Colonialismo

Audição em São Bento refletiu sobre políticas públicas de reparação

20 de setembro 2024 - 22:38

A audição pública “Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas” juntou académicos e ativistas no Parlamento a convite do Bloco de Esquerda.

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audição pública “Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas” Foto Esquerda.net
Audição pública “Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas”. Foto Esquerda.net

Dezenas de pessoas participaram na audição pública promovida pelo Bloco na Assembleia da República. Na apresentação, a deputada Joana Mortágua definiu para a iniciativa o objetivo de “reconhecer um caminho de libertação, de quebrar silêncios e mitos sobre o colonialismo português, saber que consequências esse passado tem no presente e qual seria um caminho de políticas públicas de reparação”. Também presente na condução dos trabalhos, o líder parlamentar bloquista Fabian Figueiredo sublinhou que o partido quer “ouvir ativistas para nos ajudar no processo legislativo”.

Joana Mortágua e Fabian Figueiredo

Reparar

por

Miguel Vale de Almeida

02 de maio 2024

Nas intervenções de abertura, a cargo de Paula Cardoso, Anabela Rodrigues, Miguel Vale de Almeida e Miguel de Barros, apontaram-se alguns dos caminhos possíveis neste processo, que se quer participativo e orientado para a sociedade que temos, mais do que simplesmente imitar ou adaptar as políticas de reparação que vão fazendo o seu caminho no outro lado do Atlântico.

Paula Cardoso: “O direito a uma vida humanizada começa com a garantia de poder ser quem eu sou”

Paula Cardoso, jornalista da comunidade digital Afrolink, começou por dizer que desde cedo percebeu que a sua cor de pele e lugar de nascimento “faziam de mim uma criança não apenas diferente da maioria que me rodeava, mas também alguém visto como inferior e tratado exatamente nessa condição” e que “enquanto crescia, ser igual representava parecer menos negra e menos moçambicana”, razão pela qual ainda hoje sinta “alguma incompatibilidade” com a palavra igualdade, “que sinto como sinónimo de impossibilidade de ser a pessoa que sou”. Por essa razão propôs que se fale em “políticas e práticas de equidade”, que valorize as diferenças em vez de “continuar a instrumentalizá-las para dividir e excluir pessoas a pretexto de intenções de integração”.

Paula Cardoso

“Nunca senti necessidade de ser integrada. O que sempre busquei foi o direito a uma vida humanizada, que começa com a garantia de poder ser quem eu sou: pessoa negra, mulher moçambicana, que esta condição não faça de mim alvo de ódio, de alguém que seja privado dos direitos mais elementares, mais básicos de cidadania”, prosseguiu a jornalista, lamentando ser isso que acontece na sociedade portuguesa, das escolas à justiça, da violência obstétrica à policial. Em seguida deu um exemplo de reparação que deve ser feita, a propósito do caso de um filho de cabo-verdianos nascido em Angola em 1973 e obrigado a mudar-se para Cabo Verde no ano seguinte, e a quem há décadas é negada a cidadania portuguesa por causa da impossibilidade de conseguir um registo criminal do país onde nasceu. “Bastaria libertar da obrigação de apresentação do registo criminal quem tenha nascido em países colonizados por Portugal e que aí tenha vivido ainda menor de idade”, sugeriu, contrapondo que “não introduzir esta alteração, é, a meu ver, a assumir que nós, pessoas africanas, negras, nascemos com cadastro e que somos criminosos, criminosas até prova em contrário”. Paula Cardoso defendeu ainda a necessidade de uma “educação antirracista” nas escolas e ao combate a todas as discriminações.

Anabela Rodrigues: Começar a reparação pelos manuais escolares

Anabela Rodrigues, animadora cultural e ex-eurodeputada do Bloco, propôs um olhar para o passado e para a forma como ele é transmitido nas escolas, defendendo que “enquanto nós continuarmos a utilizar a palavra descobrimento para qualquer período do nosso país, não vamos continuar a falar de reparação”. Assim, “reparar pelos livros” é essencial para “criar uma autoestima e uma identidade em todos os nascidos em território nacional, independentemente de que a sua origem, até a bisavó, seja portuguesa”.

Anabela Rodrigues

“O Brasil já trocou a palavra descobrimento há alguns anos. Utiliza invasão. E as pessoas levaram o seu tempo, mas perceberam. Discutir estes termos é importante. Porque só a partir de começarmos a discutir estes termos, nós podemos falar de realmente de reparação”, prosseguiu Anabela Rodrigues.

