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O cuidado para que nada fique como dantes

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Artigo de Teresa Cunha.
Fotografia: Guilherme Yagui/Flickr

É praticamente inevitável começar por constatar que a pandemia que vivemos escancarou aquilo a que se está a chamar a crise dos cuidados. Afinal as nossas sociedades são tanto mais funcionais quanto mais cuidados prestam nos diversos âmbitos da vida. Quando uma cadeia de cuidado falha ou simplesmente desaparece, porque não tem ninguém para a prover, então uma série de atividades e de condições para a realização da dignidade entram em colapso e sucumbem. A meu ver, demonstra-se que a invisibilidade e a desqualificação de todas essas tarefas e responsabilidades são formas de como o capitalismo, em estreita aliança com o heteropatriarcado, transformaram essa infraestrutura vital em uma das suas mais potentes apropriações. 

Esta apropriação tem significado várias coisas importantes que é preciso considerar se tivermos a intenção de levar a cabo uma reflexão sobre os cuidados que resulte na desmercantilização, despatriarcalização e na descolonização do nosso pensamento e das nossas práticas.

A primeira é talvez a mais difundida, já que as feministas há muito que têm alertado para ela colocando o dedo numa ferida aberta e antiga: cuidar não faz parte da ‘natureza’ feminina, não é a afirmação de qualquer tipo de feminilidade; não é uma essência da fêmea humana. Cuidar não é amor, é trabalho não pago, como disse a Silvia Federici. Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Ao contrário das ladainhas neoliberais não há nada no cuidado que não seja altamente produtivo porque são os cuidados que sustentam as condições sem as quais a vida, em todas as suas formas, não seria possível de ser vivida e muito menos gostosa de se viver.  Então, a minha primeira afirmação é que os trabalhos dos cuidados são os mais produtivos de todos os trabalhos humanos.

A segunda ideia é a criação do mito que os cuidados se referem ao que se passa no espaço doméstico, ou são a sua recriação, em outros espaços e âmbitos, da domesticidade. 

No meu entendimento, não há nada mais redutor do que essa forma de pensar os cuidados. Juntamente com duas companheiras, Cristina del Villar e Luísa Valle, temos vindo a pensar os cuidados a partir de três dimensões que nos parecem fundamentais. A primeira é a sua dimensão ontológica e para isso partimos da filosofia do uBuntu da África austral. Não se trata apenas de uma conexão social entre o ser que cada pessoa é e a sua interdependência com a comunidade que habita. É bastante mais do que isso; é a afirmação de que, sem cuidar e ser cuidada, a pessoa, prescinde da sua humanidade. Tal como o conceito Emakhuwa de wunnuwana, que significa crescer com, invoca que a minha humanidade é refém da humanidade de cada uma e de todas as outras pessoas e por isso cada uma/um tem que cuidar sempre da humanidade da outra/o. Tanto o uBuntu como o Wunnuwana são ontologias do cuidado nas quais as interdependências assumidas por todas e todos recriam mundos onde todas e todos têm lugar e dignidade.  

Os cuidados são todas as atividades que se geram numa sociedade que são capazes de salvaguardar a Terra como organismo vivo e complexo e de garantir aos seres humanos e não-humanos a partilha e a convivência nesta Casa comum. Assim o cuidado diz respeito a todas as relações sociais que protegem e criam vida em qualquer espaço e território. São as sociabilidades ecológicas, cooperativas, solidárias e que têm, no seu centro um ethos pró-comunal. Este social inscrito na realização dos cuidados é radicalmente potente pois concebe as relações sociais a partir de outras racionalidades que apontam para práticas transformadoras que realizam culturas do cuidado como centrais para realizar sociedades ecológica e socialmente responsáveis e justas.

Não menos importante é a dimensão epistemológica do cuidado. As práticas de quem cuida constituem saberes que foram sendo transmitidos de geração em geração sob a forma de receitas de cozinha, protocolos de segurança infantil e geriátrica, aconselhamento e mediação de conflitos, aproveitamento e conservação de alimentos, pedagogias, salubridade, gestão e organização, acompanhamento emocional, criação de animais, produção agrícola de alimentos, conhecimentos medicinais e terapêuticos, entre muitos outros que poderia aqui mencionar. O monstro das três cabeças – capitalismo, hetereopatriarcado e colonialismo - não só expulsou estes trabalhos do cuidado da economia como também expulsou da ciência todos estes conhecimentos e competências. Ridicularizando-os e remetendo-os para ‘coisas de mulheres’ tem permitido criar uma hierarquia epistemológica que acompanha a desvalorização social dos cuidados na sua dimensão social, política e ontológica.

