Agricultura

Agronegócio = territórios a saque

06 de setembro 2025 - 10:31

Na ausência de reestruturação fundiária, sobreveio a pior das combinações possíveis: latifúndio e abundância de água. Duas décadas depois, está demonstrado que o latifúndio de regadio é mais predador ainda, dos pontos de vista ambiental e social, promovendo até o trabalho escravo.

porAlberto Matos

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Olival intensivo em Alfundão, Viana do Alentejo.
Olival intensivo em Alfundão, Viana do Alentejo. Foto de Paula Nunes

1. O Plano de Rega do Alentejo, lançado em 1957, começou a ser executado no âmbito do II Plano de Fomento (1959-1964), com a adjudicação da primeira fase da que viria a ser a barragem de Santa Clara, no rio Mira, inaugurada em 1969 e destinada a promover a agricultura de regadio.

2. O projeto Alqueva teve origem na mesma década, enfrentando forte resistência de um dos pilares do regime fascista: o latifúndio de sequeiro, beneficiário das campanhas do trigo de Salazar e adverso a mudanças que pusessem em causa o seu estatuto. Pequito Rebelo (*), um dos expoentes desta corrente agrária, alertava para o perigo do “socialismo hidráulico”, pois o regadio poderia conduzir à divisão da propriedade da terra – o que, até hoje ainda não aconteceu...

A primeira fase das obras de Alqueva arrancou em Julho de 1975, com a construção da ensecadeira que desviou o curso do Guadiana para permitir erguer o grande paredão da barragem. Mas a obra parou em 1978, por decisão do governo de Mário Soares, alegando os elevados custos de financiamento, embora as razões fossem de ordem política: o PS e a direita sabiam que o regadio poderia ter sido uma poderosa arma de transformação da agricultura e da propriedade fundiária. A contra reforma-agrária já estava em marcha, com a Lei Barreto (1977) e a decisão de relançar Alqueva só foi tomada pelo governo de Cavaco Siva depois de a revisão constitucional de 1991 ter expurgado a reforma agrária e as nacionalizações dos seus limites materiais.

3. As obras de construção da barragem recomeçaram em 1994 e em 1995 foi criada a EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, S.A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, assente no conceito EFM (empresa de fins múltiplos) e na gestão integrada da reserva estratégica de água de Alqueva.

Entre os fins definidos para a EDIA destacam-se:

  • o abastecimento público, com o reforço a 5 barragens que abastecem cerca de 200 mil habitantes;
  • a agricultura, com uma área equipada de regadio, atualmente, de cerca de 130 mil hectares e uma área de expansão de mais 40.000 hectares;
  • a indústria e a produção de energia limpa, na central hidroelétrica instalada no paredão da barragem e em milhares de painéis fotovoltaicos flutuantes;
  • o turismo.

Destes fins, a agricultura de regadio foi capturada em mais de 80% pelas monoculturas superintensivas de olival e amendoal; e a produção de energia hidroelétrica, destinada a cobrir os grandes consumos energéticos do sistema elevatório da água, foi alienada à EDP e ao Estado chinês, após a privatização desta empresa pelo governo Passos Coelho.

4. O que fazer com os solos e a água disponível

Em Fevereiro de 2002, finalmente, o enorme lago de Alqueva começou a encher, num dos últimos atos públicos do governo Guterres. Assegurada a disponibilidade de água, punha-se a velha questão: o que fazer com ela?

Foto gulfman1/Flickr
Foto gulfman1/Flickr

Para a esquerda, apesar da distração de alguns autarcas com o turismo, a prioridade só poderia ser a reestruturação agrária que pusesse fim a décadas de atraso e desemprego estrutural provocado pelo latifúndio

Para a esquerda, apesar da distração de alguns autarcas com o turismo, a prioridade só poderia ser a reestruturação agrária que pusesse fim a décadas de atraso e desemprego estrutural provocado pelo latifúndio. Nas condições do regadio, com uma produtividade muito superior ao sequeiro, proporcionada pelo investimento público sem precedentes, é razoável fixar um limite máximo de 50 hectares como referência, ajustável à tipologia dos solos. A partir desse limite, o Estado deveria proceder a expropriações e criar um banco de terras para arrendamento, incentivando a agricultura familiar e cooperativa, o rejuvenescimento da população agrícola, a diversificação e a rotação cultural, evitando repetir os erros das campanhas do trigo e preservando a qualidade dos solos. Ou seja, o Estado, através da EDIA, deveria assumir políticas de orientação agrícola e não ser um mero “vendedor de água” a quem a pudesse pagar, para melhor especular.

