Em 1931, um delegação soviética participa no Segundo Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, em Londres. Na delegação estava Boris Hessen, físico que apresentou o seu trabalho As Raízes Sociais e Económicas dos Principia de Newton, com um novo paradigma através do qual analisar a história da ciência.
Na União Soviética, Hessen foi perseguido e assassinado pelo regime de Estaline poucos anos mais tarde. No Ocidente, a sua obra continuou a circular marginalmente. Hoje, é considerada uma das pedras basilares da historiografia da ciência.
Rui Borges traduziu, anotou e escreveu a introdução de As Raízes Sociais e Económicas dos Principia de Newton, que é agora reeditado pela Parsifal. Selecionou textos para e escreveu também a introdução de Einstein e Lenine em Moscovo, uma compilação de textos de Boris Hessen. Em entrevista ao Esquerda.net, fala sobre o contexto político e social da apresentação de Hessen e da sua importância para a história da ciência.
A apresentação do trabalho de Boris Hessen foi feita em 1931, no Segundo Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia. Que contexto internacional marca este acontecimento?
Em 1931, o mundo ocidental estava a passar por uma crise económica tremenda, com o grande crash da bolsa de 1929. Todas as economias do Ocidente estavam a sofrer e as pessoas também a sofrer com essa crise. Pelo contrário, na União Soviética a economia estava a crescer a um ritmo muito forte, na sequência do primeiro plano quinquenal, que estava a terminar por esta altura. E Estaline na época, quando soube deste congresso, achou que era importante enviar uma delegação, também por razões propagandísticas. Havia um congresso sobre a história da ciência e da técnica no Ocidente, que estava em crise. E ele achou oportuno ter uma intervenção para afirmar os grandes sucessos da economia soviética na altura.
Por quem era composta essa delegação?
Foi enviada uma delegação de oito cientistas. A delegação era chefiada pelo Bukharine, que tinha sido até há poucos anos Presidente da Internacional Comunista. Isso só por si é um motivo de escândalo em Inglaterra e a comunicação social fez muito barulho em torno da vinda desta delegação. E depois um conjunto heterogéneo de cientistas, alguns de grande renome internacional, como Nikolai Vavilov, que era uma pessoa ligada à questão da genética e da botânica, é um dos grandes cientistas desse campo do século XX a nível mundial. E também Abram Ioffe, que era um físico importante, que criou uma grande escola de física em São Petersburgo, que depois veio a produzir grandes descobertas no campo da física. E entre eles havia também Boris Hessen, que era uma figura desconhecida no Ocidente, mas que era uma pessoa que tinha tido um envolvimento muito grande numa série de debates filosóficos no final dos anos 1920 na União Soviética. Debates filosóficos que se centraram sobretudo nas questões da ciência. Hessen foi apresentar um trabalho que alguns autores durante muitos anos consideraram que foi feito à pressa para apresentar qualquer coisa nesta conferência, mas que na verdade é resultado de vários anos de investigação.

Hessen defende físicos como Einstein que, na União Soviética, são considerados como parte da ciência burguesa. Havia uma tensão real sobre este tema dentro da União Soviética?
Havia uma tensão real, mas Hessen fazia uma argumentação bastante sofisticada. Havia uma corrente dentro do partido bolchevique que se dedicava a estas discussões, e que mantinha a defesa daquilo que tinha sido a física clássica. No início do século XX há uma grande revolução na física, com a formulação da teoria da relatividade restrita, de Einstein, mais tarde também da teoria da relatividade geral. E também com a elaboração de uma nova área, que é a mecânica quântica. Em ambos os casos, mostram uma imagem da natureza, do mundo, radicalmente diferente daquilo que eram os pressupostos da física clássica e revelam um mundo bastante mais complexo, nada intuitivo. Mas são teorias que são bastante sólidas, e havia na União Soviética quem achasse que aquilo não passava só de uns devaneios idealistas, porque não correspondia a nada de real e não era possível fazer experiências como se fazia na mecânica clássica. Entrava-se no mundo das pequenas partículas, em que tudo é menos visualizável. Ou seja, um eletrão não se comporta como uma esfera numa mesa de bilhar. Tem um comportamento radicalmente diferente, que não é algo que nós consigamos visualizar. Então havia todo um setor ligado ao Partido que rejeitava essas novas teorias, que dizia que representava o fim do materialismo, e que tentava insistir em continuar agarrado ao anterior paradigma da Física Clássica.
