“1968 foi o início da crise entre o PCI e Moscovo”. Entrevista a Andrea Segre, realizador de 'A Grande Ambição'

07 de abril 2025 - 19:24

A Grande Ambição abre a Festa do Cinema Italiano, retratando a história do Partido Comunista Italiano na década de 1970. Em entrevista ao Esquerda.net, o realizador Andrea Segre fala sobre aquele que foi o maior partido comunista da Europa Ocidental, a sua oposição a Moscovo, e as decisões políticas que levaram ao seu declínio.

porDaniel Moura Borges

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Andrea Segre
Andrea Segre. Fotografia via MyMovies

O compromisso histórico com os democratas cristãos foi o início de um processo de declínio do Partido Comunista Italiano. Aquele que foi o maior partido italiano da Europa Ocidental, com dois milhões de membros e 7.000 secções por toda a Itália, viria a extinguir-se em 1991.

Pelo meio dessa história está o assassinato de Aldo Moro e as eleições de 1976, nas quais o partido fica em segundo lugar e garante apoio parlamentar aos democratas cristãos. Está também a figura de Enrico Berlinguer. Opositor de Moscovo, líder do Partido Comunista Italiano, pai do compromisso histórico.

Andrea Segre é realizador de A Grande Ambição, filme sobre Berlinguer que vai abrir a Festa do Cinema Italiano em Portugal. Em entrevista ao Esquerda.net, fala sobre as contradições da incontornável figura do Partido Comunista Italiano e sobre a história deste partido. 


Qual foi a motivação para fazer este filme? 

No cinema italiano, nunca fizemos um filme sobre Berlinguer e sobre o Partido Comunista Italiano. Fizemos muitos documentários, e há muitos filmes ligados a esta história, mas não temos no nosso cinema um filme dedicado a este protagonista e às pessoas ligadas a ele. Porque esta não é apenas uma história sobre Berlinguer, é uma história através de Berlinguer sobre uma grande comunidade de pessoas. E não importa se concordas politicamente ou não com esta comunidade, não há dúvida de que esta comunidade desempenhou um grande papel na história do pós-Segunda Guerra Mundial. Havia dois milhões de membros do Partido Comunista e quase 12 milhões de eleitores. E havia 7.000 secções e filiais em toda a Itália. Era o maior Partido Comunista das democracias ocidentais e estava no poder em muitas grandes cidades da Itália, de Veneza a Roma, Milão, Nápoles, Turim. É uma história incrível. Eu disse a mim mesmo que não queria fazer uma celebração disso, queria antes encontrar uma maneira de ligar essa história e memória aos dias de hoje. Enquanto estávamos a investigar e a estudar, havia muitos elementos de alguma forma ligados aos dias de hoje. Mas decidimos não torná-lo explicito. E, na verdade, esse sentimento na Itália chegou aos jovens, porque em Itália o filme teve 600.000 espetadores, e um terço deles tinha menos de 30 anos. 

O Partido Comunista Italiano chegou a ser o maior do Ocidente. Foi um longo processo desde a base, que antecede Berlinguer. Isso é retratado no filme? 

Gramsci foi um dos fundadores, e Togliatti foi o secretário-geral durante a Segunda Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o partido se legaliza, a ideia era criar um partido de massas ligado ao contexto cultural da Itália e fugir da ideia do partido leninista apenas organizado para o poder e não ligado à base do povo. E esta ideia era bastante única também nos países ocidentais, porque a maioria dos outros partidos comunistas estava mais ligada à ideia do partido leninista e não à ideia do partido gramsciano. Claro, há combinação dos dois tipos. Mas durante o tempo Togliatti, após a Segunda Guerra Mundial, gastaram muita energia na construção de todos as secções pela Itália. Havia milhares de, não só secções do partido, mas também Casas do Povo, ramos culturais recreativos onde as pessoas podiam ir para jogar cartas, dançar ou comer juntos. E essa ideia de estar presente no quotidiano do povo estava ligada à ideia da hegemonia cultural de Gramsci. O projeto político era alcançar a transformação socialista da economia e da sociedade através da chamada democracia progressista. Portanto, não esperamos para fazer a revolução, mas fazemos a revolução todos os dias. 

