No seu último discurso enquanto presidente da República por ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou a ideia da necessidade de combater a pobreza. “São sempre entre dois e três milhões [de pessoas], e são muitos há muito tempo, regime após regime, situação após situação, intoleravelmente são muitos, são de mais”, afirmou.
A cerimónia contou com a condecoração de Ramalho Eanes com o grande-colar da Ordem Militar de Avis e um discurso da escritora Lídia Jorge, que presidiu às comemorações deste ano, e aproveitou para condenar o racismo, a escravatura e a cultura da mediocridade.
Recordando o passado de escravatura na sociedade portuguesa, em que “em pleno século XVII cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana – população que os portugueses tinham trazido arrastados”, Lídia Jorge disse que isso “significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”.
Marcelo Rebelo de Sousa retomaria esta ideia no seu discurso ao referir “os quase 900 anos da pátria comum” para exprimir o seu “orgulho naqueles que a fizeram, vindos de todas as partes: gregos, fenícios, romanos, germânicos, nórdicos, judeus, mouros, africanos, latino-americanos e orientais” e também, “desde as raízes, lusitanos, lioneses, borgonheses, gauleses, saxões, os mais antigos aliados políticos. Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura, em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro”, acrescentou.
Em declarações à agência Lusa, a dirigente bloquista Joana Mortágua sublinhou “a ideia de uma Portugalidade aberta” no discurso do Presidente da República e a ligação deste ao discurso de Lídia Jorge que fez “não só uma crítica à ignorância, mas uma crítica ao elogio da ignorância que parece fazer parte dos nossos tempos e uma capacidade extraordinária de falar da história de Portugal a partir de Camões, mas sem o fazer de um lugar purista, cristalizado, ossificado”.
Ao afirmar que “não há nenhum português que possa dizer que é mais puro do que outro”, prosseguiu Joana Mortágua, o Presidente trouxe “a ideia de uma Portugalidade aberta, de que a identidade fechada não faz sentido historicamente”. Para a dirigente do Bloco de Esquerda, “querer definir o que é ser português a partir de determinadas características fechadas é uma mentira histórica”.
Joana Mortágua destacou ainda a referência presidencial ao combate à pobreza, pois entende que “a centralidade dos problemas das pessoas comuns continua a estar na desigualdade económica, na crise da habitação, na pobreza, na necessidade de cuidarmos uns dos outros, de mantermos uma comunidade que se constrói a partir dessa solidariedade e não a partir de uma falsa ideia de identidade”, sublinhou.
Sobre o discurso de Lídia Jorge, a dirigente do Bloco disse que foi “um discurso que demonstra um enorme amor a Portugal e à História de Portugal, não a partir de sentimentos e de atitudes de exclusão e ódio, mas a partir, precisamente, do contrário, de sentimentos de liberdade, da possibilidade de repensar a história”, incluindo a menção à escravatura que “ainda é rara ser feita quando se aborda a história de Portugal”.