E qual é a resposta de Hessen?
Ele responde que o verdadeiro materialismo é conseguir encarar o mundo tal como ele é. E pode ser contraintuitivo, mas se é assim, temos de corrigir a nossa perspetiva acerca do que é a natureza, e de como são as suas leis. E incorporar isso para enriquecer a teoria materialista. Desse ponto de vista, ele chegava a desafiar e a dizer aos seus adversários que, se achavam que a mecânica quântica não está certa, não iam resolver o assunto a escrever artigos no Pravda. Que tinham de escrever artigos em revistas científicas a mostrar que essa teoria não está certa.
Portanto, tinha uma conceção mais próxima do sistema científico ocidental, até porque ele tinha estudado em Edimburgo.
Passou só um ano em Edimburgo. O primeiro ano da faculdade. Quando terminou o ano letivo, voltou à Rússia para passar férias, mas começou a Primeira Guerra Mundial e ele já não conseguiu voltar a viajar. Completou os estudos na Rússia.
Em relação ao tema do livro, hoje em dia já tomamos por garantido a investigação dos contextos materiais onde as ideias surgem. Mas naquela época era revolucionário, não?
A disciplina da história da ciência ainda era muito incipiente. E muitas pessoas dedicavam-se a estudar a vida dos grandes cientistas, as experiências vividas, as teorias que os cientistas produziam, os debates, as discussões, por aí fora. Quando Hesen chega a Londres e apresenta esta comunicação sobre Newton, fá-lo com um elemento quase provocatório. Vem alguém completamente desconhecido a Londres, falar sobre Newton e dizer que tem um método de análise que explica não só porque é que Newton escreveu o que escreveu no seu livro principal, mas também mostra que, ao contrário do que era um pouco do senso comum na época, que a ciência não é feita por génios enviados pela providência divina. Explica que Newton trabalhou sobre uma série de materiais já existentes e, no fundo, o seu génio foi ter resolvido os problemas da sua época. Fez uma síntese dos grandes problemas da física da sua época e expressou-os de forma matemática, num livro que se tornou quase uma enciclopédia da física da sua época. E a apresentação de Hessen foi um grande choque. Ele fez uma análise marxista da evolução da ciência, do aparecimento da ciência, dessa coincidência do aparecimento da ciência moderna com a ascensão do capitalismo.
Em que sentido é que é uma análise marxista da ciência?
Começa a analisar a sociedade como um todo. Não tem a perspetiva de que a sociedade é um conjunto de parcelas que se unem para formar uma sociedade. A perspetiva é o oposto. Olha-se para a sociedade como um todo e depois vê-se as várias ramificações que essa nova estrutura social, que é o capitalismo, produz no seu desenvolvimento. E a ciência é uma delas. E, claro, ele considera que a ciência não é uma atividade independente, e que está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que absorve formas de trabalho, preconceitos ideológicos, enfim, toda uma série de coisas. Porque a ciência é uma parte orgânica da nova sociedade que surge nos séculos XVI e XVII.

Qual foi a reação ao trabalho de Hessen na União Soviética?
