotskismo.
Em 1938, Breton foi convidado a dar uma série de conferências no México, patrocinadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros francês. A sua conferência mais importante foi no Palácio de Belas Artes, onde leu o documento Perspetivas do surrealismo e protagonizou leituras de poesia.
Através de Frida Kahlo e Diego Rivera, conhece Leon Trotski. Após três meses de discussões e trocas de notas, em que partilhavam a sua oposição ao nazismo e ao estalinismo, reivindicando ao mesmo tempo a liberdade absoluta da arte em relação aos aparelhos estatais e políticos, concordaram em redigir um documento conjunto: o Manifesto para uma Arte Revolucionária Independente (MARI). O texto foi redigido por Breton e revisto e corrigido por Trotski. Sabe-se que um parágrafo do original: “Liberdade total na arte, exceto contra a revolução proletária”, escrito por Bretón, foi corrigido por Trotski, que suprimiu diretamente a última frase do parágrafo. O artista devia politizar-se a si próprio, mas não a sua arte. Por razões de tática política, o revolucionário russo preferiu que a assinatura de Rivera acompanhasse a de Breton.
O MARI foi escrito numa altura em que os tambores da guerra prenunciavam o que viria a ser desencadeado um ano mais tarde. Um tempo que Victor Segre caracterizou na altura como a “Meia-noite do Século”. O manifesto deveria ser o ponto de partida para a Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI), uma organização que procurou expandir-se rapidamente em vários países mas que, devido a problemas políticos e organizacionais, teve uma vida curta.
Para Lowy e o historiador Horacio Tarcus, o manifesto tornou-se um instrumento indispensável para “…pensar a relação entre arte e política e continua a surpreender-nos com o seu cunho libertário, os seus cruzamentos com a psicanálise e a discussão ainda em aberto sobre o que arte possível é nas condições do capitalismo”.
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Conta-se uma anedota, que já me foi contada várias vezes com diferentes nuances, e que é muito própria do tema que estamos a descrever. Reconstruo-a da seguinte forma: Breton entrou no México pelo porto de Veracruz, onde foi detido durante várias horas pelas autoridades de imigração, que lhe apreenderam o passaporte e a bagagem, o que era uma afronta, uma vez que se tratava quase de um convidado oficial patrocinado pelo governo francês. Tudo lhe foi devolvido dias depois. Rivera instala-o na sua casa da Cidade do México. Surpreendido pelo requintado e variado artesanato mexicano, encomendou a um carpinteiro local uma mesa feita à mão, dando-lhe como guia um desenho do que pretendia. Alguns dias depois, o carpinteiro regressou com o trabalho encomendado, de uma beleza e de um acabamento requintado dignos do melhor marceneiro. Uma mesa de três pernas com diferentes alturas, o que a transformava numa espécie de abstração mobiliária. Quando Breton lhe pergunta: “O que é que fizeste?” “O que desenhaste”, responde o carpinteiro. Claro que o desenho estava em perspetiva e ele fê-lo tal e qual como o esboço…
Quando Breton dá a sua conferência “Perspetivas do Surrealismo” no Museu de Belas Artes, conta o que lhe aconteceu desde a sua entrada no país. O tratamento que lhe foi dado pelas autoridades de imigração, apesar de ser um convidado oficial, e depois o episódio do carpinteiro, e começa a sua intervenção dizendo: “Venho aqui para falar do surrealismo, mas os surrealistas são vocês”. Depois escreveria: “Não tentem compreender o México a partir da razão, terão mais sorte com o absurdo. O México é o país mais surrealista do mundo”.
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Surrealismo, talvez uma forma irreal de ver a realidade sob o governo anarcocapitalista de Javier Milei.
Eduardo Lucita faz parte do coletivo Economistas de Esquerda. Texto publicado no Viento Sur.