Então a ideia era criar uma estrutura dinâmica entre a dimensão cultural e as pessoas? 

Sim. Foi construir o socialismo no quotidiano, nas secções, nas Casas do Povo e depois no município onde tomariam o poder. E, aos poucos, ir mudando a sociedade até o momento em que chegassem ao poder também a nível nacional. É claro que eles não alcançaram esse poder porque foram bloqueados. E só se abandonassem a ideia de socialismo poderiam chegar ao poder. Após o fim do Partido Comunista, um ex-dirigente do antigo Partido Comunista assumiu o poder com um governo de centro-esquerda, mas tinha abandonado a ideia de alcançar o socialismo. 

Qual era a relação com o Partido Comunista da União Soviética?

O PCI foi financiado pela União Soviética. E isso era normal porque todos os partidos eram financiados por Washington ou Moscovo. Esse era o mundo naquela época e era completamente normal receber dinheiro de uma das duas potências. E, no início, a ligação política e estrutural com Moscovo foi bastante dura e importante. Mas depois de 1964, e depois com a Primavera de Praga, as críticas do dirigente comunista italiano ao sistema soviético foram bastante altas e aumentaram muito. É por isso que, no meio do filme, colocámos o discurso de Berlinguer no Kremlin quando criticou explicitamente no meio do Congresso do Partido Comunista em Moscovo, a ideia não democrática, não pluralista do regime comunista na União Soviética. E explicou muito bem, num discurso maravilhoso, qual era a ideia do Partido Comunista Italiano. E esta é realmente uma história particular. Considero esta parte da nossa história muito interessante e muito profundamente ligada ao nosso modo de vida cultural em Itália, porque os ramos do Partido Comunista eram realmente casas de pessoas. E essa era a maneira italiana de fazer política naquela época. 

A invasão de Praga, especificamente, foi um ponto de inflexão com a União Soviética?

Sim, com certeza. 1968 foi o início da crise na relação entre o PCI e Moscovo. Decidiram cortar a relação económica. Isso era um grande risco, porque para dizer explicitamente ao regime de Moscovo que não queremos mais o seu dinheiro, eles estavam a decidir não ser protegidos por Moscovo naquele momento. O ponto de chegada da crise começou, diria, um pouco antes de Praga. Foram os anos em que começaram a ter uma crítica explícita ao sistema de Moscovo. E depois de Praga, isso ficou muito claro e explícito. Berlinguer tinha um ponto de vista diferente, do ponto de vista emocional, não gostava dos soviéticos. Por isso, foi muito claro que não estava convencido pelo regime de Moscovo. E o seu papel na retirada do Partido Comunista Italiano do controlo de Moscovo foi muito importante.

Olhando para trás, para o compromisso histórico, há muitos ângulos através dos quais o analisar e muitas críticas. Como é retratado no filme?

O compromisso histórico é sintetizado normalmente como uma forma de tentar criar uma colaboração entre o Partido Comunista e os democratas-cristãos. Mas isso foi o que aconteceu depois de 1976. Em 1973, quando Berlinguer escreveu o artigo em que propõe a estratégia do compromisso histórico, não se trata de uma proposta de aliança eleitoral. É a proposta de evitar a reação violenta do poder capitalista num caso em que os partidos populares tomam o poder. Sabia disso porque já tinha acontecido noutros países, como o Chile e como a Grécia. Ele diz que temos de evitar isso. E para evitar isso, diz que as massas populares são a maioria e vão tomar o poder, e que o PCI vai aumentar o poder a cada ano. E isso foi acontecendo. O Partido Comunista Italiano passou de 22% após a Segunda Guerra Mundial para 32%. Berlinguer disse: “Eu sei que vamos tomar o poder, mas não podemos tomar o poder sem saber que a reação violenta do regime nos vai destruir”, como aconteceu brutalmente com Salvador Allende. E sabia também que Moscovo não concordava com a ideia de ter um Partido Comunista no poder numa democracia pluralista. E que a União Soviética nunca iria parar a violência da classe capitalista para salvar o Partido Comunista Italiano exatamente como não reagiu com Allende. 

