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O FMI governa hoje no Equador

Neste artigo, o ex-ministro do Ambiente do Equador, Edgar Isch López, analisa as causas da revolta social reprimida esta semana pelo governo de Lenin Moreno, que decretou o estado de emergência no país.
Protestos em Quito
Imagem dos protestos desta quinta-feira em Quito, no Equador. Foto Jose Jacom/EPA

Não ganhou as eleições, o povo não os chamou, mas os técnicos do Fundo Monetário Internacional mandam hoje no Equador, em aliança plena com o governo dos empresários. Poucos dias antes do pacote de medidas económicas e laborais anunciadas pelo presidente Lenin Moreno, já a imprensa financeira anunciava que o FMI não desembolsaria o empréstimo contratado se o governo não impulsionasse as suas reformas. E quando a decisão foi tomada, o FMI veio dar o seu “apoio” à decisão governamental, como se a benção do organismo multilateral a santificasse.

As medidas assumem o caráter das receitas neoliberais: debilitar o Estado e fortalecer as grandes empresas; obrigar os pobres a pagarem a crise que os poderosos causaram e dela beneficiaram; trazer a fome a um povo inteiro para garantir o pagamento da dívida externa.

Elas usam a máscara dos discursos de dar transparência às finanças, de “pôr a casa em ordem” e, claro, de nos sacrificarmos “todos” para alcançar dias melhores. Quando chega a altura de tomar medidas deste tipo, os governos neoliberais dizem que é preciso apertar o cinto durante algum tempo, mas que em seguida virá o paraíso. Este governo diz que não é preciso apertar o cinto e que o aumento do preço dos combustíveis e do transporte de alimentos e pessoas não afetará a população.

O facto de as medidas estarem diretamente ligadas às imposições colocadas ao país em troca da dívida externa é uma das causas da sua ilegitimidade. As condicionalidades que acompanham as tranches dos empréstimos, trazendo obrigações a um Estado que se qualifica de soberano, ou a entrega de informação ao FMI que é ocultada ao povo, destroem qualquer sentido de democracia.

Juntemos a isso as palavras de Lenin Moreno na ONU, apelando a uma intervenção contra o povo da Venezuela, a entrega de uma base aérea nas Galápagos para uso de aviões de reconhecimento dos EUA (que o governo nega que seja uma base, como se o imperialismo não tivesse ampliado a sua definição das mesmas), as saídas do Equador da Unasur e da OPEP, centros de integração Sul-Sul, e teremos o quadro completo de um governo submisso a interesses estrangeiros, que espezinha a independência do Equador.

A sua aliança com a grande burguesia é natural, uma vez que este pequeno setor da sociedade equatoriana se encontra integrado, através de relações constantes e permanentes, com as transnacionais e os interesses estrangeiros.

O pacote de medidas impostas supostamente trará emprego. Essa foi a promessa do plano do governo da Alianza País, que foi cumprida ao contrário. Segundo afirmou o ministro do Trabalho, Andrés Madero, quando esteve na Assembleia Nacional, só entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019 foram despedidos 11.820 trabalhadores do setor público. Agora são anunciados mais dez mil despedimentos.

Também no setor privado a redução de postos de trabalho tem sido uma constante, numa escala particularmente grave no setor da construção, que é um dos que mais contrata, embora isso nada tenha a ver com as medidas económicas.

No Equador há uma contração económica geral, o PIB cresce menos de um ponto, o consumo das famílias está em queda, a gestão económica leva muitos a procurarem produtos de primeira necessidade na Colômbia (daí a recente greve da pauperizada província fronteiriça de Carchi), de forma que não existem condições de crescimento de empresas para consumo interno. De facto, fala-se de milhares de empresas de serviços e comércio que foram à falência, aumentando o desemprego.

Nestas condições, o anúncio do governo não passa de demagogia e pretexto para eliminar direitos sociais, aumentando a precariedade laboral. Entre as medidas deste tipo, que começam com os novos contratos, estão:

— Os contratos ocasionais serão renovados com um corte de 20% na remuneração. São violados princípios constitucionais que protegem os direitos adquiridos, é violado o princípio de salário igual para trabalho igual, e é permitida a sobrexploração.

— Os funcionários públicos passam de 30 a 15 dias de férias, como no setor privado, não tendo em conta que esses dias eram uma espécie de compensação porque o funcionário público não recebe a distribuição de uma parte reduzida dos lucros empresariais.

