Bangladesh: a etiqueta da tragédia

26 de dezembro 2016 - 19:02

Grandes marcas mundiais continuam a negligenciar a segurança nas fábricas do país asiático, diz relatório. Artigo do "The Guardian".

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Edifício da Rana Plaza colapsado, em 2013.
A destruição da Rana Plaza, em 2013, não deixou lições. Foto de Abir Abdullah/EPA/Lusa.

Uma organização apoiada por marcas de venda a retalho multinacionais, como a GAP, a Target e o Walmart, tem aprovado o funcionamento de fábricas no Bangladesh que ainda não implementaram as medidas de segurança vitais prometidas depois do desmoronamento do edifício Rana Plaza, em 2013, que matou 1.137 trabalhadores. É o que se pode ler num novo relatório publicado a 21 de novembro.

O The Guardian teve acesso exclusivo ao primeiro estudo sistemático independente das fábricas de roupas de Bangladesh usadas pelo consórcio de venda a retalho Alliance, criado após o desabamento da Rana Plaza, que provocou uma reação global dos consumidores contra as grandes lojas.

Três anos e meio depois do colapso do prédio, os autores concluem que as confeções fornecedoras de artigos para os maiores nomes do comércio mundial até agora não implementaram obras fundamentais, segundo seus próprios critérios, e que 62% ainda não têm saídas de incêndio viáveis. Outros 62% não têm sistemas de alarme de incêndio em funcionamento, enquanto que 47% têm com grandes problemas estruturais não corrigidos.

O relatório conclui que em alguns casos os prazos para reparos e melhorias definidos legalmente para 2014 e 2015 foram substituídos por um prazo em 2018, que coincide com o fim do acordo da Alliance.

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O consórcio rejeitou as conclusões do relatório e disse que este se baseou em informações imprecisas e desatualizadas. James Moriarty, diretor local da Alliance para Segurança dos Trabalhadores do Bangladesh, afirmou estar “totalmente confiante” de que as fábricas terão cumprido os critérios dos retalhistas até 2018, quando terminará o acordo. 

O desabamento fatal da Rana Plaza em Savar, Bangladesh, em abril de 2013, é considerado o pior desastre numa fábrica de roupas ocorrido no mundo. O acidente salientou as condições de trabalho perigosas na indústria local e levou a promessas de mudança dos retalhistas, que incluem a GAP, a H&M, o Walmart, a Target e outras marcas.

Na sequência da tragédia, as lojas formaram dois grupos para abordar as questões de segurança no Bangladesh. O primeiro, o Acordo sobre Segurança contra Incêndio e em Edifícios no Bangladesh, é liderado pela H&M e apoiado pela Adidas, a Benetton, o Marks & Spencer, o Tesco e outras. Os signatários aceitaram um acordo obrigatório aprovado por sindicatos internacionais e a publicação de relatórios detalhados de seu progresso.

O Walmart não quis assinar o acordo e fundou a Alliance para Segurança dos Trabalhadores do Bangladesh, organização voluntária integrada pela GAP, a Target, a Hudson’s Bay Company, cujas marcas são a Saks Fifth Avenue e o Lord & Taylor, e a VF Corporation, dona da North Face, da Timberland, da Vans e da Wrangler. A Alliance não publicou relatórios detalhados sobre o seu progresso.

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O novo relatório, intitulado “Atrasos perigosos na segurança dos trabalhadores”, foi compilado pelo Fórum Internacional de Direitos dos Trabalhadores, o Consórcio de Direitos dos Trabalhadores, a Campanha Roupas Limpas e a Rede de Solidariedade Maquila. Identificou 175 fábricas que fornecem aos signatários do acordo e da Alliance.

Com base em relatos detalhados do acordo sobre o progresso das fábricas que também produzem roupas para integrantes da Alliance, os autores produziram um relatório de progresso que analisa as descrições de situação de mais de 2 mil obras de segurança exigidas em 350 folhas de cálculo.

O relatório descobriu que das 107 fábricas rotuladas como “no prazo” pela Alliance, 99 ainda estavam atrasadas em uma ou mais categorias de segurança.