Então, o que propôs o Partido Comunista Italiano?

Berlinguer tinha um grande problema. Ele tinha a certeza de que o Partido Comunista poderia tomar o poder porque as pessoas estavam a votar e a aumentar a sua participação. Estavam a abrir secções por toda a Itália, estavam a conquistar o poder nos municípios. Portanto, foi um caminho democrático progressista para o socialismo. Mas, nesse progresso, ele sabia que a reação violenta era certa. E compreendeu perfeitamente que a União Soviética não era aliada da sua revolução. Por isso, escreveu este artigo em que propõe a todos os partidos de massas populares, ao Partido Socialista, ao Partido Comunista, e também a parte dos democratas-cristãos ligada ao povo, porque eles também tinham uma grande base popular, construir um compromisso entre todos os partidos ligados ao povo, a fim de criar um novo poder baseado no seu compromisso contra o capitalismo. Tecnicamente, foi uma mensagem para Aldo Moro, para a parte mais social dos democratas-cristãos, a dizer: “se abandonares os poderes económicos ligados ao sistema capitalista e vieres connosco, podemos construir um novo governo que é completamente novo na história da Europa neste momento”.  

Isso também está ligado à estratégia do eurocomunismo.

Sim. A estratégia do eurocomunismo não considerava central o papel de Moscovo na história do comunismo. Berlinguer explicou isso no artigo muito claramente. Pode não se concordar com esta perspetiva, mas a proposta é essa. E este artigo foi publicado na revista do Partido Comunista Italiano chamada Rinascita. Foram distribuídas mais de 400.000 cópias em toda a Itália e em todos os ramos, e eles estavam a ler esta revista todas as semanas juntos das secções. Portanto, essa revista foi lida pelo menos por quatro ou cinco milhões de pessoas. Houve um grande debate e a maioria das pessoas no Partido Comunista ficou muito sensibilizada com esta ideia. 

Como funcionaria na prática este compromisso da base?

Tens de considerar a estrutura social da Itália. A Itália é feita por cidades e aldeias, por comunidade. É uma confederação de comunidades. E em todos os municípios da Itália, tinhas a paróquia, o escritório dos Carabinieri  (a polícia) e a secção comunista. E as pessoas da secção comunista sabiam que na paróquia havia pessoas como eles. Sabiam também que o padre ou alguém no poder ligado à igreja era amigo dos Carabinieri, mas dentro da paróquia havia agricultores normais, trabalhadores, pessoas como os comunistas. E entenderam que a mensagem de Berlinguer era: “vão à paróquia e falem com o povo, e digam-lhes que podemos encontrar um acordo para lutar contra os Carabinieri e o padre. Esse era o significado no quotidiano básico das pessoas. E essa ideia foi muito certa. Berlinguer propôs essa ideia em 1973, e nos anos seguintes houve um grande aumento da participação e dos resultados eleitorais do Partido Comunista. Portanto, no início, foi realmente um sucesso incrível. 

Então, quando consideras que foi um erro?

