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Direitos humanos não se discutem. Cumprem-se!

Estar institucionalizado significa, para as pessoas com deficiência, a perda da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Significa quase sempre não poder escolher o que comer, as horas a que se levanta ou deita, se pode sair à noite ou não, dormir com o namorado ou mesmo escolher o canal de televisão a que quer assistir. Artigo de Jorge Falcato. 
Fotografia: Darius McVay/Wiki Commons

A institucionalização das pessoas com deficiência é uma violação de direitos humanos. Enquanto permanecer a ideia que é um mal menor ou uma solução aceitável para resolver a falta de alternativas de apoio às pessoas com deficiência em situação de dependência, continuaremos a privar milhares de pessoas dos seus direitos mais básicos. Não, não é um mal menor, é uma violação de direitos humanos e se não o reconhecermos, nada mudará.

Estar institucionalizado significa, para as pessoas com deficiência, a perda da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Significa quase sempre não poder escolher o que comer, as horas a que se levanta ou deita, se pode sair à noite ou não, dormir com o namorado ou mesmo escolher o canal de televisão a que quer assistir.

Estar institucionalizado é prescindir de direitos que estão consignados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada pelo Estado Português em 2009. 

A ratificação da Convenção pelo Estado Português não impediu a persistência de políticas institucionalizadoras. Tem sido prática constante ao longo dos anos e de vários governos o aumento de camas em lares residenciais, estando neste momento garantido o financiamento para a continuação desta tendência através do Programa PARES 3.0 que financia a ampliação e construção de novos lares residenciais, contra o estipulado na Convenção e em todas as orientações internacionais que vão desde a Comissão Europeia ao Conselho da Europa. Entre o ano de 2000 e 2020 o número de lares residenciais teve um aumento de 140%.

Políticas institucionalizadoras que também se manifestam claramente na disparidade dos apoios diretos à institucionalização face aos apoios a que as pessoas com deficiência têm direito. Se formos internados num lar residencial o estado comparticipa com 1.162,58 euros mensais a entidade que gere o lar (que ainda cobra mais até 80% dos parcos rendimentos que tivermos), mas se quisermos ficar em casa, existem duas hipóteses: o subsídio por assistência de 3ª pessoa no valor de 211,79€ ou o complemento por dependência de 180,02€ se estivermos acamados. Também podemos optar por ir morar com uma família de acolhimento, não a nossa, claro, que receberá 672,27€.Não é o tamanho das instalações que define uma instituição. Tanto faz ter capacidade para 200 pessoas (que ainda existem em portugal) como para 2 ou 3. Se uma pessoa é obrigada a viver com quem não escolheu, se lhe são impostas rotinas diárias, se o que prevalece são regras para satisfazer a rentabilidade e gestão do pessoal da organização e não a satisfação das necessidades individuais da pessoa com deficiência, continuaremos a alimentar o paradigma institucionalizador.

De acordo com o Relatório de 2020 da Carta Social mais de 40% dos utentes residem em lares residenciais há mais de 10 anos, sendo que quase 80% têm mais de 35 anos. No que diz respeito às atividades básicas da vida diária verificam-se percentagens consideráveis de pessoas que desempenham estas ações de um modo independente, cerca de 25% no banho, 40% a perto dos 60% a vestir-se e na utilização do WC e mais de 60% na mobilidade e na alimentação fazem-no de forma independente. Ainda de acordo com o referido relatório, no que diz respeito à existência de problemas nas funções do corpo mais de 60% das pessoas internadas  não têm qualquer problema ou têm problemas moderados no que diz respeito à visão, audição, da voz e da fala, dos órgãos internos ou do movimento. Nas funções mentais essa percentagem é menor, mas ultrapassa os 40%.

 

É este o panorama da institucionalização em lares residenciais, a que haverá de acrescentar todos aqueles, jovens e menos jovens, que por falta de alternativa vão parar a lares de idosos. Parece-nos evidente que esta realidade não cola com aquelas opiniões, até de governantes, que recusam a necessidade de um plano de desintitucionalização porque, dizem: haverá sempre necessidade de internamento para pessoas muito dependentes. O que constatamos é que existe uma enorme percentagem de pessoas em que não são as suas dependências que os obrigam ao internamento. É a falta de alternativas de recurso a serviços de base comunitária e de assistência pessoal que os condena de imediato a uma vida que não respeita as suas necessidades e os segrega socialmente. Mas também outros com elevados graus de dependência poderiam viver na comunidade. A única diferença é terem maiores necessidades de apoio.

Como é que acabamos com esta violação de direitos humanos?

Em primeiro lugar é necessário que o poder político assuma, de acordo com os documentos e compromissos internacionais que subscreveu, que existe de facto uma violação de direitos humanos e ter coragem para enfrentar os poderosos lobies institucionalizadores. Recordamos que apenas 11,93% da totalidade dos serviços e equipamentos sociais existentes são propriedade de entidades oficiais.

É necessário um plano de desinstitucionalização, falha gritante da estratégia para a deficiência 2020-2025 recentemente aprovada em apenas timidamente se fala de evitar a institucionalização.

Plano de desinstitucionalização

O que teria de prever este plano? Estabelecimento de um faseamento com uma calendarização e metas precisas a atingir tendo como objetivo final o encerramento das instituições.

- Proibir a ampliação ou construção de mais de Lares Residenciais. Não optar por soluções de redução da capacidade destas instituições mantendo características desrespeitadoras das necessidades e poder de decisão dos destinatários.

