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Quando se quer transformar o essencial em invisível…
Os acontecimentos registados no Bairro da Jamaica, no concelho do Seixal, tiveram o condão de despertar a consciência de uns e reavivar a memória de outros no que concerne à existência de problemas tão diversos quanto complexos e que desenvolvem entre si uma irrefutável relação de perniciosa complementaridade.
A violenta carga policial sobre alguns moradores do bairro, que ocorreu na manhã de 20 de Janeiro e foi largamente noticiada pelos órgãos de comunicação social, despoletou um intenso debate público em torno de problemas tão graves e carentes de solução como o são, indiscutivelmente, o racismo institucional, a segregação racial, a pobreza predominante no seio de determinadas comunidades étnicas e raciais, as condições de vida deploráveis nos bairros periféricos das grandes cidades, a exclusão social.
Para surpresa inicial e subsequente inquietação das elites económicas, que se esforçam para esvaziar a luta de classes do seu sentido e troçam do empenho dos que oprimem desde a época da incursão pela África negra, estes temas estavam a reunir a atenção que há muito reivindicavam e mereciam.
Foi neste contexto e ainda num ponto inicial da discussão entretanto tornada ampla que se arrastou para o centro da arena política aquilo que pode ser considerado, no limite, um deslize linguístico de um dirigente de uma organização que luta contra o racismo e que se vê diariamente a braços com situações extremas de discriminação baseada na cor da pele. A expressão utilizada por Mamadou Ba para se referir às forças de segurança transformou-se no pretexto perfeito para aqueles que aguardavam de forma ávida a oportunidade de desconversar sobre o que começava então a ser conversado e ganhava, enfim, justificada visibilidade no espaço mediático. Daí até à tentativa de colocar o partido do qual Mamadou é assessor no papel de agente instigador de massas contra a autoridade policial foi um ápice. A narrativa, que tinha tanto de pérfida como de expectável, contava-se agora no ritmo e cadência desejados.
Tornou-se então notório que era de toda a conveniência para algumas forças do nosso espectro partidário travestir um desabafo publicado numa rede social por um assessor parlamentar bloquista e fazer disso um caso político. Como se já não fosse suficiente mais uma demonstração de oportunismo protuberante da direita, que, para além de servir os interesses das supra-citadas elites, faz desse poderoso instrumento o topo, o entremeio e o fundo da sua agenda política, à esquerda não ficou bem um mal disfarçado regozijo ao vislumbrar na situação entretanto criada um hipotético desastre alheio.
Dir-me-ão que são as regras do jogo político cumpridas com zelo ou até levadas para lá do seu limite tolerável num ano repleto de decisões eleitorais de extrema importância. Contudo, a decência e a honestidade intelectual nunca deveriam caminhar desirmanadas da orientação dada às organizações políticas ditas democráticas, independentemente das circunstâncias observadas.
Ao invés, parece que o fabrico e a confecção de casos e casinhos, já com a sua capitalização em urna a incorporar o plano estratégico de curto-prazo, se tornou especialidade no cardápio apresentado pelas demais forças partidárias representadas na Assembleia da República. A estas juntaram-se também os colectivos políticos recém-fundados, que não podiam perder a ocasião de saltar para a ribalta a partir dos compartimentos esconsos em que são colocados frequentemente pelas consultas de intenção de voto.
Esta é a conclusão que mais facilmente elaboramos ao abrirmos os jornais e sites noticiosos nos últimos dias e ao assistirmos ao debate quinzenal com a presença do primeiro-ministro, momentos vários em que ficou bem vincado e sem margem para grandes dúvidas que não haverá hesitação na hora de disparar acusações mais ou menos veladas sempre que o Bloco de Esquerda surgir na carreira de tiro.
É pois com a consciência de estar perante um plano concertado que tem como objectivos finais o abalo da sua estrutura organizacional, a consequente instabilidade interna e, por fim, a perda do seu tão disputado quinhão de eleitorado que o Bloco inicia um ano com três sufrágios de características bem distintas. Será, portanto, de vital importância para o futuro do movimento não emprestar o seu contributo para manobras dilatórias cujo único e exclusivo propósito é o de desviar a atenção do que é realmente importante.
E como realmente importante, tenhamos como exemplo a luta emancipatória das minorias raciais e étnicas, num país que não se considera racista e, simultaneamente, não se envergonha de relegar sempre as mesmas pessoas para os Jamaicas espalhados pelo seu território.
Texto de Rui Ricardo para o esquerda.net
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