Em junho de 1976 aconteceu que, na campanha eleitoral, o Partido Comunista aumentou muito. Mas as potências internacionais e económicas apoiaram os democratas-cristãos, porque sabiam que havia o risco de os democratas-cristãos terem menos votos do que o Partido Comunista Italiano. Financiaram muito a campanha eleitoral dos democratas-cristãos e evitaram esse resultado. Se o PCI tivesse alcançado a maioria nesta campanha eleitoral, naquele momento, poderia ter tido o poder de dividir os democratas-cristãos e de construir um governo socialista num sistema democrático. Esse era o projeto. O PCI teve uma quantidade incrível de votos. 34 % da percentagem de eleitores. Mais de 12 milhões de pessoas votaram neles. Mas os democratas-cristãos obtiveram mais 2%. E puderam formar governo sem a colaboração com o Partido Comunista Italiano. Naquele momento, Berlinguer propôs a estratégia da no-sfiducia. Propôs não votar contra o governo de Andreotti, porque achava que isso poderia ser um passo intermediário para seu projeto. Mas, na verdade, esse foi o erro. Portanto, com a transformação dessa estratégia de compromisso histórico no no-sfiducia, começou a haver uma grande crítica contra a direção na base, na juventude. E 1977 foi o ano dos grandes conflitos também dentro da esquerda. Neste período, houve um grande aumento da oposição da esquerda à sua estratégia. E naqueles anos, há também o papel desempenhado pelas Brigadas Vermelhas. Começaram a matar muita gente até o sequestro e assassinato de Aldo Moro. Essa foi a crise final, claro, da sua estratégia. Mas é muito importante focar que a sua estratégia não surgiu em 1976, mas em 1973. 

Na década de 1970, além desse clima político, surge também o início da crise do Estado Social. A crise do petróleo e o início do avanço do neoliberalismo. Como é que isso foi contemplado na estratégia do Partido Comunista? 

Tentámos colocá-lo também no filme. Berlinguer tinha a certeza de que iriam tomar o poder também por causa da crise do sistema capitalista, especialmente em 1972 e em 1974. E ele tinha a certeza de que era o início do colapso do sistema capitalista. E esperava que não fosse possível renovar o poder do capitalismo. O próximo passo seria a transformação socialista da sociedade, porque a sua ideologia estava ligada a isso. O PCI também estava a construir um sistema económico diferente, basicamente um sistema comunitário nas cidades onde eles governavam. Tinham a certeza de que, trabalhando nessa direção, poderiam reagir à crise do capitalismo e construir uma sociedade socialista. Depois o partido transformou-se. Portanto, quando abandonaram a ideia do socialismo, transformaram tudo isso num partido social-democrata, abandonando a ideia de ir além do capitalismo e simplesmente limitando as consequências do capitalismo na sociedade.

No início, disseste que o filme está a ser visto por muitos jovens. Qual é o legado do PCI e como é que isso é retratado no filme?

Todas as tentativas de reconstrução do Partido Comunista foram um erro. É impossível reconstruir o Partido Comunista. A sociedade mudou, tudo mudou. Mas os jovens foram assistir ao filme não porque estão com saudades do Partido Comunista, mas porque sentem falta de uma comunidade organizada para lutar por um sonho. Sabem que precisam de sonhar com um futuro diferente, que o sistema atual está a criar muitos problemas. Guerras, alterações climáticas e tudo mais. Mas se não nos organizarmos para construir esse sonho, nunca o alcançamos. E encontramos no filme uma forma de se organizarem, uma forma de serem uma comunidade ambiciosa. E quando digo ambicioso refiro-me à ambição coletiva. Além disso, quando temos um sonho impossível, podemos organizar-nos para lutar por esse sonho. E vamos, de qualquer forma, intervir na sociedade e criar outra coisa na sociedade. Portanto, é verdade que o Partido Comunista falhou, não alcançaram a transformação socialista da Itália como queriam. Mas lutando pelo sonho impossível, mudaram muitas coisas na nossa sociedade. Criaram muitos momentos de mudanças na sociedade. Na verdade, as reformas mais progressistas que tivemos na Itália foram durante aqueles anos em que a pressão dessa comunidade era muito forte.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.