Foi muito maltratado. Boris Hessen foi executado. Não existem provas concretas, mas as provas circunstanciais, sugerem que ele era um sujeito ligado a alguns setores da oposição a Estaline. Foi preso um ou dois dias antes do início do primeiro processo de Moscovo, em 1936. Pretendia-se que fosse um dos acusados e que aparecesse no julgamento como tal. Mas Hessen, ao contrário de outros que foram um pouco enganados sobre as consequências desses julgamentos, sempre se recusou a aceitar as acusações que lhe foram impostas. De que estava a colaborar com os nazis para derrubar o governo soviético. Hessen era judeu de origem. Foi preso em agosto de 1936 e foi formalmente acusado a 20 de dezembro, e executado no mesmo dia. Os trabalhos dele foram simplesmente ocultados, deram-se ao trabalho de tirar todos os escritos dele dos índices das revistas científicas- O nome dele desapareceu na União Soviética.
E no Ocidente, como reagiram à sua apresentação e ao novo paradigma que instituiu?
O seu trabalho continuou a circular, porque teve um impacto muito grande. Houve uma série de cientistas, ingleses que participaram no congresso, que eram jovens de esquerda e que ficaram muito entusiasmados com as comunicações desta delegação soviética. E, em particular, com o trabalho de Hessen. Portanto, o trabalho continuou a circular mas sujeito a uma série de interpretações, muitas delas infundadas. Por um lado, adeptos da União Soviética como John Desmond Bernal, que desenvolveram uma série de análises que reconheceram o trabalho de Hessen e se apoiaram nele para depois desenvolver uma série de explorações do papel da ciência na sociedade moderna. Mas quando Hessen desapareceu, essas pessoas nunca perguntaram a ninguém o que tinha acontecido. Por outro lado, também foi muito maltratado por aqueles que no Ocidente quiseram fazer uma crítica dessa abordagem marxista. Mas muitos desses críticos nunca se deram ao trabalho de ler com atenção o texto. Impuseram-lhe a autoria do externalismo como método de análise. Mas Hessen não acha que a ciência seja uma atividade independente.
Essa visão de que a ciência está interligada ainda está em disputa?
Sim. Esta questão das análises internalistas e externalistas continua em voga, continua a fazer-se. Claro que já não de forma tão sectária como se fazia nesta época, mas há trabalho feito na tentativa de fundir um pouco as duas questões. Eventualmente talvez as pessoas acabem por regressar à perspetiva do Hessen, mesmo que por outras vias.
Mas na discussão científica, a posição de Hessen na União Soviética em defesa de Einstein e da física quântica acabou por se comprovar.
A partir do final dos anos 20, Estaline impõe toda uma regra de autarcia total da União Soviética em relação ao exterior. Mas há toda uma geração de físicos que já vinham do período pré-Revolução e que estavam integrados na rede mundial de cientistas. E muitos destes cientistas fizeram também uma parte da sua formação fora da Rússia. Por exemplo, aquele que foi o grande físico soviético no século XX, Lev Landau, foi uma pessoa que durante os anos 20 teve a oportunidade de passar muitos meses a viajar pela Europa. Considerava-se um discípulo do Niels Bohr, pai da mecânica quântica. Essa geração depois produziu uma série de prémios Nobel, que depois até apoiou o desenvolvimento do programa atómico soviético. E já vinha de uma trajetória em que tinha participado muito ativamente na construção das novas teorias físicas em conjunto com outros cientistas de outros países. E claro, quando os americanos rebentam a bomba atómica, enfim, pode ser ciência burguesa mas se dá para fazer bombas atómicas...
Que espaço resta hoje na história da ciência para Boris Hessen?
Tem havido um ressurgimento de interesse na sua obra. Têm sido publicados nos últimos anos vários livros sobre ele, têm sido feitas várias traduções. Durante muito tempo o único texto que estava divulgado era este. Mas começou a redescobrir-se o outro trabalho que ele produziu e tem havido realmente um ressurgimento de interesse. Há vários grupos e vários cientistas nos Estados Unidos, na Europa, que têm vindo a pegar novamente no trabalho do Hessen. Agora houve um grupo em Itália que descobriu que ele estaria a preparar um grande volume sobre história da ciência. E que quando percebeu o que estava a acontecer politicamente na União Soviética, e quando percebeu que a sua vida estaria em perigo, ainda fez alguns esforços para tentar publicar.