Foi esse o objetivo do projeto de Lei 383/VIII do PCP, apresentado pelo deputado Lino de Carvalho, em Maio de 2001, apoiado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda que, em Setembro do mesmo ano, através de Fernando Rosas, apresentou o projeto de resolução 150/VIII sublinhando os mesmos objetivos e vincando preocupações ambientais face à especulação fundiária e turística que já se desenhava em torno do grande lago de Alqueva. Infelizmente, estas iniciativas da esquerda parlamentar foram chumbadas quer pelo PS, então no governo, quer pelo PSD e CDS que lhe sucederam num cenário de “pântano político”.

5. Latifúndio + Água = especulação fundiária em larga escala

Na sociedade, como na Natureza, não há espaços vazios. Na ausência de reestruturação fundiária, sobreveio a pior das combinações possíveis: latifúndio e abundância de água.

Alqueva Fotografia de Mea/Wikicommons
Alqueva Fotografia de Mea/Wikicommons

Duas décadas depois, está demonstrado que o latifúndio de regadio é mais predador ainda, dos pontos de vista ambiental e social, promovendo até o trabalho escravo.

Entretanto, ocorreram enormes transformações no seio da classe latifundiária. Subsistem velhas famílias, herdeiras do grande leilão de terras promovido pelo liberalismo no século XIX, ainda que em lugar secundário face ao capital financeiro anónimo que domina as monoculturas superintensivas.

Vale a pena deter-nos sobre um ícone desta transformação: a Fonte dos Frades, outrora propriedade de Rosado Fernandes, ex-Presidente da CAP, deputado e eurodeputado do CDS; “campeão dos expropriados” de Alqueva, recebeu mais de 1,5 milhões de contos (7,5 milhões de euros) por terras alagadas pela grande albufeira. A Fonte dos Frades é hoje quartel-general do grupo De Prado em Portugal, onde foi instalado um mega lagar de azeite e uma unidade de conservação de azeitona de mesa, seguindo-se uma fábrica de descasque e embalamento de amêndoa, no coração de milhares de hectares de monoculturas que se estendem pelas freguesias de Baleizão, Neves e Quintos.

Em 2021, a Câmara de Beja concedeu ao grupo de Prado o PIER, uma exceção ao PDM que permite a instalação de agroindústrias e equipamentos não autorizados em espaço rústico, como prémio pela destruição de dezenas de sítios arqueológicos classificados no PDM de Beja para instalar olival e amendoal superintensivo. Do passado restou uma “relíquia” à beira da estrada: a casa das máquinas de uma piscina abandonada até pela família Rosado Fernandes, símbolo do parasitismo latifundiário.

6. Ao fecho das comportas de Alqueva sucederam-se anos da especulação fundiária pura e dura, com “estórias” de malas de dinheiro para comprar terras. Este período tem um rosto: Brígido Chambra, testa-de-ferro de investidores espanhóis que, em vésperas da crise financeira de 2008, perguntado sobre se o investimento em Alqueva era para continuar, deu como resposta: “não sei, quase nenhum é agricultor” – ficou claro que os capitais anónimos tinham tomado as rédeas. Desde então Brígido passou a ser mais discreto, mas em 2020, em entrevista ao Agroglobal, declarou: «O olival tradicional não tem hipótese de concorrer no mercado internacional».

7. O saque do território pelo hiperlatifúndio e a gigantesca concentração de capitais

Apesar da multiplicação de lagares, sobretudo espanhóis, por todo o Baixo Alentejo, muitas toneladas de azeitona continuam a ser carregadas em bruto para Espanha, onde são transformadas e exportadas como azeite “espanhol”. Mesmo nos azeites refinados em Portugal, registe-se a resistência dos produtos DOP, como os azeites de Moura, às tentativas de absorção por uma espécie de “marca Alentejo” dominada pelos grandes produtores, maioritariamente espanhóis e que controlam o acesso aos mercados.

Olival superintensivo em Alfundão. Fotografia de Paula Nunes
Olival superintensivo em Alfundão. Fotografia de Paula Nunes

Só nesta década, a concentração de capitais no setor da agricultura atingiu patamares nunca vistos: em 2020, seis grupos financeiros eram apontados como “os novos donos do Alentejo”: Sovena/Oliveira da Serra, De Prado, Olivomundo, Aggraria, Innolivo e Bogaris. Hoje o grupo De Prado reina sobre Alqueva, até comprou o lagar ultramoderno do grupo Sovena/Oliveira da Serra, em Figueira dos Cavaleiros; no Alto Alentejo domina o regadio na envolvente de Avis e da barragem do Maranhão; e detém mais de 30 mil hectares de olival e amendoal em Portugal, Espanha, Chile e EUA.

8. Odemira, uma “barriga de aluguer” da Driscoll’s – o modelo californiano

Se o nosso foco tem sido Alqueva, dada a sua dimensão, regressemos ao perímetro de rega da Mira, inaugurado há 56 anos. A Associação de Beneficiários do Mira (ABM), constituída em 10 de Abril de 1970, foi adaptando os seus Estatutos e é tutelada pelo Ministério da Agricultura que tem garantido o predomínio dos grandes interesses da agricultura intensiva das estufas, se necessário cortando o acesso à água aos pequenos agricultores, considerados “precários”.

Há mais de 30 anos, o megaprojeto de Thierry Roussel, um aventureiro internacional, captou milhões de contos de fundos comunitários para se instalar em Odemira e foi considerado “o futuro da agricultura portuguesa” pelo primeiro-ministro Cavaco Silva. No período de grande desemprego que sucedeu à destruição da reforma agrária, este projeto chegou a ocupar na instalação de estufas milhares de trabalhadores, que se deslocavam de concelhos tão distantes, como Aljustrel, Beja ou Ferreira do Alentejo.  Um ano e pouco depois foi decretada a sua falência e Thierry Roussel foi dar golpes para outras paragens. Em Odemira ficaram dívidas, desemprego e toneladas de plástico a apodrecer ao vento, durante quase uma década.

Não há espaços vazios. Como o clima é bom e água não falta/va, vieram investidores espanhóis, ingleses, holandeses e outros que instalaram novas estufas de flores, frutos e de produtos hortícolas, em produção diária para os mercados europeus.

Nos últimos 15 anos, a multiplicação da área coberta de estufas parece não ter limites, com o crescimento da fileira de frutos vermelhos impulsionada por empresas norte-americanas. Entre estas a Driscoll´s, que impôs na região o “modelo californiano” de negócio, com o qual atingiu o domínio absoluto: a montante do processo produtivo, cobra patentes a quem produzir frutos vermelhos; a jusante, controla o escoamento de toda a produção para os mercados internacionais, onde se formam os preços e obtêm as maiores margens de lucro. No limite, a Driscoll’s podia dominar sem produzir  um único morango, mas criou a “Maravilha Farms” em Odemira, tem estufas no Algarve, na Andaluzia, em Marrocos e controla os mercados mundiais…

Do ponto de vista laboral, a Driscoll’s e as 17 grandes empresas que dominam a AHSA (Associação de Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur) mantêm algumas centenas de trabalhadores permanentes que, na época alta, representam entre 10% e 20% da força de trabalho. A mão-de-obra sazonal é alugada a empresas de trabalho temporário ou prestadores de serviços, formadas “na hora” e que podem desaparecer num minuto, sem pagar salários e contribuições para a segurança social. As máfias do trabalho escravo fazem o trabalho sujo que garante o lucro máximo das multinacionais, no perímetro de rega do Mira, tal como no Alqueva.

9. De Alqueva ao Litoral - saque do território e exploração sem limites

A ganância do capital sem rosto não tem limites e comprou influências em todos os governos, que têm sido cúmplices desta rapina do território e dos seus recursos, físicos e sobretudo humanos. O CEO da Driscoll’s Portugal é vice-presidente da CAP e tem a porta do Ministério da Agricultura sempre escancarada.

Estufas no Alentejo
Estufas no Alentejo. Foto de Paulete Matos

As novas políticas de imigração, promovidas pelo governo AD, em conluio com o Chega, remetem para a clandestinidade milhares de imigrantes que ficaram ainda mais vulneráveis perante as máfias do trabalho escravo. A máquina de lucro do agronegócio continua imparável e não se detém perante nenhum crime social ou ambiental.

O maior susto que os donos da agricultura intensiva de regadio apanharam, até hoje, foi durante a campanha de 2024, quando a cota de água na barragem de Santa Clara atingiu níveis mínimos, tal como na da Rocha, Campilhas e Roxo. A água de Alqueva não dá para tudo… e ainda está a ser solicitada para alimentar os sistemas de rega do Mira, do Sotavento algarvio e da Andaluzia. A sede de lucro do agronegócio não tem fim: se as “autoestradas da água” não bastarem, então construam-se dessalinizadoras com dinheiros públicos. Parar e questionar este modelo insustentável é que nunca!

