Duas cartas e uma nota, solta. Por Ana Luísa Amaral

13 de janeiro 2013 - 1:07

O nosso mundo e o vosso mundo, senhores, parece ser visto de diferentes janelas. A vossa dá para sacadas com funcionários de cifrões na mente, o nosso, para espaços que roçam a desolação.

porAna Luísa Amaral

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Esta é a madrugada que eu esperava,
O dia inicial, inteiro e limpo

Sophia de Mello Breyner, 1974

 

Uma carta é uma alegria terrena,
E é negada aos deuses

Emily Dickinson, 1863

 

 

Carta de despedida e sem euforia, em solilóquio.

Aqui chegámos, ao final do ano de 2012. Sem a graça. Sem senhores outros que não sejam estes, que não cuidam por um mundo melhor, nem devolvem a justiça e a dignidade com que há quase quarenta anos o país renasceu, numa madrugada que prometia o dia inicial, inteiro e limpo. Nem limpo nem inteiro, e muito menos genesíaco, está o tempo que a 31 de Dezembro de 2012 se encerrou. Entre programas tolos de televisão propagandeando uma alegria formatada, em tudo avessa à realidade em que vive a maioria dos que vivem neste país. 

A realidade é o número crescente de desempregados, um poder de compra cada vez mais abalado, impostos e taxas (ilegais) cada vez mais altos, reformados sem perspectivas de uma velhice segura, jovens sem futuro, o interior de um país cada vez mais esquecido e arredado dos centros de poder, as iniciativas culturais e artísticas cada vez menos acarinhadas. A realidade de Portugal é gente em sofrimento, sobrevivendo abaixo da linha de dignidade mais essencial. A realidade são os pobres e os da classe média espalhados pelas cidades em filas de comida recolhidas por instituições, são as lojas de compra de ouro, a abrirem ao lado umas das outras a um ritmo alucinante, as suas montras de vidro fumado, ou tapado por anúncios que garantem o sigilo àqueles que pertencem a uma larga camada social, definida por uma expressão antes usada e que agora voltou à nossa sociedade, a da pobreza envergonhada. 

Como sempre acontece em momentos de crise, as desigualdades agravaram-se. E a realidade do país retrata algo de que pouco se fala, porque o plural continua a fazer-se, gramatical e consensualmente, pelo masculino: a igualdade entre os sexos, consignada na constituição que ainda temos, mas que é constantemente atropelada, com a precariedade, o desemprego e a redução de salários a atingir ainda mais as mulheres. E a prever-se que aumente. A realidade são ainda os imigrantes que, mesmo na crise, continuam a chegar a este pequeno país ao fundo da Europa e que são, muitas vezes, maltratados, explorados, sujeitos a humilhações. 

Não falarei da paz que nos foi retirada, ao moverem-nos uma guerra social e económica, porque dessa guerra se tem vindo já a falar muito. E dela sabem eles que nos têm vindo a governar, e por isso é tão importante concluir que não se trata de pessoas inexperientes ou impreparadas, que a maior parte deles cresceu, sem muitas vezes saber o que era o trabalho real, nos partidos políticos, que sabem o que estão a fazer. E o que fizeram neste último ano e se propõem continuar a fazer é a destruição das vidas de pessoas de carne e osso, já de há uns anos para cá vistas como meros números.

Esta destruição tem vindo a ser preparada, paulatinamente, a nível europeu, se não a nível mundial, tendo começado com as políticas estado-unidenses da ultra-liberalização. Acordámos um dia para um léxico novo, uma espécie de economês ou politiquês, de palavras herdadas de outras línguas, que usamos nos cafés, nos autocarros e que integrámos facilmente, ajudados que fomos pelos meios de comunicação. Troika, agências de rating, desalavancar, e outras. E, ao lado do mais chocante luxo (como as grandes fortunas a aumentarem escandalosamente), o lixo adquiriu, tristemente, um novo sentido, aplicado à economia que afecta a esmagadora maioria dos portugueses e dos habitantes dos países do sul da Europa, a começar na Grécia. Para esse lixo fomos lançados. Cardumes indefesos ao lado de tubarões como a Goldman Sachs, as multinacionais, os mercados financeiros, movidos por figuras mais ou menos pardas, empenhadas em destruir os estados, impondo-lhes juros usurários e impossíveis de saldar.

