Uma breve história de um Nobel

13 de October 2013 - 22:15

Este foi um Prémio Nobel merecido para François Englert e Peter Higgs, mas também, há quem dentro da comunidade científica alegue que é injusto apenas premiar o esforço teórico de quem concebeu a ideia e não premiar o esforço de quem corroborou a ideia através da experimentação. Artigo de João Manso

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Grande Colisionador de Hadrões

No passado dia 8 de outubro, o anúncio do Prémio Nobel da Física não apanhou ninguém desprevenido, tanto no mundo científico como fora dele. Com efeito, a probabilidade do prémio ir para Peter Higgs e François Englert era elevada desde o anúncio em Julho de 2012 pelo CERN, da descoberta de uma partícula com as mesmas características e propriedades que tinham sido propostas por estes cientistas há quase 50 anos em 1964.

A teorização do Bosão de Higgs surge no contexto da Física de Partículas no desenvolvimento do chamado Modelo Padrão que pretende descrever as partículas fundamentais responsáveis pelo Mundo em que vivemos e a forma como estas interagem. Até ao início da década de 60 tinham sido descobertas algumas partículas fundamentais, mas as teorias desenvolvidas que tentavam entender o seu comportamento falhavam em explicar a origem da massa nessas partículas. Os cientistas procuravam unificar duas das forças fundamentais do universo – o Eletromagnetismo (responsável pela eletricidade e pelo magnetismo) e a Força Fraca (responsável pelo decaimento radioativo e a fusão nuclear). O problema é que as explicações desenvolvidas para essa unificação tinham como consequência que algumas dessas partículas que se sabia terem massa, não a tivessem (Teoria Yang-Mills), e que, para além disso teriam que existir outras partículas sem massa que não eram encontradas (Teorema de Goldstone).

Este impasse foi resolvido em 1964 quando três grupos diferentes de físicos publicaram três artigos na revista Physical Review Letters quase em simultâneo. François Englert e Robert Brout em Agosto, Peter Higgs em Outubro e Gerald Guralnik, Carl Hagen, e Tom Kibble em Novembro. Os artigos, utilizando aproximações diferentes, teorizavam a existência de um campo (designado mais tarde por Campo de Higgs) que preenche todo o Universo. Segundo esse modelo, quanto maior a interação das partículas com este campo, maior é a sua massa (como os bosões W e Z), por outro lado, as partículas que não interagem com o campo, não têm massa (como os fotões). Assim, foi possível tornar o Teorema de Goldstone obsoleto e a nova teoria já era compatível com a Teoria Yang-Mills, uma vez que as partículas não têm massa intrinsecamente, mas “ganham” massa como resultado da interação da partícula com o campo de Higgs. Previram ainda que associado a este campo, existiria uma nova partícula (o bosão de Higgs), que foi descrito de forma mais completa no artigo de Higgs. Num artigo posterior dois anos mais tarde, Peter Higgs descreveu o mecanismo de decaimento do bosão de Higgs, essencial para a deteção do Bosão, o que provaria a existência do Campo de Higgs.

Nos anos seguintes à publicação dos artigos na Physical Review Letters, a comunidade científica ignorou-os completamente. Só no início dos anos 70 as ideias começaram a despertar interesse e a aceitação da comunidade científica. Desde então, o Modelo Padrão de Higgs conseguiu prever a existência de outras partículas fundamentais como outros bosões e quarks, assim como prever com sucesso algumas das suas propriedades.

No entanto faltava descobrir experimentalmente o bosão de Higgs que provaria que o mecanismo de Brout–Englert–Higgs–Guralnik–Hagen–Kibble seria responsável pela aquisição de massa das partículas fundamentais. A sua inexistência implicaria que outra teoria teria que ser desenvolvida dentro ou fora do Modelo Padrão que explicasse os fenómenos observados.

Mas a busca pelo bosão de Higgs começou anos mais tarde, já nos anos 80, quando aceleradores de partículas suficientemente poderosos começaram a ser construídos. O primeiro acelerador a ser utilizado na busca foi o LEP (Large Electron-Positron Collider) no CERN, no entanto as buscas seriam infrutíferas e no final de 2000 é mandado encerrar.

Outros aceleradores foram utilizados nesta busca, como o Tevatron no Fermilab nos EUA, mas o bosão mantinha-se esquivo. Até que em 2008 o LHC (Large Hadron Collider) que substituiu o LEP entra em funcionamento. É uma das maiores máquinas construídas pela humanidade concebida para acelerar protões num túnel de 27 Km de circunferência e fazê-los colidir a velocidades muito próximas da velocidade da luz Para detetar os acontecimentos resultantes, dois detetores independentes (ATLAS e o CMS) são usados na busca do Higgs. Após uma paragem forçada de 14 meses devido a uma avaria, o LHC efetua 300 biliões de colisões (um 3 seguido de 14 zeros) e recolhe quantidades colossais de informações até que em Julho de 2012 é anunciada a descoberta de uma partícula coerente com o modelo de Higgs. Estes dados ilustram bem a dificuldade de encontrar o bosão, uma vez que apenas é produzido um bosão a cada 10 mil milhões de colisões no LHC.

É uma descoberta de enorme relevo para a ciência e poderá num futuro mais ou menos próximo abrir caminhos a novas aplicações tecnológicas e ao aprofundamento do desenvolvimento científico em geral e da Física de Partículas em particular. Não é fácil fazer prognósticos sobre que desenvolvimentos serão esses da mesma forma que ninguém poderia adivinhar na década de 20 quando a Mecânica Quântica foi estabelecida como uma teoria consistente, que esta iria permitir o desenvolvimento de transístores e microchips que iriam possibilitar a revolução eletrónica a partir dos anos 60, ou que a teoria da relatividade de Einstein desenvolvida na primeira década do século XX iria permitir o desenvolvimento dos sistemas de navegação por satélite atuais, como o GPS.

O que já é certo são os “ganhos colaterais” que já surgiram na corrida pelo do bosão de Higgs. Dois exemplos são a World Wide Web que nasceu no CERN como forma dos cientistas partilharem informações a nível global sobre física de partículas e o desenvolvimento das novas formas de computação em nuvem que surgiram da necessidade dos cientistas armazenarem as colossais quantidades de dados obtidas nas várias experiências no CERN.

Este foi um Prémio Nobel merecido para François Englert e Peter Higgs, mas também, há quem dentro da comunidade científica alegue que é injusto apenas premiar o esforço teórico de quem concebeu a ideia e não premiar o esforço de quem corroborou a ideia através da experimentação. De facto, não é difícil de adivinhar que essa tenha sido a discussão que ocupou a maior parte da reunião onde os membros da Academia decidiram a quem atribuir o Nobel, já que o anúncio da atribuição do Nobel chegou a ser adiado 1 hora, circunstância muito pouco comum na história destes prémios. Nada se sabe das razões desta demora, uma vez que os membros da academia são obrigados a guardar silêncio sobre os nomes discutidos durante 50 anos, mas tem havido rumores que as razões para tal prendiam-se exatamente com a discussão da possível atribuição do prémio também ao CERN, circunstância que seria inédita, uma vez que instituições não podem ser premiadas com o Prémio Nobel da Física ao contrário do que acontece com o Prémio Nobel da Paz.

* João Manso é Químico e bolseiro de investigação científica.