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Que vida além dos 60?

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre. Artigo de Deolinda Martin e Isabel Ventura. 
Fotografia: Yvette Cuthbert/Wiki Commons

Segundo o censo de 2021, a percentagem de população com mais de 65 anos de idade é de 23,4%. 

O aumento da esperança de vida é uma coisa positiva. O que é negativo é a diminuição da natalidade, consequência da precariedade e dos baixos salários, da crise da habitação e da falta de creches a preços ajustados aos salários e da emigração.

Ao aumento da esperança de vida não correspondeu a dignidade que é devida a quem trabalhou toda uma vida, construiu o país, criou as gerações futuras e contribuiu para a sua educação, suportou e lutou contra a ditadura e uma guerra que teve como consequências, para muitos, morte ou deficiência para toda a vida. Ao invés, os mais idosos vivem com reformas de miséria, como de miséria eram os seus salários.

De acordo com a PORDATA, comparando o ano de 1974 com o ano de 2020, e descontando o efeito da inflação, as pensões mínimas de velhice e invalidez do regime geral da Segurança Social passaram de 260,70 euros em 1974, para 268 euros em 2020.  Mais 7,30 euros. 

A taxa de risco de pobreza – % de rendimentos inferiores a 540 euros mensais em 2021 - antes das transferências sociais era, em 2019,  de 88,3 % e de 17,5% depois das transferências. Em 2020, a taxa de risco de pobreza, depois das transferências sociais, aumentou para 20,1%. Agravou-se, portanto, em tempo de pandemia.

As pensões de velhice e invalidez não podem ser encaradas como uma despesa. As pessoas trabalharam e contribuíram com os seus descontos para auferirem, depois da reforma, de pensões calculadas sobre esses contributos.

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre.

Estão essas gerações condenadas a viver da caridade? A terem de ver as suas vidas vasculhadas para terem direito a alimentação/medicamentos por esmola de uma IPSS qualquer ou de um organismo público?

Não tem o Estado obrigação de cuidar dessa população que devia ser merecedora de respeito e consideração por um passado de sofrimento e de ausência dos direitos mais elementares como saúde, habitação condigna, educação e alimentação saudável?

A pandemia do COVID-19 trouxe ainda outra realidade que existia apenas na penumbra, naquela realidade cinzenta que a sociedade faz por esquecer. 

Tornou-se visível a realidade dos chamados lares onde mulheres e homens idosos são armazenados, sem privacidade nem liberdade, tratados como se fossem crianças num ambiente propício ao embrutecimento, longe da sua comunidade e daqueles que amam e a quem dedicaram a vida com frequentes sacrifícios e abnegação. O Estado demite-se das suas obrigações. Financia mas não fiscaliza. Com reformas baixas e famílias pobres, a maioria não tem acesso a lares com condições mínimas que seriam alimentação, higiene e medicação.

Mas sabemos que isso não chega. Mesmo quando essas condições mínimas são boas, qual foi a participação dos idosos na criação das regras desses lares? Que é feito da sua privacidade, da sua liberdade e dos seus direitos enquanto indivíduos e enquanto cidadãos? Os idosos não são crianças embora sejam frequentemente tratados como tal. E quanta experiência de vida é desperdiçada com o seu afastamento! Quanto desperdiçamos para nos ajudar nesta luta que é a vida...

No quadro destas condições precárias, todos nós assistimos, estupefactos, aos inúmeros óbitos em lares. O que não é de admirar, dada a falta de condições de privacidade que facilitaram os contágios.

É nossa obrigação contribuir para consciencializar os mais idosos de que a situação em que se encontram não é justa, que não é justa a marginalização em que vivem, que não estão condenados a uma vida tão difícil depois de outra que não foi mais fácil. 

Muitos deles ainda apoiam filhos e netos com as suas baixas reformas e habitação. Outros saem dos lares porque a sua reforma é necessária a filhos e netos. E não estão imunes à violência doméstica de que por vezes são vítimas.

Perante este quadro o BE, como partido que quer mudar o mundo, construir um melhor, tem várias respostas: 

  • Lutar pela aproximação, numa primeira fase, das reformas/pensões que se situam abaixo do limiar da pobreza desse valor que é considerado mínimo para a sobrevivência de qualquer cidadão. Numa segunda fase, a aproximação ao salário mínimo. Os idosos e as idosas  são cidadãos e como tal devem ser tratados;
  • A Segurança Social deve ter a seu cargo e com os devidos cuidados médicos as idosas e os idosos que por demência, Alzheimer, ou qualquer outro tipo de incapacidade mental não lhes permitam uma vida autónoma e independente;
  • O Estado deve criar os apoios domiciliários necessários que impeçam o afastamento das pessoas idosas das suas casas por ausência de resposta neste âmbito;
  • É tempo de ser cumprido o Estatuto dos cuidadores informais que cuidam de idosos e respeitados os seus  direitos como horários de trabalho, férias e retribuição justa;
  • Devem ser apoiados os centros de dia, não para “entreterem” as pessoas  idosas com atividades infantis mas para contribuírem para que mantenham as suas capacidades físicas e mentais;
  • Deve ser feita a reabilitação  das habitações para que o idoso tenha condições para lá viver de uma forma independente, se tal for possível;
  • Deve haver apoio público em terrenos e construção à “habitação colaborativa” ou “cohousing”, uma alternativa que possibilita aos seniores que assim o desejem e tenham condições para tal, viverem em habitações de uso individual e partilharem zonas comunitárias.

Estas preocupações e princípios são defendidos nas várias frentes de intervenção do Bloco, sempre numa perspetiva de solidariedade intergeracional. O futuro dos  reformados  e pensionistas das gerações mais jovens está também em causa, dado o desemprego, a precariedade e os baixos salários  que usufruem. 


