O direito de janela, o dever de árvore

17 de June 2012 - 14:32

Autor de vasta obra pictórica e arquitetónica, Hundertwasser tinha um pensamento crítico e defendia um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos. Por Nuno Casimiro

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Colocou a felicidade como condição da existência e conseguiu a proeza maior de criar uma obra que é, toda ela, um manifesto sem a virulência dos imperativos mas antes com a assertividade do que é belo. Foto wikimédia commons

 

A 15 de Dezembro de 1928 nasceu, em Viena, Friedrich Stowasser, que mais tarde viria a adoptar o nome de Hundertwasser, com o qual assinou a vasta obra pictórica e arquitetónica que produziu até à sua morte, em 19 de Fevereiro de 2000, quando viajava a bordo do transatlântico Queen Elizabeth 2.

Percorreu meio mundo e sonhou a outra metade. Incitou à criatividade, afrontou a inércia da sociedade relativamente à tirania do racionalismo mais oco e à urgência de compromissos ecológicos.

Defendeu o direito à “terceira pele”, a casa apropriada por quem a veste, na justa medida do respeito pela natureza. Colocou a felicidade como condição da existência e conseguiu a proeza maior de criar uma obra que é, toda ela, um manifesto sem a virulência dos imperativos mas antes com a assertividade do que é belo.

Há nas suas espirais de cor algo de essencial. As janelas que invadem todo o seu trabalho são mais do que rasgões na superfície impermeável de um edifício ou de um corpo: abrem para outros mundos, realidades de outra beleza. Da filigrana das gravuras e serigrafias, complexa tessitura de cores e linhas curvas, emergem as mesmas razões que se adivinham nos edifícios que projetou: a integração tranquila da natureza nos elementos construídos, num esforço de devolver ao pó o que da terra emanou.

De todos os campos que tocou, foi provavelmente como arquiteto que Hundertwasser ganhou maior notoriedade. Sem os maneirismos barrocos que frequentemente definem o sistema de vedetas do mundo da arquitetura, os projetos que desenhou conseguem integrar a mesma organicidade do seu trabalho pictórico: são estruturas vivas que se desenvolvem com a evidência das plantas que cobrem os telhados ou brotam das paredes.

Incorporou na arte a mesma límpida clareza com que defendeu manifestos pela criatividade ou contra a “imoralidade da linha reta”.

Travou várias lutas contra o espírito reinante. Foi, por exemplo, uma das vozes a defender a não adesão da Áustria à União Europeia, em nome do respeito pelas tradições que o diretório eurocrata ameaçava, então como agora, em nome da competitividade dos mercados.

À luz do conformismo que nos aconselham hoje dirigentes políticos e até um ou outro universitário, parecerá estéril e mesmo perigoso o aguerrido comprometimento de Hundertwasser com o pensamento crítico e a necessidade de um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos.

Contra a tacanhez silenciosa, o testemunho vibrante das suas composições aí está como radical afirmação de liberdade.