Joana Mortágua
Joana Mortágua

Assumir a história não é crime

25 de maio 2024

Miguel Vale de Almeida: “É uma vergonha vivermos numa sociedade que não tem a decência de não ser racista”

O antropólogo e ex-deputado socialista começou por recordar como começou a refletir sobre estes temas quando estava no Brasil em 1997 a começar o trabalho de campo junto do movimento negro, “procurando perceber como construíam o seu discurso cultural e político” e  aí foi interpelado por ativistas pela sua identidade: branco e português. “Estas duas coisas criavam problemas na comunicação que felizmente soube identificar”. O resultado foi que “deixei de estudar o movimento negro no Brasil e comecei a tratar de outra coisa: o que é isso de ser português e branco em relação com pessoas negras ou oriundas do tráfico de pessoas escravizadas e do colonialismo”. E assim chegou ao estudo do lusotropicalismo e “a forma como a ditadura e o colonialismo tardio construiu uma fantasia de colonialismo não racista, a forma como isso construiu a identidade nacional portuguesa, fixada naquele momento dos descobrimentos e depois, legitimada, fazendo a conexão entre descobrimentos e colonialismo”.

“Devemos ensinar as crianças a não ser racistas, sem dúvida. Só que a negação do racismo português é manter a definição do racismo neste nível interrelacional e psicológico e recusar aquilo que a gente chama o racismo institucional e estrutural, que é aquele que advém da História”, prosseguiu, referindo “transmutações das mesmas lógicas” ao longo do tempo, da escravatura ao trabalho forçado e à imigração sem direitos.

Miguel Vale de Almeida

“É uma vergonha vivermos numa sociedade que não tem a decência de não ser racista. É uma vergonha. Precisamos de uma sociedade mais decente” e de mostrar que “esse racismo reside em questões estruturais de desigualdade”, que devem ser combatidas com “políticas específicas que tomem em consideração que o fator racial acresce aos outros fatores, por exemplo, ao da pobreza”. Isso implica “reconhecer que o racismo existe e que ele existe estrutural e historicamente”, o que é “terrivelmente desafiador” para o establishment português onde, aliás, o antropólogo também se insere. Contestando a “cultura da tradição francesa anticomunitarista e que vê no reconhecimento da existência de entidades etnorraciais um perigo gigantesco contra a ideia de cidadania”, Vale de Almeida contrapõe que “é justamente o não reconhecimento das identidades etnorraciais que constitui perigo para a cidadania, porque impede o acesso a ela”.

Quanto às necessárias políticas de reparação ou de ação afirmativa, Miguel Vale de Almeida diz que não devem ser “imitações do que se faz noutros sítios”, mas sim inventadas em conjunto, consultando as pessoas interessadas, com formas que “têm a ver com características desta sociedade” para que possam ser verdadeiramente produtivas.

Miguel de Barros: Os povos colonizados têm uma palavra a dizer sobre o processo de reparação

Nuno Pinheiro
Nuno Pinheiro

Não discutimos a pátria

04 de maio 2024

O sociólogo guineense Miguel de Barros começou por defender que o processo de reparação não pertence a Portugal e que os povos dos países colonizados têm uma palavra a dizer. E por isso defendeu o alargamento do debate a esses países, pois “é uma questão de legitimidade da fala, de legitimidade do direito à dignidade e de dizer também uma palavra relativamente àquilo que deve ser a reparação na sua sociedade colonizadora, que é outro elemento também que muitas vezes não é debatido”. Em seguida, lembrou que na véspera a UE tinha anunciado o acordo de pesca com a Guiné-Bissau, quando “a Guiné-Bissau não tem nenhuma frota pesqueira, nem tem nenhuma indústria de transformação e tem 210 variedades de peixes e não tem uma capacidade de para criar riqueza nacional. Isso é o neocolonialismo”, apontou, propondo “um novo pacto de dignidade e que permita as relações de solidariedade e não as relações comerciais”.

Miguel de Barros

“Enquanto nós fingirmos que o processo de reparação é no passado, não no presente, nós vamos continuar a manter a lógica neocolonial”, prosseguiu o sociólogo, sublinhando que África terá em breve a população mais jovem do mundo e “há todo o interesse do Norte global em precarizar a mão de obra africana para que ela venha na condição de fragilidade para o Norte global, fazer serviços precários e terem a menor esperança de vida e ao mesmo tempo contribuir para o sistema de segurança social, sem beneficiarem desse mecanismo”.

Ainda sobre os processos de reparação, Miguel de Barros interrogou-se sobre a dimensão ética que os sustentará, dando o exemplo ambiental. “O ambiente é um bem transacionável, é um commodity. Para nós, é um património. Não é transacionável, é um dom que tem que existir para manutenção de gerações”. Por outro lado, questionou os moldes de uma eventual reparação económica, a propósito da eventual criação de um fundo. “A quem é que esse fundo vai se destinar? Quem é que gere esse fundo? Como é que os povos colonizados se posicionam perante esse fundo?”. En conclusão, Miguel de Barros defendeu que não se pode pensar a reparação sem a justiça e a dignidade dos povos, sem os princípios de comércio justo e sem o reconhecimento do direito à África a ter capacidade de transformação estrutural.

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