Termino com uma afirmação que espero instigue uma boa polémica:
Vivendo nas ondas da pandemia a mais insurgente das reflexões sobre o cuidado é afirmar que a economia não parou. Pelo contrário, as economias dos cuidados que produzem a vida incessantemente, estão a funcionar na sua máxima capacidade para proteger, alimentar, abrigar, curar, cuidar, produzir alimentos, limpar, apoiar e amar. Esses sinais de que há alternativas estão em marcha, ainda que muitas vezes, silenciadas, desprezadas e fragilizadas pelo senso comum dominante. Porém, permanecem, acintosamente, presentes nos nossos dias de confinamento ou de medo por aquilo que ainda não entendemos e de como nos afetará o futuro. Por isso é preciso cuidar para nada fique como dantes!

Teresa Cunha, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Professora da Escola de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra, Ativista Feminista.

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Neste dossier:

Serviço Nacional de Cuidados

Cuidar. De crianças. De idosos. De pessoas doentes. De pessoas com diversidade funcional. Cuidar dos outros. Cuidar de quem precisa tem sido uma função quase exclusivamente feminina, assegurada sem reconhecimento social e sem pagamento. Não tem que ser assim. E não deve ser assim. Cuidar de quem precisa pode e deve ser um serviço público, um Serviço Nacional de Cuidados. 

A reconversão do Natal até à sua extinção nos moldes atuais (all we want for christmas is)

Esquematicamente, os eventos familiares significam rituais de cuidados recrutadores, de forma discriminada e discriminatória, de mão-de-obra para a sua preparação, realização e desfecho. Artigo de Mafalda Araújo.

O cuidado como ecologia

O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Artigo de João Arriscado Nunes. 

Uma mudança na política de cuidados: o Serviço Nacional de Cuidados

O Bloco propõe, no seu programa eleitoral, a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito. 

Direitos humanos não se discutem. Cumprem-se!

Estar institucionalizado significa, para as pessoas com deficiência, a perda da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Significa quase sempre não poder escolher o que comer, as horas a que se levanta ou deita, se pode sair à noite ou não, dormir com o namorado ou mesmo escolher o canal de televisão a que quer assistir. Artigo de Jorge Falcato. 

Novos modelos de resposta ao desafio dos cuidados: a co-habitação/co-housing 

O movimento co-housing, como o conhecemos atualmente, surgiu na Dinamarca no final dos anos 60, tendo, mais tarde, sido adaptado noutros países. Artigo de Conceição Nogueira.

Cidades que cuidam

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Artigo de Maria Manuel Rola. 

O cuidado para que nada fique como dantes

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Artigo de Teresa Cunha.

"O capitalismo privatiza a vida e socializa a morte"

As trabalhadoras da reprodução social são as mais mal pagas, são as primeiras a serem despedidas, enfrentam constantemente o assédio sexual e, muitas vezes, violências diretas. Entrevista com Tithi Bhattacharya, traduzida por Andrea Peniche.

Que vida além dos 60?

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre. Artigo de Deolinda Martin e Isabel Ventura.

Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS

São cerca de 63 mil as pessoas  que trabalham em Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). A maioria trabalha no apoio à infância,  à juventude, à deficiência e à terceira idade. Artigo de Joaquim Espírito Santo e Pedro Faria. 

Manifesto "Cuidar de quem cuida"

O nosso futuro depende, em grande medida, do futuro dos cuidados. As infraestruturas de cuidados de que dispomos, bem como o número atual de trabalhadores desta área, são insuficientes para colmatar as necessidades. É essencial uma estratégia de reestruturação dos cuidados como um direito 
social, capaz de pôr em causa as desigualdades – de género, de classe, de origem territorial – que hoje prevalecem. Manifesto de José Soeiro, Mafalda Araújo e Sofia Figueiredo. 

Manifesto: Reconstruindo a organização social do cuidado

Este é um movimento global para exigir a reconstrução da organização social do cuidado. É hora de reconhecer o valor social e económico dos trabalhos de cuidado (remunerado e não remunerado) e o direito humano ao cuidado. 

Sara Barros Leitão e Conceição Ramos conversam sobre trabalho doméstico

A peça "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa" de Sara Barros Leitão conta a história do sindicato das trabalhadoras de serviço doméstico a partir da vida de Conceição Ramos, fervorosa agitadora e dirigente do primeiro sindicato de trabalhadoras de serviço doméstico pós-25 de Abril.

Políticas do cuidado: é tempo de ser exigente

O governo limitou de tal forma o alcance do Estatuto do Cuidador Informal que o balanço é absolutamente decepcionante. 92% da verba aprovada pelo Parlamento não foi sequer gasta. Artigo de José Soeiro.

Elas, as que “não trabalham”

A decisão é histórica. O Supremo Tribunal de Justiça condenou um homem ao pagamento de 60.782 euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico desenvolvido por ela ao longo de quase 30 anos de união de facto. Artigo de José Soeiro.

A urgência de um serviço nacional de cuidados

O Bloco de Esquerda incluiu a proposta de criação de um Serviço Nacional de Cuidados no programa eleitoral que apresentará ao país nas eleições de Janeiro de 2022. Trata-se de uma grande medida, uma resposta fundamental para os tempos actuais. Não se pode adiar por mais tempo este debate. Artigo de Helena Pinto.