Não valerá a pena falar muito mais do ano que finda, porque ele continua, em lastro, no que abre.

 

Carta de chegada, para vós, senhores

Para este novo ano que agora começa, o de 2013, os tempos não parecem prometedores. O mundo não acabou, é certo, as profecias não se cumpriram, mas a crise continua e irá, ao que parece, agravar-se. De tanto nos terdes anunciado esta gravidade, andamos a desejar uns aos outros boas festas, com frases como “que este ano não seja pior que o de 2012!”. Soubestes pois, manipular o nosso comportamento, de tal forma que quase ansiamos pela realidade de pesadelo do ano que passou.  Mas pode ser que os resultados desta guerra psicológica saiam gorados.

O nosso mundo e o vosso mundo, senhores, parece ser visto de diferentes janelas. A vossa dá para sacadas com  funcionários de cifrões na mente, o nosso, para espaços que roçam a desolação. Mas quando na desolação concluirmos que pouco temos a perder, pode ser que vejamos em 2013 uma janela para a acção, a reflexão e o desenvolvimento de novas formas de solidariedade. E pode ser que resolvamos deixar de ser os bons alunos que dizeis que somos. 

Portugal e a Europa, sobretudo a Europa do Sul, viu já surgir movimentos sociais e de pressão que pareciam esquecidos. A Grécia continua a resistir, mesmo que (estranhamente, ou não) os meios de comunicação deixem de ter falado sobre a Grécia. E por aqui assistimos a  manifestações de rua, espontâneas, com centenas de milhares de pessoas a exigirem de novo a sua vida.

Os jovens que mandastes emigrar de Portugal, dizendo que o destino nacional sempre esteve no oceano, deveriam dizer-vos algo parecido com o que disse Demóstenes, há muitos, muitos séculos: “Não sois vós que me expulsais, sou eu que vos condeno a ficar”. Mas essa resposta seria demasiado filosófica para vós, que achais decerto que a arte de pensar é, como as artes todas, dispensável e inútil. Haveis provado essa posição, e continuais a prová-la, nos cortes selvagens à cultura, à educação, numa lógica que entende o útil unicamente como o traduzível em fisicamente palpável, ou visível. 

Entrar na modernidade significou entender que o progresso e o bem-estar de um povo se via pela sua capacidade de incrementação do bem-estar social. E pela sua educação e pela sua cultura. Mas em Portugal, colocado pelo fascismo e por uma guerra de quase quinze anos na cauda da Europa ocidental, o vosso governo, mais do que os anteriores governos, em lugar de investir nessas áreas, propõe-se para este ano continuar a desmantelá-las, ao lado de outras, como a da saúde, ou a das reformas. Porque são elas as mais frágeis. Essa destruição, primeiro branda, prevê-se vir a acontecer de forma violentíssima. Como nunca acontecera, desde que somos democracia. Até ao último ano e a alargar-se neste. 

Mas nós não estamos ainda privados do nosso direitos de cidadania (embora exista na Europa, e até em Portugal, quem o esteja, e penso nos imigrantes ilegais, por exemplo). Não estamos ainda no estado de suspensão de que falava Giorgio Agamben, ao referir a ausência desses direitos. Ainda não fomos esvaziados da participação política, embora possamos correr esse risco. Por isso, a solidariedade, nos seus diferentes cambiantes, pode ser uma forma de vos resistir. E de construir um mundo mais bondoso e compassivo.

