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Adaptação de Gota D’Água em palcos portugueses até 23 de outubro

Em Gota d’Água {Preta}, o diretor Jé Oliveira faz uma releitura do musical de Chico Buarque e Paulo Pontes e “enegrece e atualiza a obra”. O espetáculo está em exibição até domingo nas cidades de Coimbra (19), Porto (20) e Aveiro (23).
Imagem publicada na página de Internet do Teatro Aveirense.

O primeiro contacto de Jé Oliveira com a peça de Chico Buarque e Paulo Pontes foi há 20 anos, quando frequentava a escola de teatro. O ator, diretor, dramaturgo e cofundador do Coletivo Negro lembra-se de “ter ficado com o texto na cabeça durante muitos anos por conta da beleza da poesia dele e por ser em rima”, o que lhe lembrava o rap. “Mais tarde fui reler algumas dramaturgias clássicas brasileiras, peguei no Gota d'Água e fiquei espantado com a atualidade do texto, naquele momento, pré-eleição de 2018”, explica Jé Oliveira em declarações ao Público.

Mas o facto de a peça nunca ter sido levada à cena por uma equipa maioritariamente negra fê-lo sentir a necessidade de montar o texto.

Assim nasce Gota d’Água {Preta}. Na sinopse da obra, é realçado que “a adaptação de Gota d’Água, musical de Chico Buarque e Paulo Pontes, ressalta as questões raciais embutidas na obra de 1975, que transfere a tragédia de Medeia para o subúrbio do Rio de Janeiro”.

Se o original discute as implicações sociopolíticas do regime militar brasileiro, então vigente, a releitura do diretor Jé Oliveira enegrece e atualiza a obra: traz um elenco maioritariamente negro, evidenciando o contexto social e racial dos personagens (pobres, moradores de um conjunto habitacional), além de salientar alguns aspetos de religiões de matriz africana e a musicalidade negra – com instrumentos de percussão africana e elementos do hip-hop”, acrescenta-se.

Em Gota d’Água {Preta}, Joana, a versão brasileira de Medeia, é uma mulher de meia-idade abandonada pelo marido, o jovem sambista Jasão, e que está em vias de ser despejada do apartamento onde vive com os dois filhos. Com “a metáfora de uma traição conjugal, o espetáculo realça a discussão racial, social e de classes com base no atual momento político do país”.

Jé Oliveira quis, desta forma, cumprir aquilo que a própria obra original defende: “É preciso, de todas as maneiras, tentar fazer voltar o nosso povo ao nosso palco”, escreviam então Chico Buarque e Paulo Pontes.

De acordo com o diretor, “já na época, havia uma parte da esquerda que questionava a [cantora, actriz e encenadora] Bibi Ferreira fazer a personagem de Joana, a protagonista”. “O que hoje se chama lugar de fala, naquele momento já era apontado com uma incongruência da montagem”, assinala.

Na encenação é dado protagonismo às mulheres negras e é enfatizado o sentimento de sororidade presente no texto original. “Se existe o coro grego na Medeia, na nossa peça existe um coro de mulheres negras muito bem posicionado do ponto de vista do cuidado feminino e da organização colectiva, liderado pela Corina, que na nossa montagem assume o espaço e o debate públicos, o que no texto não está desenvolvido”, refere o encenador.

Também a escolha musical reflete o enegrecimento de Gota d’Água, com o recurso a tambores africanos de terreiro, ao rap e funk carioca, bem como os elementos cénicos que nos transportam para as favelas de São Paulo.

Jé Oliveira afirmou ao Público que o que esta peça tem de mais atual é “a elaboração de uma derrota coletiva perante o capitalismo, hoje o neoliberalismo, e as nossas fragilidades do ponto de vista de organização política para enfrentar essas questões”.

É, portanto, compreensível que, ao longo dos últimos quatro anos, Gota D’Água {Preta} de tenha vindo a adensar. “Infelizmente, a cada ação nefasta desse Governo [de Jair Bolsonaro], a peça vai-se adensando e a gente, na nossa postura cénica, vai evidenciando esses acontecimentos e refletindo coletivamente”.

“Por exemplo, usamos um sample da Elza Soares cantando a ‘carne mais barata do mercado é a carne negra’ e em seguida vem uma fala emblemática do atual Presidente, a dizer: ‘Eu sou favorável à tortura, tu sabes disso’”, aponta o encenador.

Com esta criação, Jé Oliveira tornou-se o primeiro encenador negro a vencer o prémio de teatro mais importante de São Paulo, o da Associação Paulista de Críticos de Arte.

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