Deolinda Martin e Isabel Ventura, Coordenação do Grupo +60 do Bloco de Esquerda 

Deolinda Martin, professora de 1º ciclo do ensino básico, aposentada, mãe, avó, feminista, dirigente sindical do SPGL (Sindicato dos Professore sda Grande Lisboa), foi autarca do BE, foi membro do Secretariado e Conselho Nacional da FENPROF e foi Conselheira Nacional da CGTP.

Isabel Ventura foi editora nas Edições Maria da Fonte. Trabalhou na Siderurgia Nacional, onde integrou a Subcomissão de Trabalhadores. Foi docente do 2.º ciclo, estando atualmente aposentada. É membro efetivo do Conselho Geral do SPGL. Foi autarca do Bloco em Marvila. 
 

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Neste dossier:

Serviço Nacional de Cuidados

Cuidar. De crianças. De idosos. De pessoas doentes. De pessoas com diversidade funcional. Cuidar dos outros. Cuidar de quem precisa tem sido uma função quase exclusivamente feminina, assegurada sem reconhecimento social e sem pagamento. Não tem que ser assim. E não deve ser assim. Cuidar de quem precisa pode e deve ser um serviço público, um Serviço Nacional de Cuidados. 

A reconversão do Natal até à sua extinção nos moldes atuais (all we want for christmas is)

Esquematicamente, os eventos familiares significam rituais de cuidados recrutadores, de forma discriminada e discriminatória, de mão-de-obra para a sua preparação, realização e desfecho. Artigo de Mafalda Araújo.

O cuidado como ecologia

O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Artigo de João Arriscado Nunes. 

Uma mudança na política de cuidados: o Serviço Nacional de Cuidados

O Bloco propõe, no seu programa eleitoral, a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que desenvolva em todo o território uma rede de respostas públicas na área da infância, da velhice, da dependência e da promoção da autonomia, de caráter universal e tendencialmente gratuito. 

Direitos humanos não se discutem. Cumprem-se!

Estar institucionalizado significa, para as pessoas com deficiência, a perda da capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Significa quase sempre não poder escolher o que comer, as horas a que se levanta ou deita, se pode sair à noite ou não, dormir com o namorado ou mesmo escolher o canal de televisão a que quer assistir. Artigo de Jorge Falcato. 

Novos modelos de resposta ao desafio dos cuidados: a co-habitação/co-housing 

O movimento co-housing, como o conhecemos atualmente, surgiu na Dinamarca no final dos anos 60, tendo, mais tarde, sido adaptado noutros países. Artigo de Conceição Nogueira.

Cidades que cuidam

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Artigo de Maria Manuel Rola. 

O cuidado para que nada fique como dantes

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Artigo de Teresa Cunha.

"O capitalismo privatiza a vida e socializa a morte"

As trabalhadoras da reprodução social são as mais mal pagas, são as primeiras a serem despedidas, enfrentam constantemente o assédio sexual e, muitas vezes, violências diretas. Entrevista com Tithi Bhattacharya, traduzida por Andrea Peniche.

Que vida além dos 60?

A situação da população mais idosa é grave, apesar das transferências sociais. Se quem trabalha e aufere o salário mínimo é pobre, o reformado que recebe uma pensão igual ou inferior a 540 euros também é pobre. Artigo de Deolinda Martin e Isabel Ventura.

Os trabalhadores e as trabalhadoras das IPSS

São cerca de 63 mil as pessoas  que trabalham em Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). A maioria trabalha no apoio à infância,  à juventude, à deficiência e à terceira idade. Artigo de Joaquim Espírito Santo e Pedro Faria. 

Manifesto "Cuidar de quem cuida"

O nosso futuro depende, em grande medida, do futuro dos cuidados. As infraestruturas de cuidados de que dispomos, bem como o número atual de trabalhadores desta área, são insuficientes para colmatar as necessidades. É essencial uma estratégia de reestruturação dos cuidados como um direito 
social, capaz de pôr em causa as desigualdades – de género, de classe, de origem territorial – que hoje prevalecem. Manifesto de José Soeiro, Mafalda Araújo e Sofia Figueiredo. 

Manifesto: Reconstruindo a organização social do cuidado

Este é um movimento global para exigir a reconstrução da organização social do cuidado. É hora de reconhecer o valor social e económico dos trabalhos de cuidado (remunerado e não remunerado) e o direito humano ao cuidado. 

Sara Barros Leitão e Conceição Ramos conversam sobre trabalho doméstico

A peça "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa" de Sara Barros Leitão conta a história do sindicato das trabalhadoras de serviço doméstico a partir da vida de Conceição Ramos, fervorosa agitadora e dirigente do primeiro sindicato de trabalhadoras de serviço doméstico pós-25 de Abril.

Políticas do cuidado: é tempo de ser exigente

O governo limitou de tal forma o alcance do Estatuto do Cuidador Informal que o balanço é absolutamente decepcionante. 92% da verba aprovada pelo Parlamento não foi sequer gasta. Artigo de José Soeiro.

Elas, as que “não trabalham”

A decisão é histórica. O Supremo Tribunal de Justiça condenou um homem ao pagamento de 60.782 euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico desenvolvido por ela ao longo de quase 30 anos de união de facto. Artigo de José Soeiro.

A urgência de um serviço nacional de cuidados

O Bloco de Esquerda incluiu a proposta de criação de um Serviço Nacional de Cuidados no programa eleitoral que apresentará ao país nas eleições de Janeiro de 2022. Trata-se de uma grande medida, uma resposta fundamental para os tempos actuais. Não se pode adiar por mais tempo este debate. Artigo de Helena Pinto.