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A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!

A entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores. Por Ernesto Costa, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra

Vivemos hoje um tempo novo, por força da pandemia provocada pelo Covid-19. Quais os reflexos da crise actual na instituição universitária? Como está a responder a uma necessidade urgente de soluções para este problema que é desde logo de saúde pública, mas também um problema  social, económico e político? Afinal, para que servem as universidades, mesmo, ou sobretudo, em tempos como os que estamos a viver agora?

A característica central de uma universidade é ser o local onde se promove um bem público essencial: o conhecimento. É nelas que se cria (investigação), difunde (ensino) e valoriza (transferência) o conhecimento. O modo como esta missão tripartida tem sido instanciada tem evoluído ao longo dos tempos, sendo certo que há uma cada vez maior predisposição para colocar a tónica na valorização económica do saber, colocando a investigação e o ensino ao serviço deste pilar da missão das universidades. Dizem-nos que os dias de hoje exigem universidades modernas, querendo com isto significar universidades atentas à, e interagindo com, a sociedade que as rodeia.  As universidades, para os defensores desta visão utilitarista,  da Nova Gestão Pública, devem ter um novo modelo de governo e de gestão, se querem sobreviver num mundo global. Em Portugal, este ponto de vista ficou consubstanciado no Decreto-Lei nº 62/200, que define o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES).

O RJIES veio introduzir profundas alterações ao modelo de governo e de organização.  A pretexto de uma melhor e mais eficiente gestão e de uma abertura à sociedade, o RJIES levou ao desaparecimento do Senado como órgão de decisão, onde os diferentes corpos estavam representados, trocado por um novo órgão, o Conselho Geral, em que têm assento dez personalidades externas, e no qual a paridade entre corpos desapareceu, com uma forte redução da representação dos estudantes e dos não docentes. Traduziu-se ainda no aumento do poder do Reitor. O regime fundacional vem tornar ainda mais grave o deficit de participação democrática e a falta de autonomia. O aparecimento de um Conselho de Curadores, nomeado pelo governo sob proposta do Conselho Geral, composto exclusivamente por personalidades externas, que não responde perante ninguém e com poderes fundamentais que antes eram do CG é disso prova. A agravar este quadro está a possibilidade de criar carreiras próprias e de efectuar contratações com base no direito privado. Em síntese, a entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.

A crise do coronavírus veio mostrar a falácia do modelo de governo e de gestão actual das universidades. Desde logo, porque se assiste a uma total ausência de participação da comunidade universitária na discussão dos problemas gerados pela pandemia, nomeadamente os problemas criados pela impreparação das instituições para novas formas de ensino/aprendizagem, com a consequente sobrecarga dos docentes, no enquadramento e apoio às iniciativas dos docentes e investigadores para participar no desafio mundial de descoberta de uma solução cientifica, que contrarie a propagação e os efeitos nefastos do vírus. Não deixa de ser irónico que os que mais contribuíram para a efectivação do sub-financiamento das universidades se dirijam agora aos investigadores clamando por ajuda…

Mas há uma outra dimensão relevante: o desrespeito dos Reitores pelo único órgão de decisão colegial, o Conselho Geral. Os Reitores decidem sozinhos, perante a passividade da generalidade dos CGs, que têm competência para aprovar as orientações estratégicas da universidade, mas também para apreciar os actos do Reitor e propor as iniciativas que considerem necessárias ao bom funcionamento da Universidade, mas não o têm feito.  O que esta crise veio mostrar é que precisamos de uma instituição universitária que respeite e ouça os seus membros, uma universidade onde a palavra democracia não seja apenas um chavão. Precisamos de um novo RJIES, que respeite os princípios constitucionais da autonomia e da participação.

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Neste dossier:

Transformar a Academia

Transformar é a palavra de ordem para os temas deste dossier: Democratização do governo das instituições de Ensino Superior, combate à precariedade laboral, a luta anti-propinas, por mais financiamento público e uma Ação Social que não deixe ninguém de fora.  E a centralidade do conhecimento científico para enfrentar a crise que vivemos. Dossier organizado por Luís Monteiro.

O Ensino da Economia na Universidade portuguesa

O ensino da economia nas universidades portuguesas é acanhado, acrítico e desligado dos verdadeiros desafios que a disciplina se propõe a enfrentar. Por André Francisquinho, Estudante de Economia na UNL.

 

Somos todos bem-vindos (?)

Há barreiras enormes no acesso ao ensino superior para os alunos do ensino regular, quer pelo método de seleção, alojamento, propinas, despesas. Nos cursos profissionais, a situação não é diferente. Apenas 18% dos estudantes do ensino profissional prosseguem estudos para o Ensino Superior. Por Eduardo Couto, Ativista Estudantil e LGBTI+, estudante do Ensino Profissional
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Por uma gestão democrática do ensino superior

É precisamente a ausência de democracia e poder real nas mãos dos estudantes, que o sabem concentrado num sistema piramidal e em interesses alheios ao serviço público, que os tem afastado da participação. Por Eduardo Esteves, estudante de Direito na UP, e Pedro Moura, estudante de Ciência política na UM.

Saúde Mental no contexto universitário

Quando se é jovem e se está a começar uma vida como estudante do ensino superior, é-nos exigida a paz de espírito, o controle e a felicidade porque com a nossa idade ‘’ainda não existe experiência de vida suficiente para se estar mal”. No entanto, os números não mentem. Por Catarina Ferraz, ativista estudantil e social. Aluna do Ensino Superior.

 

Somos a voz adormecida que precisa de ser acordada

Se somos os mais preparados, então saibamos utilizar essa ferramenta para transbordar o papel do estudante enquanto agente passivo de um futuro mercado de trabalho explorador e excludente. Por António Soares, ativista estudantil na Universidade do Minho.

 

Sobre a gestão da Carreira Docente (concursos e progressão)

Talvez por tradição, a gestão de carreiras no Ensino Superior é notavelmente singular porque parece que estas instituições têm um procedimento que mais organização nenhuma tem em Portugal ou no estrangeiro. Por Rui Penha Pereira, Docente do Ensino Superior
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RJIES: tirar o esqueleto do armário

As instituições que adotaram o regime fundacional passaram a reger-se pelo direito privado em várias áreas, nomeadamente, na gestão financeira, patrimonial e do pessoal. A passagem a este regime revelou-se sinónimo de precarização das relações laborais de docentes, não-docentes e investigadores. Por Tomás Marques, estudante universitário e ativista estudantil.

 

Humanizar e Artestizar

As humanidades e artes continuam a ser os cursos a quem se pergunta o que fará da vida com isso. São áreas deficitárias que, enquanto se gasta dezenas de milhões para atrair (com cursos de gestão e afins) estudantes de países ricos, mantêm alunos de faculdades de Letras ou de Belas Artes a conviver com a degradação e até com a insalubridade. Por Pedro Celestino, Ativista Estudantil na Universidade de Lisboa

 

Para uma mudança do paradigma: o ensino superior a Nordeste

As instituições de ensino superior e as unidades de investigação desenvolvem as suas atividades recorrendo ao “exército” de bolseiros de investigação criado pela FCT que dá cobrimento ao já velho corpo docente que é, muitas vezes, um entrave à legalização da contratação dos recentes doutorados. Por Pedro Oliveira, Assistente convidado (precário) no Instituto Politécnico de Bragança.

A Universidade: do Elitismo à sua Democratização

Não podemos continuar a assumir, de uma forma indireta, que o aumento do número de alunos no Ensino Superior em Portugal vale por si só. É preciso saber, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade desse Ensino. Por Catarina Rodrigues, estudante e ativista.

“Dura Praxis, Sed Praxis”

Desde o horrível caso do Meco, que a sociedade civil se debruçou sobre este fenómeno social com outros olhos. Mas o que é, ao certo, a praxe? Um grupo de estudantes? Uma “instituição” académica? Uma seita? Uma tradição? Por Miguel Martins, ativista social e estudantil. Estudante do Ensino Superior
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O mal-estar da Universidade

Esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração. Por Pedro Levi Bismarck, Arquiteto e Docente Precário na Universidade do Porto

 

A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!

A entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.  Por Ernesto Costa, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra

 

O que é que o COVID-19 nos ensinou sobre a Ciência?

Depois desta pandemia passar, tem de ser pensada a criação de um programa de literacia cientifica. Não precisamos todos de perceber a fundo a investigação toda que se faz, deixemos isso aos investigadores profissionais. Mas seremos um país melhor se toda a gente perceber conceitos básicos de Ciência. Por Ana Isabel Silva, Investigadora do i3s e Ativista contra a Precariedade

 

A politização da mentira

Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Por Rodrigo Afonso Silva, ativista estudantil e membro da Greve Climática Estudantil

 

Desigualdade de género no Ensino Superior

Apesar de as mulheres, no geral, serem mais graduadas que os homens – existem mais mulheres licenciadas, mestres ou doutoradas do que homens - , são ainda quem ganha menos e quem tem menos acesso a posições de liderança dentro e fora das Instituições de Ensino Superior. Por Leonor Rosas, estudante universitária, ativista estudantil e feminista.

 

O Ensino Superior Politécnico em Portugal

Com o passar do tempo o ensino superior politécnico e o ensino universitário sofreram uma aproximação em algumas áreas científicas que se materializou no ministrar de licenciaturas de caráter semelhante. Mas esta aproximação não resultou numa uniformização ao nível do ensino e da carreira docente. Por Rui Capelo, estudante do Instituro Politécnico de Setúbal.

O (Sub)Financiamento do Ensino Superior e a Propina

Devido ao subfinanciamento crónico do Ensino Superior, houve um aumento cada vez maior do peso das propinas no financiamento das IES. Por consequência, apesar de a Propina poder variar entre o valor mínimo e máximo, tendo as IES autonomia nesta decisão, o valor fixado é sempre muito próximo do máximo, de forma a contrapor o subfinanciamento. Por Ana Isabel Francisco, Ativista Estudantil na FCT UNL.

 

O mantra da “Autonomia Responsável”

O confinamento ou o Estado de Emergência não podem servir de pretexto para comprimir a fraca vivência democrática que o RJIES trouxe ao Ensino Superior. Por Luís Monteiro, Museólogo e Deputado do Bloco de Esquerda.

O regresso à anormalidade

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. Por Miguel Cardina, Historiador e Investigador do CES-UC.

A Ciência Desconfinada

Como vamos “desconfinar” a ciência? Volta para o seu cantinho semi-escondido? Continuará ser um sector cronicamente subfinanciado? Continuará a ser a campeã da precariedade? Ou terá finalmente o reconhecimento que merece? Por Teresa Summavielle, Investigadora do i3S.