- Diminuir progressivamente o financiamento das entidades institucionalizadoras e canalizando esse  financiamento para a constituição de serviços de base comunitária integrados com condições para atender e servir as pessoas com deficiência.

- Mudança sistémica no sentido do abandono das políticas para a deficiência baseadas no modelo médico/reabilitador e se fundamentem no modelo social a todos os níveis. Da habitação à saúde. Dos transportes à educação e formação profissional. Do emprego a prestações sociais que permitam uma vida digna.

- Preparação/formação das pessoas institucionalizadas para uma vida em sociedade, reforço da sua capacidade de autonomia.

- Uma nova prestação social para financiar a Assistência Pessoal , tal como é concebida pelo Movimento de Vida Independente, que permita às pessoas com deficiência ultrapassarem as suas incapacidades, de acordo com a sua vontade e necessidades.

- Reciclagem dos trabalhadores e trabalhadoras das organizações institucionalizadoras para preencher as necessidades dos serviços a criar.

- Reciclagem centrada na destruição da cultura e dos vícios adquiridos em anos de falta de respeito pela individualidade das pessoas com deficiência.

Sabemos que é um processo que não poderá acontecer da noite para o dia. Mas sabemos que tem de ser feito. E é urgente.


Jorge Falcato é arquiteto e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência. Fundador do Centro de Vida Independente. Foi deputado independente à Assembleia da República, eleito pelo Bloco de Esquerda. 

(...)

Neste dossier:

Serviço Nacional de Cuidados

Cuidar. De crianças. De idosos. De pessoas doentes. De pessoas com diversidade funcional. Cuidar dos outros. Cuidar de quem precisa tem sido uma função quase exclusivamente feminina, assegurada sem reconhecimento social e sem pagamento. Não tem que ser assim. E não deve ser assim. Cuidar de quem precisa pode e deve ser um serviço público, um Serviço Nacional de Cuidados. 

A reconversão do Natal até à sua extinção nos moldes atuais (all we want for christmas is)

Esquematicamente, os eventos familiares significam rituais de cuidados recrutadores, de forma discriminada e discriminatória, de mão-de-obra para a sua preparação, realização e desfecho. Artigo de Mafalda Araújo.

O cuidado como ecologia

O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Artigo de João Arriscado Nunes. 

Uma mudança na política de cuidados: o Serviço Nacional de Cuidados

O Bloco propõe, no seu programa eleitoral, a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito. 

Direitos humanos não se discutem. Cumprem-se!

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Novos modelos de resposta ao desafio dos cuidados: a co-habitação/co-housing 

O movimento co-housing, como o conhecemos atualmente, surgiu na Dinamarca no final dos anos 60, tendo, mais tarde, sido adaptado noutros países. Artigo de Conceição Nogueira.

Cidades que cuidam

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Artigo de Maria Manuel Rola. 

O cuidado para que nada fique como dantes

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Artigo de Teresa Cunha.

"O capitalismo privatiza a vida e socializa a morte"

As trabalhadoras da reprodução social são as mais mal pagas, são as primeiras a serem despedidas, enfrentam constantemente o assédio sexual e, muitas vezes, violências diretas. Entrevista com Tithi Bhattacharya, traduzida por Andrea Peniche.

Que vida além dos 60?

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre. Artigo de Deolinda Martin e Isabel Ventura.

Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS

São cerca de 63 mil as pessoas  que trabalham em Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). A maioria trabalha no apoio à infância,  à juventude, à deficiência e à terceira idade. Artigo de Joaquim Espírito Santo e Pedro Faria. 

Manifesto "Cuidar de quem cuida"

O nosso futuro depende, em grande medida, do futuro dos cuidados. As infraestruturas de cuidados de que dispomos, bem como o número atual de trabalhadores desta área, são insuficientes para colmatar as necessidades. É essencial uma estratégia de reestruturação dos cuidados como um direito 
social, capaz de pôr em causa as desigualdades – de género, de classe, de origem territorial – que hoje prevalecem. Manifesto de José Soeiro, Mafalda Araújo e Sofia Figueiredo. 

Manifesto: Reconstruindo a organização social do cuidado

Este é um movimento global para exigir a reconstrução da organização social do cuidado. É hora de reconhecer o valor social e económico dos trabalhos de cuidado (remunerado e não remunerado) e o direito humano ao cuidado. 

Sara Barros Leitão e Conceição Ramos conversam sobre trabalho doméstico

A peça "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa" de Sara Barros Leitão conta a história do sindicato das trabalhadoras de serviço doméstico a partir da vida de Conceição Ramos, fervorosa agitadora e dirigente do primeiro sindicato de trabalhadoras de serviço doméstico pós-25 de Abril.

Políticas do cuidado: é tempo de ser exigente

O governo limitou de tal forma o alcance do Estatuto do Cuidador Informal que o balanço é absolutamente decepcionante. 92% da verba aprovada pelo Parlamento não foi sequer gasta. Artigo de José Soeiro.

Elas, as que “não trabalham”

A decisão é histórica. O Supremo Tribunal de Justiça condenou um homem ao pagamento de 60.782 euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico desenvolvido por ela ao longo de quase 30 anos de união de facto. Artigo de José Soeiro.

A urgência de um serviço nacional de cuidados

O Bloco de Esquerda incluiu a proposta de criação de um Serviço Nacional de Cuidados no programa eleitoral que apresentará ao país nas eleições de Janeiro de 2022. Trata-se de uma grande medida, uma resposta fundamental para os tempos actuais. Não se pode adiar por mais tempo este debate. Artigo de Helena Pinto.