Uma das consequências mais dramáticas da ganância do agronegócio é o cerco das aldeias, vilas e até cidades por plantações superintensivas, sem qualquer respeito por limites mínimos nem garantias da segurança das populações e da saúde pública. No inverno passado, um rio de lama invadiu as ruas e os quintais de Ervidel, sem que as responsabilidades deste crime público tenham sido assacadas aos responsáveis. Pode ter sido apenas um aviso do que está para vir, numa época de emergência climática, com seca extrema e cheias de dimensões inauditas…

10. Travar a ganância global, resistir no poder local para desbravar caminhos de futuro

Os interesse poderosos que se alimentam do agronegócio criaram uma vasta teia de cumplicidades nos órgãos de poder central, mas também municipais. Não é fácil travá-los, mas é mesmo uma emergência, do ponto de vista económico, social, ambiental e até demográfico, para o Alentejo ter futuro.

O Bloco tem apresentado no parlamento projetos de lei para ordenar os territórios rurais e impor limites às monoculturas: áreas contínuas máximas, corredores ecológicos, distância mínima às povoações e habitações em espaço rural, proibição de colheitas noturnas e pulverizações aéreas, etc. Todas foram chumbadas pelos partidos de direita e extrema-direita, e pelo próprio PS.

Este combate deve prosseguir também no plano autárquico: propomos a revisão dos PDM, garantindo, entre outras medidas, uma distância mínima de 500 metros às zonas habitacionais. É um primeiro passo, mas as autarquias podem e devem fazer muito mais em defesa das populações e de condições de vida e de trabalho dignas.

A alternativa de futuro ao agronegócio passa por uma nova reforma agrária, ainda mais necessária por razões ambientais e de dignidade humana

Os municípios detêm o poder de licenciamento para habitação e não podem assobiar para o lado quando é do conhecimento público a existência de espaços sem condições dignas onde se amontoam dezenas de pessoas, nomeadamente imigrantes. A solução não passa por despejos, à imagem do tirano de Loures, mas por responsabilizar os proprietários e encontrar alternativas de habitação, reabilitando dezenas de edifícios abandonados e em ruína na cidade de Beja, nas vilas e nas aldeias.

Nos últimos anos, fruto de um processo de “descentralização” criticável, mas aceite sem grande contestação, os municípios assumiram novas competências em áreas como a educação, a saúde, o ambiente e a ação social, pelo que não podem ignorar os desafios que se colocam a uma população envelhecida e mais diversificada. A imigração dá hoje um contributo inestimável para travar a queda demográfica.

Além das competências que formalmente lhes estão atribuídas, as autarquias dispõem de um poder único que advém da representatividade e da proximidade às populações. Nenhum problema no seu âmbito territorial pode ser indiferente aos municípios e freguesias, que têm o poder e o dever de informar, denunciar e mobilizar, pressionando e congregando os diversos organismos de Estado a intervir em defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Perante o agronegócio predador do território, as autarquias não podem fechar os olhos ou assumir uma posição supostamente “neutra” que só favorece os “donos disto tudo”. Têm obrigação política de estar ao lado dos moradores afetados e de quem é explorado, não pactuando com as agressões ambientais e o trabalho escravo. Infelizmente, é o que tem acontecido, com responsabilidades maiores dos partidos que têm dirigido o poder local ao longo das últimas décadas.

É preciso assumir responsabilidades políticas perante o povo que nos elegeu, combater a despolitização, a rotina, a burocracia e a indiferença. É preciso um novo ciclo no poder local democrático. É o que propõem as candidatas e candidatos do Bloco de Esquerda. Para isso é preciso votar à esquerda, elegendo autarcas do Bloco.

Sabemos bem que nem todos os problemas da agricultura e do Alentejo se resolvem no âmbito municipal, mas não desistimos de nenhuma luta.

A alternativa de futuro ao agronegócio passa por uma nova reforma agrária, ainda mais necessária por razões ambientais e de dignidade humana. O que nos remete para o ponto 4 deste documento: o que fazer com os solos e a água disponível.

Alberto Matos
Sobre o/a autor(a)

Alberto Matos

Dirigente do Bloco de Esquerda, Ativista da Solidariedade Imigrante no Alentejo