— Os trabalhadores de empresas públicas passam a dar, no mínimo, um dia do seu salário. A somar os 15 dias acima referidos a estes 12, estamos a falar de um mês inteiro por ano que, podemos dizê-lo, passam a trabalhar sem receber (nos 15 dias de férias recebiam pagamento por serem férias pagas, não por serem dias em que trabalhavam).

Em contrapartida, estas são as medidas para o setor empresarial:

— Eliminação do pagamento antecipado do imposto de rendimento, tal como exigiam ao governo;

— Eliminação ou redução de taxas aduaneiras sobre equipamentos, maquinaria e matéria prima, tanto agrícola como industrial, para que temnham “maior competitividade”.

— Eliminação de taxas aduaneiras na importação de telemóveis, tablets e computadores.

— Redução e simplificação do imposto de rendimento ao sector bananeiro.

— Devolução de impostos às empresas exportadoras para “dinamizar a economia”.

— Redução a metade do Imposto de Saída de Divisas (ISD) para matérias-primas, insumos e bens de capital.

— As empresas que faturam anualmente mais de 10 milhões de dólares “pagarão por três anos uma contribuição especial, que totaliza mais de 300 milhões, que se destinarão exclusivamente à segurança, educação e saúde”, segundo anunciou Moreno. Um montante pequeno quando comparado aos impostos, juros e multas que já perdoou com a reforma tributária, com a qual os grupos económicos pagaram 801 milhões mas deixaram de pagar 987 milhões (Jonathan Báez, ISIP, 2019), embora haja estimativas muito acima desse valor, chegando a avaliar-se o montante total acima dos 2.000 milhões de dólares.

Como se vê, a balança das decisões do FMI e do governo tem uma clara identidade de classe. A isso soma-se a liberalização dos preços da gasolina e do gasóleo, até agora subsidiados. O aumento imediato do transporte de carga e passageiros implica outro golpe à economia dos setores populares e médios, mas não afeta os industriais que passam esses custos para o preço que o consumidor paga.

Nestas condições, é justificada a reação imediata da população para protestar. Convocados sobretudo por setores perseguidos pelo anterior governo, como a Frente Unitária de Trabalhadores (FUT), que junta aos maiores centrais sindicais, e a União Nacional de Professores, a Confederação de Nacionais Indígenas do Equador (CONAIE), a Frente Popular, a Federação de Estudantes Universitários (FEUE), entre outras, que conseguiram grande apoio social. Ao lado da greve dos sindicatos dos transportes que se iniciou à meia noite de 2 de outubro, apenas um dia após o anúncio das medidas, dificultam o assalto aos interesses populares e levam a que até setores da direita digam ser “compreensivos” com a resposta popular que está a crescer. A luta social apenas está no início.

“Acabou-se o medo, retomamos a luta” foi uma frase repetida nas ruas e nas redes sociais. Hoje o medo passou para o lado do governo, que ao início da tarde de 3 de outubro declarou o Estado de Exceção em todo o território nacional.

O Decreto Presidencial 884 tem dez artigos que, entre outras coisas, mobiliza as Forças Armadas e a Polícia para manter a ordem, suspende em todo o território nacional o exercício do direito à liberdade de associação e reunião, para impedir a formação de ajuntamentos em espaços públicos durante as 24 horas do dia, limita o direito à liberdade de trânsito em todo o pais “nos casos em que se atente contra os direitos e garantias do resto dos cidadãos” e é autorizada a requisição de bens e serviços.

A medida, altamente repressiva e antidemocrática, é uma condição normal das medidas impostas pelo FMI e os setores empresariais com maior poder. A injustiça das decisões governamentais tem por base a redução de direitos.

Nas manifestações e nas ruas, assiste-se a uma grande agressividade das forças repressivas do Estado, prendem-se pessoas que estão ameaçadas de processos penais e pretende-se assim amedrontar a população. A paz social que os governos procuravam partiu-se no Equador, reinicia-se agora o tempo da luta direta. “Acabou-se o medo, retomamos a luta”.


Edgar Isch L. é um académico e ex-ministro do Ambiente do Equador. Associado do Centro Latinoamericano de Análise Estratégica, que publicou originalmente o texto. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.

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