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Uma mudança na política de cuidados: o Serviço Nacional de Cuidados

O Bloco propõe, no seu programa eleitoral, a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito. 
Fotografia: Donnie Ray Jones/Wiki Commons

A pandemia expôs as várias dimensões da “crise de cuidados” que vivemos. A provisão de cuidados sociais continua a assentar, em grande medida, nas famílias e, dentro destas, a sobrecarregar as mulheres no cuidado de crianças, idosos e pessoas dependentes.

Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo. No ano de 2020, 23% da sua população tinha mais de 65 anos de idade, o que torna mais urgente a adoção de políticas públicas eficazes a enfrentar o combate ao isolamento e solidão, bem como a diminuir a taxa de risco de pobreza deste grupo geracional, sendo que as mulheres se encontram entre as mais atingidas por este flagelo.

O nosso país tem, além disso, uma escassa taxa de cuidados formais: menos de 13% dos idosos têm acesso a apoio de profissionais, seja apoio domiciliário, seja apoio institucional (centros de dia e lares). A rede de cuidados continuados não tem mais de 15 mil vagas, num país em que as necessidades ultrapassam muito a oferta. A despesa pública em cuidados de longa duração é irrisória: 0,4% do PIB, quando em países do norte da Europa, por exemplo, é dez vezes mais. 37% dos mais de 100 mil lugares em creche não têm comparticipação pública. Por outro lado, a escassez de cuidados formais não é sequer compensada com o reconhecimento do cuidado informal e com transferências sociais para as famílias: o estatuto do cuidador informal tem vindo a ser boicotado pelo Governo e não abrange mais do que 900 pessoas em todo o país, as prestações por dependência oscilam entre os 105 e os 190 euros mensais.

O modelo de cuidados que temos é injusto, promove a desigualdade e a divisão sexual do trabalho e assenta na externalização e na precariedade. As respostas para a infância, para a velhice e para a dependência são protagonizadas pelo setor social privado, financiado por acordos de cooperação com a Segurança Social (cerca de 1500 milhões de euros por ano)  e tem vindo a ser rejeitado que o Estado disponha de uma rede pública de creches, de respostas para a velhice e a dependência ou de uma bolsa pública de ajudantes familiares ou assistentes pessoais. Nos cuidados continuados, só 2% da oferta é pública. Em algumas tipologias, não há nenhuma resposta pública, mas sim uma parte comparticipada pelo Estado.

Entre as profissionais de cuidados e do serviço doméstico (em ambos os casos, cerca de 90% mulheres) a precariedade e os baixos salários são a norma. A área dos cuidados é das que mais tem criado emprego, mas num modelo precário. Ao mesmo tempo, grandes multinacionais têm vindo a organizar-se na Europa para criarem um mercado de cuidados, particularmente para idosos, aproveitando os vazios da política pública. Criar uma resposta a esta lacuna, garantindo a criação de dezenas de milhares de postos de trabalho com direitos, deve ser uma prioridade da esquerda. Os modelos de resposta que hoje prevalecem, assentes na institucionalização das pessoas, na estandardização  de procedimentos e na desvalorização da autonomia de cada um e cada uma geram sofrimento e têm de ser repensados.

É preciso uma mudança paradigmática. Essa transformação no modo de organizar os cuidados em Portugal tem várias dimensões: culturais, laborais e económicas. E deve ser feita a vários tempos.

O Bloco propõe que se responda no imediato às necessidades do envelhecimento e à dependência, reforçando as respostas sociais.

As propostas do Bloco:

- Investimento na rede de serviços de proximidade e de cuidados domiciliários, como suporte de continuidade das pessoas nas suas casas e na comunidade;

- Reforço da comparticipação estatal nos acordos de cooperação com o setor social para valores que acompanhem a inflação, de forma a cobrirem as despesas das mais variadas respostas dadas atualmente pelas IPSS;

- Reformulação dos acordos de cooperação com o setor social para permitir a adaptação das respostas sociais às necessidades da população, designadamente através de alargamento de horários de funcionamento;

- Inspeção regular das Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (Lares) e dos Centros de Dia, tanto nas condições de segurança como na garantia da qualidade dos cuidados prestados e adequação de funções dos e das profissionais que lá trabalham;

- Exigência de contrapartidas laborais nos acordos de cooperação com IPSS, designadamente a progressiva uniformização das tabelas salariais entre setor social e as mesmas categorias no setor público, a existência de contratos estáveis e o não recurso a falsos recibos verdes por parte das instituições com as quais o Estado celebra acordos de cooperação;

- Exigência de que seja alargado a todo o território nacional e aplicado integralmente o Estatuto dos Cuidadores e Cuidadoras Informais, reconhecendo o seu trabalho na prestação de cuidados;

- Prioridade ao policiamento de proximidade que, em articulação com as autarquias locais, unidades de saúde  familiares (USF) ou Centros de Saúde, permitam a sinalização de séniores em risco, seja de violência, seja de solidão, seja de pobreza extrema;

- Criação de um Sistema de Telecuidado público articulado com o SNS;

- Garantia de médico de família para maiores de 65 anos e resposta adequada de cuidados paliativos;

- Criação de unidades locais de reabilitação e suporte a pessoas com doenças degenerativas em todas as freguesias ou por uniões de freguesia.

