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Manifesto da manifestação antirracista de Coimbra

No passado dia 6 de junho, quatro estudantes do ensino secundário e dos primeiros anos do ensino superior juntaram-se e conseguiram organizar um protesto antirracista que juntou mais de 600 pessoas, algo inédito para a cidade. Durante a mobilização foi lido este manifesto, escrito por uma aluna do 12º ano, Madalena Bindzi.
Madalena Bindzi na manifestação em Coimbra.

MANIFESTO

Nenhuma destas mortes foi algo isolado.

Nenhuma destas mortes foi acidental, nenhuma destas mortes foi uma exceção, nenhuma destas mortes é sequer minimamente justificada.

É revoltante.

Estas mortes revelam um padrão. Estas mortes reduzem a existência do homem negro e da mulher negra a um mero número, a um registo, a um mero caso arquivado após juízes absolverem as inúmeras acusações contra o verdadeiro transgressor, contra o verdadeiro criminoso. Todas as condenações por homicídio, todo o seu histórico de assassino. E isto, não. Não é algo isolado.

Estamos aqui porque nos fartámos.

Fartámo-nos de viver num mundo que criminaliza e marginaliza as pessoas negras unicamente pela sua aparência: unicamente pelo nosso tom de pele, pelas características que nos fazem tão assumidamente negros. 

Fartámo-nos de viver num mundo que prioriza a impunidade desses agressores face à vida de um ser humano.

Racismo não é algo isolado. Racismo nunca foi algo isolado.

Ele viveu desde os primórdios das formações dos nossos grandiosos impérios. Viveu desde a formação de todo um mundo ocidental por estabelecimento das grandes elites e realezas brancas que nunca se preocuparam em constituir algo que nos incluísse, que nos protegesse, que nos concedesse os mais básicos direitos.

Ele viveu desde que partimos à Conquista, à conquista da imensidão de mar que viria a ser batizado português.

Ele viveu desde que a Europa se fixou na costa do continente africano.

Ele viveu desde os inícios da exploração do trabalho forçado nas grandes potências coloniais. Ele viveu desde o estabelecimento da assunção de direitos de propriedade por parte do homem branco sobre outro ser humano – o escravizado, o negro.

Ele viveu desde a apropriação desse trabalho indígena, dessa exploração.

Ele viveu desde o tráfico de vidas humanas.

Ele viveu de violações, mortes, sofrimento, vergonha, medo, tortura.

Ele viveu do lucro trazido pela exploração de milhares de vidas negras.

Ele viveu do completo genocídio, do completo extermínio, do completo ódio.

E hoje, ele vive. O racismo vive.

Permanece vivo de violações, mortes, sofrimento, vergonha, medo, tortura e ódio.

Permanece no tráfico de vidas humanas.

Vive reproduzido em discursos de louvor, enaltecedores da magnífica capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos.

Vive reproduzido numa educação embranquecida, eurocêntrica, alimentando-se da ilusão de que aparentemente não existiu.

Vive do medo da verdadeira história, mascarando o colonialismo e todas as atrocidades trazidas pelos portugueses às nações africanas.

Vive cobarde, escondendo-se nesse imperialismo doentio, não assumindo a relevância e o pioneirismo do papel português no tráfico de escravos transatlântico.

Ele vive na enorme ausência de apoios e na constante discriminação nos serviços sociais.

Ele vive nas inúmeras instituições, ele vive do impedimento de oportunidades de acesso nos vários setores da nossa sociedade – na habitação, na saúde, na educação, na justiça, no mercado de trabalho.

Ele vive favelado, isolado, agredido, desprezado, excluído.

Ele vive nos empregos e trabalhos mais precários e débeis da sociedade.

Ele vive do lucro gerado pela nossa exclusão, pela ausência da nossa representação.

Ele vive miserável, em barcos insufláveis de borracha, em barracas, escravizado, mal tratado, explorado.

Vive confinado à condição que lhe foi imposta, conformado à inacessibilidade automática dos seus sonhos.

Imposta por um mundo branco que se recusa a assumir e combater o seu problema.

Ele é um sistema.

Um sistema que reforça um preconceito, marginaliza, brutaliza.

Um sistema que dá vida àqueles que não se parecem comigo.

Um sistema que nos descarta. Que nos ignora. Que nos mata.

Ele não é, nem nunca foi apenas um acidente isolado.

E amanhã?

Amanhã não passaremos as nossas vidas, reduzidos à perceção  que ele definiu para nós.


Madalena Bindzi, estudante do 12º ano da Escola Secundária Avelar Brotero, Coimbra

Termos relacionados Racismo mata, Comunidade
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