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Alterações climáticas e crise alimentar global
De acordo com Hickel, “a agricultura industrial é fundamentalmente irracional. Focada no crescimento a todo custo, é divorciada de qualquer conceção de necessidade humana e despreza os princípios da ecologia”.
Num artigo publicado no Foreign Policy, o antropólogo sinaliza que “se pedirmos às pessoas para citarem os maiores perigos colocados pelo clima, a maioria vai começar a listar eventos climáticos extremos”. Contudo, “enquanto o clima extremo representa uma ameaça real para as sociedades humanas (considere o que o furacão Maria fez em Porto Rico), alguns dos aspetos mais preocupantes das alterações climáticas são muito menos óbvios e quase invisíveis”, refere.
Hickel dá como exemplo o novo relatório de 1.400 páginas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que explora “os impactos das alterações climáticas sobre a característica mais fundamental e até íntima da civilização humana – o nosso sistema alimentar”.
Industrial agriculture is fundamentally irrational. Focused on growth at all costs, it is divorced from any conception of human need and pours scorn on the principles of ecology. What would it mean to apply #postgrowth principles to our food system? https://t.co/ur78lGLWfP
— Jason Hickel (@jasonhickel) August 22, 2019
“Considere os poderosos glaciares do Himalaia. Quando pensamos no derretimento dos glaciares, lamentamos a perda de uma maravilha natural e preocupamo-nos com a elevação do nível do mar. Não pensamos muito sobre o que os glaciares têm a ver com comida. Mas é aí que a verdadeira crise está a chegar”, escreve.
De acordo com o membro da Royal Society of Arts, metade da população da Ásia “depende da água que flui dos glaciares dos Himalaias - não apenas para beber e outras necessidades domésticas, mas, mais importante, para a agricultura”.
“Por milhares de anos, o escoamento desses glaciares foi reabastecido anualmente pela acumulação de gelo nas montanhas. Mas agora eles estão a derreter muito mais rapidamente do que estão a ser substituídos”, alerta.
Hickel vinca que, “na nossa trajetória atual, se os nossos governos não conseguirem reduções radicais de emissões, a maioria desses glaciares desaparecerá dentro de uma única vida humana. Isso vai arrancar o coração do sistema alimentar da região, deixando 800 milhões de pessoas em crise”.
Por outro lado, “no Iraque, na Síria e em grande parte do restante do Médio Oriente, as secas e a desertificação tornarão regiões inteiras inóspitas para a agricultura. O sul da Europa vai transformar-se numa extensão do Sahara. As principais regiões produtoras de alimentos na China e nos Estados Unidos também serão atingidas. De acordo com os alertas da NASA, as secas intensas poderiam transformar as planícies americanas e o sudoeste numa gigantesca bacia de poeira”, acrescenta.
O antropólogo afirma que, “hoje, todas essas regiões são fontes confiáveis de alimentos. Sem uma ação climática urgente, isso mudará”, lembrando que, “como David Wallace-Wells relata em The Uninhabitable Earth, os cientistas estimam que, por cada grau que aquecemos o planeta, os rendimentos das culturas de cereais básicos diminuirão em média cerca de 10%. Se continuarmos com os mesmos negócios, os itens básicos provavelmente entrarão em colapso em cerca de 40%, à medida que o século passar”.
“Em circunstâncias normais, a escassez regional de alimentos pode ser compensada por excedentes de outras partes do planeta. Mas os modelos sugerem que há um perigo real de que as alterações climáticas possam provocar a escassez em vários continentes de uma só vez”, aponta.
Hickel avança que estaríamos a enganar-nos se pensássemos que isso é apenas uma questão de não ter comida suficiente para comer: “Também tem sérias implicações para a estabilidade política global”, assinala, sublinhando que “as regiões afetadas pela escassez de alimentos assistirão ao deslocamento em massa à medida que as pessoas migrarem para regiões mais aráveis do planeta ou à procura de alimentos estáveis”.
“Na verdade, isso já está a acontecer”, continua o antropólogo: “Muitas das pessoas que estão a fugir de lugares como a Guatemala e a Somália estão a fazê-lo porque as suas culturas já não são viáveis”.
E, perante esta realidade, “os movimentos fascistas estão em marcha e as alianças internacionais estão a começar a desgastar-se”.
Para Hickel “há aqui uma ironia preocupante”: “As alterações climáticas estão a minar os sistemas alimentares globais, mas, ao mesmo tempo, os nossos sistemas alimentares são uma das principais causas do colapso climático”, sendo que, de acordo com o IPCC, “a agricultura contribui com quase um quarto de todas as emissões antropogénicas de gases de efeito estufa”.
“É claro que não é qualquer tipo de agricultura que é o problema aqui - é especificamente o modelo industrial que dominou a agricultura nos últimos cinquenta anos. Essa abordagem não depende apenas da desflorestação agressiva para abrir caminho para a monocultura em grande escala, que sozinha gera 10% dos gases de efeito estufa globais; depende também da lavra intensiva e do uso pesado de fertilizantes químicos, que está rapidamente a degradar os solos do planeta e, no processo, a libertar enormes nuvens de dióxido de carbono na atmosfera”, adianta.
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