O Bloco defende ainda que se repense profundamente a política pública de provisão de cuidados. Para isso, propõe a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito:

- Este serviço deve começar pela criação de respostas públicas nas tipologias que a lei já prevê (creches, centros de dia, centros de noite, estruturas residenciais para pessoas idosas, apoio domiciliário, centros comunitários, centros de atividades ocupacionais, unidades de cuidados continuados, equipas de cuidados paliativos, entre outros), a partir da identificação das zonas com maior carência de resposta e da identificação de imóveis que sejam propriedade do Estado e que possam ser utilizados para o efeito;

- O Serviço Nacional de Cuidados deve também promover a articulação entre os serviços de saúde e da segurança social, nomeadamente integrando o apoio domiciliário hoje apoiado pela Segurança Social com a intervenção domiciliária das equipas de cuidados na comunidade existentes na rede de cuidados primários de saúde. O Serviço Nacional de Cuidados deve promover também a articulação entre segurança social e educação, nomeadamente nas respostas à infância e na concretização da rede pública de creches (ver propostas no final deste texto);

- O Serviço Nacional de Cuidados deve tutelar as respostas aos cuidadores e cuidadoras informais, concretizando todas as dimensões em falta no Estatuto dos Cuidadores Informais, designadamente o descanso ao cuidador, o apoio domiciliário, o acesso à rede de cuidados continuados e o acesso a licenças;

- O Serviço Nacional de Cuidados deve promover um plano de desinstitucionalização que passe pela construção e pelo financiamento de novas respostas assentes na autonomia das pessoas e na sua associação cooperativa: modelos de co-habitação e novos formatos de habitação pública com infraestruturas de cuidados (centros de convívio, lavandarias públicas, espaços para crianças, cozinhas partilhadas), uma bolsa nacional de apoio domiciliário (incluindo cuidados sociais, de saúde, serviço doméstico e atividades culturais para pessoas dependentes) e uma bolsa nacional de assistentes pessoais (na linha do modelo da Vida Independente, que deve merecer um investimento robusto);

- O Serviço Nacional de Cuidados deve prever a possibilidade de parcerias público-público, eliminando desde logo a impossibilidade legal de financiamento direto da Segurança Social a respostas sociais geridas pelos municípios e freguesias.

Numa segunda fase, o Serviço Nacional de Cuidados pode paulatinamente internalizar algumas das funções e dos equipamentos que fazem atualmente parte da rede de instituições do setor social, como se fez aquando da criação do Serviço Nacional de Saúde, dando coerência e planeamento a uma rede pública em todo o território.

Uma rede pública de creches
A Carta Social de 2019, salienta “uma insatisfatória cobertura média das respostas e equipamentos sociais para a 1ª infância, o que no caso das creches não abrange metade das necessidades (48,4%). Esta é uma das razões para ser tão caro inscrever uma criança na creche, às vezes mais do que numa universidade privada. Mesmo quando se trata de creches com acordos com a Segurança Social, o valor das mensalidades pode representar metade do salário médio. Este quadro limita o acesso das famílias à resposta e ignora que a criança é um sujeito de direitos desde que nasce. O custo das creches relaciona-se com duas opções erradas: não incluir as creches no sistema educativo, mas no campo da ação social, pelo que a oferta está nas mãos do setor privado e no setor social (IPSS) financiado através de acordos de cooperação com a Segurança Social; e percepcionar as creches como assistência às famílias e não no quadro dos direitos da infância, o que contribui para desresponsabilizar o Estado. A Recomendação nº 3/2011 do CNE sobre “A educação dos 0 aos 3 anos” considera que a concretização do direito das crianças à creche é “um fator de igualdade de oportunidades, de inclusão e coesão social”. O mesmo documento sustenta que a frequência da creche deve “ser universal, de modo a que as famílias disponham de serviços de alta qualidade a quem entregar os seus filhos, serviços esses que devem estar geograficamente próximos da respetiva residência ou local de trabalho” (2ª recomendação). E, no mesmo sentido, defende que “o Ministério da Educação deve assumir progressivamente uma responsabilização pela tutela da educação da faixa etária dos 0-3” (3ª recomendação).

