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Argélia: greve geral contra uma farsa eleitoral

Cresce a mobilização de denúncia e boicote às eleições presidenciais de 12 de dezembro, destinadas a manter intacto o regime onde quem dá as cartas é o Exército. Por Luis Leiria.
Manifestação em Bejaia, durante a greve geral
Manifestação em Bejaia, durante a greve geral

A Argélia realizou este domingo (que lá corresponde à nossa segunda-feira) o primeiro dos quatro dias de greve geral convocada pelo movimento contra o regime, uma mobilização que dura há 42 semanas e que ficou conhecida como hirak. O objetivo da greve é denunciar as eleições presidenciais convocadas para dia 12, vistas como uma farsa, uma mera tentativa de disfarçar a permanência do regime cujo homem-forte é hoje o chefe do Exército, general Gaïd Salah. Para o povo que se tem manifestado ininterrupta e semanalmente, uma transição democrática só pode ocorrer se saírem de cena todos os principais representantes do regime que governa o país desde a independência, incluindo o próprio general Salah.

Sindicatos e partidos

Para além de convocada pelas manifestações da última sexta-feira, a greve geral foi invocada por alguns sindicatos que no decorrer do hirak ganharam independência do regime ou se constituíram entretanto, entre os quais a Confederação dos Sindicatos das Forças Produtivas (Cosyfop) o Snateg, que representa os trabalhadores da Sonelgaz, a distribuidora pública de gás e eletricidade, o SATEF (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação e da Formação) e o SNAPAP (Sindicato Nacional Autónomo do Pessoal da Administração Pública).

O Pacto das forças da Alternativa Democrática, frente de partidos de oposição, também apoiou a greve: “Chamamos as argelinas e os argelinos a aderirem a todas as formas de ações pacíficas projetadas pelo Movimento popular , incluindo a greve geral”, considerando imperativo “continuar a exprimir, pacificamente e na unidade, a rejeição da paródia de 12 de dezembro de 2019”. Compõem este Pacto a Frente das Forças Socialistas (FFS), o Reunião pela Cultura e a Democracia (RCD), o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Movimento Democrático e Social (MDS).

Apesar de não ser ainda possível fazer um levantamento rigoroso da adesão, pode-se desde já afirmar que a greve foi geral em Bejaia, o segundo maior porto do país e centro industrial importante, onde tudo parou: transportes, comércio, fábricas, o porto e as instalações da Sonatrach, a estatal de gás e petróleo. Os transportes públicos não circularam, tendo o comité de greve decidido que só poderão circular ao serviço do movimento popular. Às 17 horas, o comércio abriu, como previsto, para que as pessoas pudessem abastecer-se, porque a greve vai continuar.

A greve foi total também em Tizi Ouzou, Bouira e Boumèrdes e parcial em Setif e Batna. Na capital, Argel, a greve foi parcial. Alguns bairros amanheceram com o comércio fechado, mas não no centro, onde decorreu uma manifestação popular exortando os comerciantes a aderirem à greve. Os trabalhadores da Sonelgaz, distribuidora de gás e eletricidade, também estão em greve e fizeram manifestação nas ruas.

De destacar ainda o movimento universitário, que tem desempenhado um papel especial na mobilização e que paralisou totalmente as universidades.

Cinco candidatos do regime encenam a eleição

Às eleições da próxima quinta-feira concorrem cinco candidatos, todos com ligações assumidas ao regime. Dos cinco, quatro foram ministros de Bouteflika (dois foram mesmo primeiros-ministros) e o restante pertenceu ao comité central da FLN e exerceu o mandato de deputado durante dez anos.

Na última sexta-feira à noite, foi emitido um debate na TV entre os candidatos, que as televisões se apressaram a considerar “histórico” mas que, na opinião do jornal Liberté Argélie não passou de uma “farsa mediática”.

“Os jornalistas contentaram-se em ler perguntas previamente preparadas e circunscritas”, descreveu este jornal diário argelino. “Todos os assuntos suscetíveis de suscitar interesse ou de incomodar os candidatos foram assim conscientemente evitados. Nem a ‘revolução’ em curso, nem o balanço de Bouteflika, nem a corrupção, nem a violação das liberdades, nem a questão dos presos, nem a primazia do civil sobre o militar, nem o papel dos média, o da mulher, ainda menos a questão do projeto de sociedade estavam inscritos na ordem do dia deste ‘debate’ tão singular. A operação consistia em apenas distribuir a pergunta aos candidatos, sem possibilidade de réplica, em torno de certas questões sociais e económicas e dos eixos dos seus programas.”

Na opinião do diário britânico Financial Times, “a eleição presidencial argelina de quinta-feira foi uma experiência essencialmente humilhante” para os candidatos, que se viram em dificuldades para encher salas e tiveram de enfrentar multidões encolerizadas que os vaiavam e cobriam os seus cartazes de campanha de sacos de lixo. O título do artigo é: “Os argelinos vão boicotar o primeiro escrutínio depois da queda de Bouteflika” e o jornal recorda ainda que “desde a independência, o exército argelino é o principal árbitro do poder no sistema político, escolhendo os presidentes e controlando as principais decisões políticas e económicas por trás de uma fachada de liderança civil.”

Baixando o nível

O certo é que, ao contrário do que apostava o general Salah, o povo argelino não se cansou e até ganhou um segundo fôlego à medida que se aproximavam as eleições. A manifestação de 6 de dezembro, que lançou a palavra de ordem de greve geral, foi a última das sextas-feiras antes do dia 12 e uma das maiores de sempre.


Concentração dos estudantes da faculdade de Bab Ezzouar

Do lado do governo o nervosismo é visível. Diante do Senado, Salah Eddine Dahmoune, ministro do Interior, atacou violentamente os que se opõem a estas eleições, acusando-os de serem “traidores a soldo do colonialismo”, “pervertidos”, “homossexuais” e “mercenários”. Não se sabe por onde pegar nestas declarações: se pelo baixíssimo nível do seu autor, se pelo facto de ele estar a insultar milhões de pessoas, se pela assumida homofobia, ou ainda se pela evidência de que o ministro do Interior tem pouca noção do que ocorre no seu país. Enfim, como disse o escritor e realizador Sid Ahmed Semiane , “não é uma deriva isolada. A palavra deste ministro não é de um só homem, é a de um poder no seu conjunto. De um sistema moribundo e ordinário. E este poder deve partir. Com este ministro no caixote do lixo.”

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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