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Luta de classes, por onde andas?

Há dias, numa sessão do nunca tão elogiado como merece Cineclube de Faro, fui ver o filme “Parasitas” que agora ganhou vários Óscares de Hollywood. Por Vítor Ruivo.
Imagem do filme "Parasitas"
Imagem do filme "Parasitas", de Bong Joon Ho

Exponho aqui um comentário motivado apenas por ter lido em apreciações de alguns dos nossos habituais críticos de cinema que se trata de uma “original forma” de apresentar a “luta de classes”.

Bem, para haver luta de classes é preciso que haja classes e que elas se manifestem em luta. Julgo que, no filme, não é isso que aparece. Para além da envolvência do caos social e da desorganização urbana, aparecem indivíduos agindo, e até lutando, por sobreviver. Junto com a sua expressão pessoal, o que aparece como algo colectivo é a família. Duas famílias pobres e uma rica.

Sobretudo os elementos da família pobre mais numerosa, se usarmos um velho conceito marxista, representam o lupen-proletariado, ontem como hoje, pessoas socialmente marginalizadas, a maior parte do tempo desempregados, e que vivem de biscates e de pequenos estratagemas mais ou menos fraudulentos. A família rica representa a classe média alta, julgo que não na forma de um capitalista patronal, mas de um alto quadro técnico e executivo…

Nem metaforicamente se pode dizer que representem as classes a que, de modo geral, se atribui o confronto, quando se fala em “luta de classes” – de um lado o proletariado, a classe trabalhadora, o Trabalho, e do outro, os patrões capitalistas e seus agentes, o Capital.

Sim, ao longo do filme está bem presente a polarização das classes, na realidade da pobreza e da degradação crescente, de um lado, e da riqueza, do seu uso e até ostentação, do outro. Mas isso, só por si, não quer dizer luta de classes.

Ainda mais quando, quem mais trabalhou este conceito e o elevou a centro da sociedade actual – o domínio do Capital – faz dessa luta, em permanência económica, política e social, por vezes mesmo literalmente física, a luta de uma classe dominante, que usa todos os meios para manter o seu domínio e poder, contra a outra classe, cada vez mais numerosa, a qual pretende derrotar esse poder e substituí-lo pelo seu. Tendo como horizonte, ainda que longínquo, a extinção das classes.

Não é esta luta que, no filme, é ilustrada. Nem de forma real, nem simbólica. No filme, quando a luta é pacífica, evolui como uma comédia de enganos das famílias pobres sobre a família rica, aliás só fantasiosamente tão ingénua. Quando a luta é fisicamente violenta dá-se a maior parte do tempo entre as duas famílias pobres, lutando pelo poder de parasitarem (porque o seu assalariamento tem uma base fraudulenta) a rica.

E, mesmo no desenlace da violência, o enclausurado pobre, depois de despachar o filho da outra família pobre (que o buscava com a mesma vontade), dirige-se na intenção de matar o seu rival pobre, desorienta-se para o pai rico, que não mata, porque a filha do pai pobre se interpõe e é ela que é morta. E desorienta-se o espectador, se só vir o filme uma vez…
Pressupõe-se, na chamada “luta de classes”, que, pelo menos uma vez por outra, e como tendência, surjam, ao invés daqui, momentos de “solidariedade de classe”.

Mas, quando o pai pobre mata o pai rico, não há, pelo menos aí, um cheirinho de luta de classes? Quem veja o filme que diga de sua justiça!

Para mim, a distância e o “mau cheiro” que a família rica sentia nas roupas do pai pobre e da sua família e que a este foi provocando um ressentimento tal que, num rastilho lento de vingança, mas longe de qualquer solidariedade de classe ou de sua consciência, mata o patrão, é bem pouco para ver na fita uma “metáfora da luta de classes”.

Para mim, é mais um dos “achados” em que o filme é pródigo, para que os espectadores concluam: “Grande filme! Traduz mesmo o caos do mundo actual!” (Tal e qual o Joker!).

Sim, isso traduz. E essa é, como a presença da desigualdade e da polarização social, uma das virtudes do filme.

No entanto, o final não deixa dúvidas quanto à presença da tal “luta de classes”. Amortalhado por o pai se ter refugiado, agora ele, no bunker da casa dos ricos, sem nenhuma esperança de poder sair em liberdade, o filho dirige-lhe uma imaginária carta com a promessa de enriquecer e vir ele a comprar a casa e libertar o pai.

Sim, claro que esta é uma disposição, uma vontade, mais que lógica na sociedade actual, e, realizável ou não, sinal até de um grande amor filial. Mas, convenhamos, independentemente das boas e mesmo progressistas que sejam as intenções do realizador, não é a mensagem cujo conteúdo se possa dizer o da “luta de classes”.

A não ser que, nos tempos que correm, tenhamos que nos contentar (e vá lá, vá lá) com uma “luta de classes” que não possa ir além de visionar a realidade, as suas dolorosas contradições, eternamente gratos a quem nos permite esse conhecimento, subtraindo-nos, por umas horas, ao domínio e à manipulação das fakenews todo poderosas, mas para sempre prisioneiros entre a visão apocalíptica e a incapacidade de querer superá-la.

E por aqui nos ficaríamos, ou, talvez se incomodados por algum sentimento de culpa social, atinaríamos numa conclusão ainda mais triste: “Afinal, somos todos parasitas…!”.

Não sei bem por onde vou, mas sei que não vou por aí!

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