O Bloco propõe: 
- Inclusão das creches no sistema educativo;
- Criação de uma rede nacional de creches públicas com cobertura universal a integrar no Serviço Nacional de Cuidados;
- Contabilização do tempo de serviço dos Educadores de Infância afetos às creches para todos os efeitos do Estatuto da Carreira Docente.

(...)

Neste dossier:

Serviço Nacional de Cuidados

Cuidar. De crianças. De idosos. De pessoas doentes. De pessoas com diversidade funcional. Cuidar dos outros. Cuidar de quem precisa tem sido uma função quase exclusivamente feminina, assegurada sem reconhecimento social e sem pagamento. Não tem que ser assim. E não deve ser assim. Cuidar de quem precisa pode e deve ser um serviço público, um Serviço Nacional de Cuidados. 

A reconversão do Natal até à sua extinção nos moldes atuais (all we want for christmas is)

Esquematicamente, os eventos familiares significam rituais de cuidados recrutadores, de forma discriminada e discriminatória, de mão-de-obra para a sua preparação, realização e desfecho. Artigo de Mafalda Araújo.

O cuidado como ecologia

O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Artigo de João Arriscado Nunes. 

Uma mudança na política de cuidados: o Serviço Nacional de Cuidados

O Bloco propõe, no seu programa eleitoral, a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito. 

Direitos humanos não se discutem. Cumprem-se!

Estar institucionalizado significa, para as pessoas com deficiência, a perda da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Significa quase sempre não poder escolher o que comer, as horas a que se levanta ou deita, se pode sair à noite ou não, dormir com o namorado ou mesmo escolher o canal de televisão a que quer assistir. Artigo de Jorge Falcato. 

Novos modelos de resposta ao desafio dos cuidados: a co-habitação/co-housing 

O movimento co-housing, como o conhecemos atualmente, surgiu na Dinamarca no final dos anos 60, tendo, mais tarde, sido adaptado noutros países. Artigo de Conceição Nogueira.

Cidades que cuidam

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Artigo de Maria Manuel Rola. 

O cuidado para que nada fique como dantes

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Artigo de Teresa Cunha.

"O capitalismo privatiza a vida e socializa a morte"

As trabalhadoras da reprodução social são as mais mal pagas, são as primeiras a serem despedidas, enfrentam constantemente o assédio sexual e, muitas vezes, violências diretas. Entrevista com Tithi Bhattacharya, traduzida por Andrea Peniche.

Que vida além dos 60?

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre. Artigo de Deolinda Martin e Isabel Ventura.

Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS

São cerca de 63 mil as pessoas  que trabalham em Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). A maioria trabalha no apoio à infância,  à juventude, à deficiência e à terceira idade. Artigo de Joaquim Espírito Santo e Pedro Faria. 

Manifesto "Cuidar de quem cuida"

O nosso futuro depende, em grande medida, do futuro dos cuidados. As infraestruturas de cuidados de que dispomos, bem como o número atual de trabalhadores desta área, são insuficientes para colmatar as necessidades. É essencial uma estratégia de reestruturação dos cuidados como um direito 
social, capaz de pôr em causa as desigualdades – de género, de classe, de origem territorial – que hoje prevalecem. Manifesto de José Soeiro, Mafalda Araújo e Sofia Figueiredo. 

Manifesto: Reconstruindo a organização social do cuidado

Este é um movimento global para exigir a reconstrução da organização social do cuidado. É hora de reconhecer o valor social e económico dos trabalhos de cuidado (remunerado e não remunerado) e o direito humano ao cuidado. 

Sara Barros Leitão e Conceição Ramos conversam sobre trabalho doméstico

A peça "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa" de Sara Barros Leitão conta a história do sindicato das trabalhadoras de serviço doméstico a partir da vida de Conceição Ramos, fervorosa agitadora e dirigente do primeiro sindicato de trabalhadoras de serviço doméstico pós-25 de Abril.

Políticas do cuidado: é tempo de ser exigente

O governo limitou de tal forma o alcance do Estatuto do Cuidador Informal que o balanço é absolutamente decepcionante. 92% da verba aprovada pelo Parlamento não foi sequer gasta. Artigo de José Soeiro.

Elas, as que “não trabalham”

A decisão é histórica. O Supremo Tribunal de Justiça condenou um homem ao pagamento de 60.782 euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico desenvolvido por ela ao longo de quase 30 anos de união de facto. Artigo de José Soeiro.

A urgência de um serviço nacional de cuidados

O Bloco de Esquerda incluiu a proposta de criação de um Serviço Nacional de Cuidados no programa eleitoral que apresentará ao país nas eleições de Janeiro de 2022. Trata-se de uma grande medida, uma resposta fundamental para os tempos actuais. Não se pode adiar por mais tempo este debate. Artigo de Helena Pinto.