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Entre mitos: ou parábola, por Ana Luísa Amaral

Publicamos no esquerda.net, na nova secção “cultura” um inédito de Ana Luísa Amaral. “Um poema que escrevi sobre este triste estado de coisas - sobretudo a Grécia”, segundo as palavras da autora.

 

 

 

 

 

 

 

 

Não sabiam,

os que viviam felizes nas margens do Nilo,

da chegada daqueles que os haviam de reduzir a quase escombros,

nem dos que mais tarde lhes haviam de roubar terras e ideias

e saquear a beleza das pedras em perfeito equilíbrio, e noite e luz perfeita,

à procura das jóias e do ouro e de um conhecimento

que não lhes pertencia.

 

Não sabiam,

porque viviam no centro do seu tempo,

e o centro do tempo não sabe nunca o que lhe irá ser percurso,

como um rio que corre não conhece a sua foz,

só as margens por que passa e o iluminam, ou ensombram.

 

E ainda que nas margens do Nilo

não habitassem só os que muito possuíam,

mas também aqueles que pouco tinham de sustento e tecto,

unia-os a todos essa crença de uma paz futura,

de atravessar outras margens e encontrar paz.

 

Não sabiam o que vinha,

nem ao que vinha a sua história, como não sabem nada

os humanos que habitam este antigo sol azul.

 

Mas haviam de ter pressentido esse final,

e a alegria dos ciclos e dos aluviões

deve ter sido acompanhada de angústia pela chegada dos exércitos,

que lhes prometiam mais bem-estar e mais paz,

dizendo-lhes que para haver paz e bem-estar eram precisas

alianças e o abandono de crenças e uma história nova

a dizer-se mais útil.

 

Muito mais tarde,

deles ficaria uma memória a servir livros e mitos,

e o rumor do deserto,

e as perfeitas construções de pedra resistente,

e a sua escrita, bela e útil, que demorou anos a decifrar.

 

E muito disto não ficou na sua terra, às margens do Nilo,

mas foi roubado, e viajou em navios, por mares diferentes,

até museus e praças de outras cores

onde ganharia outros cheiros e outros sentidos.

Sempre assim parece ter acontecido

com o tempo e a história.

Sempre assim parece acontecer.

 

A não ser que uma esfinge se revolte

e ganhe voo, como a esfinge de um outro povo,

não às margens do Nilo, mas de um mar

povoado de mitos e pequenas ilhas.

 

Também não sabe, essa esfinge resguardada em Delfos,

de como irá ser o futuro das coisas e do tempo,

mas sabe da chegada dos que, em nome de um equilíbrio novo,

dizem poder salvar os tempos.

 

Talvez lhe sejam de auxílio o corpo de leão

e, levantadas, as asas.

 

E o enigma,

que pouco importa aos donos do equilíbrio,

mas que dizem ser a fonte da poesia.

E é a fonte de onde a carne desperta,

nas margens do humano.

Poema inédito de Ana Luísa Amaral1


 

1 Ana Luísa Amaral é poetisa e docente de Literatura Inglesa no Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto. Em 2007, venceu o Prémio Literário Casino da Póvoa e em Itália o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi. Em 2008, o seu livro Entre Dois Rios e Outras Noites obteve o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.

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Sobre o/a autor(a)

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto
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