“A Alliance nunca ofereceu qualquer justificação para a decisão de ignorar os seus próprios prazos de segurança. Nem explicou por que é responsável por dar às fábricas quatro anos para realizar obras vitais que deveriam ser feitas em menos de um ano, enquanto ainda rotula essas fábricas como ‘no prazo’”, escreveram os autores do relatório.

Numa carta aos autores, Moriarty explicou a decisão da Alliance de modificar os seus prazos para as obras. “Em relação à métrica para categorizar o progresso duma fábrica, adaptamos as nossas medições para refletirem a questão central de se uma determinada fábrica estará substancialmente segura quando terminar, em 2018”, escreveu.

Moriarty levantou dúvidas sobre a metodologia do relatório. Disse ao Guardian que se encontra regularmente com os parceiros do acordo e “nunca foi levantado nada disso sobre estarmos atrasados nas questões de remediação”.

As duas organizações, disse o executivo, hoje dividem a avaliação das fábricas quando usam as mesmas instalações e, embora tenha admitido que os integrantes do acordo receberam atualizações regulares, afirmou ter ficado “confuso” com a afirmação de que “indivíduos mandarem e-mails uma vez por mês é mais confiável do que ter engenheiros treinados na inspeção das fábricas a relatarem as suas conclusões”.

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“Confio nos meus engenheiros. Eles não me mentem e eu não lhes minto quando coloco as coisas no papel”, disse. “Nós, na Alliance, fazemos algo que nunca foi feito antes. Pegamos uma indústria existente seriamente prejudicada e tentamos corrigi-la a partir do zero. A afirmação de que poderíamos ter feito tudo num ano é francamente ridícula para alguém que tem formação em engenharia ou segurança e compreende a situação passada ou atual da indústria.” 

Scott Nova, diretor-executivo do Consórcio de Direitos dos Trabalhadorer, defendeu a metodologia do relatório. Segundo ele, os integrantes do acordo estão conscientes de qualquer mudança de situação e regularmente têm contato com os gerentes das fábricas antes de atualizar os seus relatórios. “Qual seria o seu incentivo para não relatar o progresso?”

O relatório afirma que a falta de avanços coloca “em risco a vida de milhares de trabalhadores”. Os autores calculam que cerca de 120 mil operários de confeções empregados pelas 62 fábricas que produzem artigos para o Walmart não têm sistemas de saída de incêndio confiáveis. Outras 55 mil pessoas estão empregadas em fábricas que fazem roupas para a GAP e com saídas de incêndio comprometidas, de acordo com o relatório.

As questões persistem, apesar de 96% das fábricas na amostragem terem sido inspecionadas há bem mais de dois anos, escrevem os autores.

Enquanto o grupo também criticou as fábricas do acordo, Scott Nova disse que o grupo liderado pela H&M abordou as questões mais rapidamente que os integrantes da Alliance, e atribuiu a diferença a uma maior transparência.

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Numa medida significativa para melhorar a transparência, Moriarty disse que a partir de janeiro a informação de cada visita da Alliance será publicada no site da Compensação de Fábricas Justas (Fair Factories Clearinghouse, ou FFC), o mesmo sistema usado pelo acordo.

Dois pontos, relata Nova, têm contribuído para a falta de progresso: as empresas internacionais não pressionavam os donos das confeções e não contribuíam com dinheiro suficiente para os reparos. O custo médio de implantar as obras de segurança prometidas é de 400 mil a 500 mil dólares.

“O que motivou o Walmart e a Target a agir corretamente foi a vergonha pública. Já se passaram três anos e meio da Rana Plaza e eles acham que as memórias se estão a apagar”, explica Nova. “Este conjunto de dados exagera o progresso. Não estou a dizer que nada foi feito. Apenas que este trabalho deveria ter sido feito há muito tempo e vocês ainda têm grandes problemas que podem levar a fatalidades.” 

Artigo publicado por Dominic Rushe, a 24 de dezembro de 2016 na Carta Capital.