A solidariedade passa pela criação de redes de entre-ajuda, que podem ser físicas e feitas de debate e de pensamento. E passa ainda pela imaginação. E pela recusa do silêncio, no reconhecimento da importância do uso da palavra. Samuel Levinas falou do rosto do outro obrigando à obrigação, apelando à responsabilidade; Judith Butler falou da vulnerabilidade que a todos une, distinguindo entre a condição da precariedade que diz respeito à fragilidade da condição humana e a precariedade que equivale a pensar a vida social como desprovida de segurança e de previsibilidade. É quando eu vejo o outro como dispensável, ou inútil, ao não o reconhecer como meu semelhante. Nesse caso, lerei sempre a sua vida como supérflua – e ser-me-á sempre possível aceitar que sobre ele vários mecanismos (os de Estado, os da religião ou os morais) exerçam violência e lhe confiram um não estatuto, ou um estatuto de precariedade social. 

Isto é necessário combater com todas as nossas forças neste ano que se inicia. Penso novamente em Butler que, referindo-se às condições que fazem as vidas menos ou mais “choráveis”, dava o exemplo dos prisioneiros de Guantánamo, cujos poemas eram literalmente gravados – em copos de esferovite, passados de mão em mão. Os poemas desses que representam bem a figura do destituído de direitos políticos não eram gravados em pedra, mas numa superfície que tanto podia ser a da esferovite, como a dos papéis contrabandeados. Eram essas marcas, as da palavra, que, transcendendo o corpo transitório, ajudavam a quebrar “as cadeias precárias da solidão”. Tal como de palavras são feitas as leis desumanas com que vós nos legislais, também nós de palavras, como formas de solidariedade, nos podemos sempre servir. Para denunciar, para exigir e para nos vincularmos uns aos outros. Praticando-as no dia a dia, praticando-as na arte. Porque são elas o motor da memória. E enquanto a memória persistir, a solidariedade não morrerá. Transformada em exercício da palavra, em recusa do silêncio, a solidariedade pode ser não contradição mas contradicção, uma representação nova dos corpos que as ideologias dominantes do dinheiro e da ganância pretendem tornar rasos. 

Não vos vimos pedir honestidade ou verdade – a elas a vossa prática governativa corrente não tem respondido. Nem vos vimos pedir a liberdade, nem a restituição da dignidade ameaçada, nem a reposição da justiça. Isso seria considerar-vos donos, isso seria vermo-nos a nós próprios como servos, ou escravos, uma condição a que, não duvido, os vossos senhores nos gostariam de ver relegados. Vós deveríeis ser nossos representantes, por isso temos o direito de exigir de vós o cumprimento dos valores básicos de vida e convivência humana e democrática. E de reivindicar, nas ruas e nas urnas, outra realidade, como o fizeram os cidadãos de um pequeno país chamado Islândia, que se recusaram a assumir dívidas que não tinham contraído como cidadãos, julgando antes em tribunais os responsáveis pelo descalabro económico. Temos o direito de exigir que não se julgue e condene um povo que de culpado só teve a crença na importância do voto, a mais fundamental instância democrática. Porque a derrapagem financeira não é da nossa responsabilidade, mas da alta finança. Falo de nós. Ou do povo grego. Ou do povo espanhol. Ou de outros a vir. De uma Europa que um dia, ao destruir as suas fronteiras físicas, sonhou um espaço aberto de algo a que, não por acaso, chamou “comunidade”.

 

Nota solta, ou: da alforria. A continuardes assim, cultivando a redução do mundo, não haverá, senhores, carta de alforria para vós. Não irão libertar-vos, os que vos têm escravos do poder. Não vo-la dariam, porque não lhes convém; nem, provavelmente,  vós a quereríeis, a essa carta, vós, os da prudência fácil do réptil, como disse um filósofo inglês radical, amigo de um poeta também radical como os bons poetas devem ser, e que por isso alimentais não o cuidado, mas o medo. Não saberíeis o que fazer com ela, subservientes como sois e irremediavelmente reféns como vos encontrais. 

Não sei se valerá a pena relembrar-vos o tão citado poema de Sophia com cujos versos comecei uma das epígrafes. Apesar de tudo, aqui vo-lo deixo: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”.

Fará isto sentido para vós? Desta janela nossa, o sentido é todo.

Ana Luísa Amaral
Sobre o/a autor(a)

Ana Luísa Amaral

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto