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A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!
Vivemos hoje um tempo novo, por força da pandemia provocada pelo Covid-19. Quais os reflexos da crise actual na instituição universitária? Como está a responder a uma necessidade urgente de soluções para este problema que é desde logo de saúde pública, mas também um problema social, económico e político? Afinal, para que servem as universidades, mesmo, ou sobretudo, em tempos como os que estamos a viver agora?
A característica central de uma universidade é ser o local onde se promove um bem público essencial: o conhecimento. É nelas que se cria (investigação), difunde (ensino) e valoriza (transferência) o conhecimento. O modo como esta missão tripartida tem sido instanciada tem evoluído ao longo dos tempos, sendo certo que há uma cada vez maior predisposição para colocar a tónica na valorização económica do saber, colocando a investigação e o ensino ao serviço deste pilar da missão das universidades. Dizem-nos que os dias de hoje exigem universidades modernas, querendo com isto significar universidades atentas à, e interagindo com, a sociedade que as rodeia. As universidades, para os defensores desta visão utilitarista, da Nova Gestão Pública, devem ter um novo modelo de governo e de gestão, se querem sobreviver num mundo global. Em Portugal, este ponto de vista ficou consubstanciado no Decreto-Lei nº 62/200, que define o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES).
O RJIES veio introduzir profundas alterações ao modelo de governo e de organização. A pretexto de uma melhor e mais eficiente gestão e de uma abertura à sociedade, o RJIES levou ao desaparecimento do Senado como órgão de decisão, onde os diferentes corpos estavam representados, trocado por um novo órgão, o Conselho Geral, em que têm assento dez personalidades externas, e no qual a paridade entre corpos desapareceu, com uma forte redução da representação dos estudantes e dos não docentes. Traduziu-se ainda no aumento do poder do Reitor. O regime fundacional vem tornar ainda mais grave o deficit de participação democrática e a falta de autonomia. O aparecimento de um Conselho de Curadores, nomeado pelo governo sob proposta do Conselho Geral, composto exclusivamente por personalidades externas, que não responde perante ninguém e com poderes fundamentais que antes eram do CG é disso prova. A agravar este quadro está a possibilidade de criar carreiras próprias e de efectuar contratações com base no direito privado. Em síntese, a entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.
A crise do coronavírus veio mostrar a falácia do modelo de governo e de gestão actual das universidades. Desde logo, porque se assiste a uma total ausência de participação da comunidade universitária na discussão dos problemas gerados pela pandemia, nomeadamente os problemas criados pela impreparação das instituições para novas formas de ensino/aprendizagem, com a consequente sobrecarga dos docentes, no enquadramento e apoio às iniciativas dos docentes e investigadores para participar no desafio mundial de descoberta de uma solução cientifica, que contrarie a propagação e os efeitos nefastos do vírus. Não deixa de ser irónico que os que mais contribuíram para a efectivação do sub-financiamento das universidades se dirijam agora aos investigadores clamando por ajuda…
Mas há uma outra dimensão relevante: o desrespeito dos Reitores pelo único órgão de decisão colegial, o Conselho Geral. Os Reitores decidem sozinhos, perante a passividade da generalidade dos CGs, que têm competência para aprovar as orientações estratégicas da universidade, mas também para apreciar os actos do Reitor e propor as iniciativas que considerem necessárias ao bom funcionamento da Universidade, mas não o têm feito. O que esta crise veio mostrar é que precisamos de uma instituição universitária que respeite e ouça os seus membros, uma universidade onde a palavra democracia não seja apenas um chavão. Precisamos de um novo RJIES, que respeite os princípios constitucionais da autonomia e da participação.
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