Em cada sector de actividade, mobilizam-se os técnicos das instituições europeias e nacionais em busca dos acordos que orientarão a forma dos apoios e iniciativas comunitárias até 2020.
Foi neste âmbito que os titulares das pastas da cultura dos diferentes governos se reuniram este mês, confirmando a notícia avançada em dezembro passado sobre o lançamento de um novo programa para financiar a cultura e as indústrias criativas.
Do ponto de vista orçamental, o cenário é animador: para as áreas antes entregues aos programas Cultura, Media e Media Pro foi acordado um aumento de 37% da dotação comunitária, que ascende agora a 1.800 M€.
A decisão demonstra, se tal não fosse ainda evidente, a importância que o sector cultural recolhe entre as políticas europeias. É uma aposta que vem de longe e que traduz à escala da UE tendências marcadas pelas regiões e países (sobretudo) do centro e do norte da Europa. Até aqui nada de muito novo, exceto o nome: a Cultura cedeu o passo à criatividade e o programa foi baptizado como “creative Europe”. Desengane-se quem pense que se trata de mera jogada de marketing na tentativa de dar à bafienta Cultura um ar modernaço. O que os eurocratas enfatizam deste modo é a parte empresarial e comercial associada à cultura e à arte. Não cabe aqui discutir como esta lógica desvirtua o que deveria ser, de facto, a aposta no sector cultural e da criação artística. O que importa ter presente é o facto de, para além da insistência nos projectos “inovadores” que gerem “riqueza” quantificável e outros detalhes da mercantilização do quotidiano, haverá ainda uma margem substancial para o apoio à criação artística, à sua valorização, difusão e partilha. Basta que as estruturas que se apresentem a este programa sejam capazes de desenvolver projectos à medida das convocatórias que serão abertas.
E é aqui que tudo se complica.
Em particular nos países onde, como em Portugal, a sustentabilidade e a estratégia de médio/longo prazo são fenómenos excepcionais, os fundos europeus continuam a ser olhados como uma forma de financiamento “normal”. O dinheiro da UE usa-se para colmatar a ausência de outros apoios, alimentando apenas os orçamentos das instituições e dificilmente explorando as potencialidades que estão na génese dos programas: a partilha de saberes, o reforço de competências, a realização de projectos quase sempre com uma componente de cooperação internacional que, sem essas ajudas, seria improvável ou impossível.
As oportunidades que a UE oferece em tantos domínios acabam assim desaproveitadas, pela falta de consciência e de profissionalismo na gestão de fundos comunitários ou tão-só pela estrita necessidade de subsistir.
Neste cenário, é forçoso admitir que, quando chegamos às estruturas ligadas ao sector cultural o quadro é ainda mais infeliz e deprimido por falta de meios e capacidades técnicas e financeiras. Porque não basta apresentar um projecto e receber uma subvenção: na maioria destes programas, o dinheiro recebe-se como reembolso de despesa realizada e, cada vez mais, despesa que se demonstre não corresponder a gastos fixos dos participantes nos projectos (recursos humanos, overheads, etc.). Ou seja, como pode uma entidade cultural portuguesa participar em projectos que representam encargos imediatos suplementares quando a principal preocupação é a sobrevivência quotidiana?
Na prática, o resultado da boa notícia que saiu de Bruxelas é a garantia de que um par de empresas de consultoria poderão reformar o seu poder nesta matéria e que umas quantas fundações – muito poucas – terão a possibilidade de fazer algo mais pela sua internacionalização. À parte estas, qualquer instituição na dependência do Estado – direcções regionais, museus, etc. – está de tal forma atada do ponto de vista do orçamento próprio, equipa e autonomia, que só por negligência se comprometerá com projectos deste género.
Para as demais entidades, estruturas autónomas e indivíduos que, de facto, se dediquem à produção de arte e cultura, resta esperar que dos 1.800 M€ da “Europa Criativa” decorra a oportunidade de passar algum recibo verde suplementar.
Sobre tudo isto, que disse o Secretário de Estado da Cultura?
Afirmou em comunicado estimar que o programa “permita que as entidades de produção e criação diminuam a sua dependência em relação aos subsídios do sector público em certos casos”. É uma esperança notável, a do SEC, na medida em que propõe a substituição do dinheiro do orçamento de estado português pelo dinheiro do orçamento da UE, fenómeno virtualmente impossível considerando as regras e lógica do financiamento comunitário, mas ainda mais absurda quando, em qualquer circunstância, se trata de dinheiro público – nacional ou comunitário.
Francisco José Viegas aproveitou ainda o lançamento do maior programa europeu de apoio à cultura para mostrar a sua preocupação pelas pequenas, médias e microempresas do sector cultural, que “têm grandes dificuldades de acesso ao crédito”. Disse-o a propósito de um mecanismo integrado com esse fim no “Europa Criativa”, e que por certo ajudará a consolidar um tecido já maduro no centro e norte da Europa, mas que em Portugal é asfixiado sem redenção pelas políticas dos últimos governos. Sobre cultura propriamente dita, o SEC parece ter pouco a dizer. Seria uma vaga compensação se pelo menos sobre políticas europeias fosse capaz de aportar alguma observação competente. Pelo contrário, assistimos ao lamentável espetáculo da falta de preparação técnica, do desconhecimento gritante sobre o que são os fundos comunitários, como funcionam, ou qual o papel que desempenham na economia e organização das políticas públicas. E então a pergunta impõem-se: das 13 nomeações (sem contabilizar assistentes e motoristas) feitas por Francisco José Viegas para o seu gabinete, não haverá alguém com competências sobre esta matéria? Gente que tenha o mínimo de conhecimento e experiência para, pelo menos, evitar que venha a público um comunicado tão desfasado da realidade? Ou é só cinismo mal disfarçado de inépcia?