Saúde Mental: Organizar os serviços para servir as pessoas

Texto de Rita Oliveira, que participará no debate “Saúde Mental em Portugal”, com Ana Matos Pires, no domingo 2 de setembro às 11.45h, no Fórum Socialismo 2018, que se realiza no Instituto Politécnico de Leiria.

29 de agosto 2018 - 16:22
PARTILHAR
Debate “Saúde Mental em Portugal” terá lugar no domingo 2 de setembro às 11.45h, no Fórum Socialismo 2018
Debate “Saúde Mental em Portugal” terá lugar no domingo 2 de setembro às 11.45h, no Fórum Socialismo 2018

As mudanças organizativas dos serviços de psiquiatria e saúde mental ao longo dos últimos 20 anos determinaram duas grandes alterações (1) a maioria dos serviços estão agora integrados em hospitais gerais e (2) atualmente os serviços locais respondem por grande parte do movimento assistencial.

Esta realidade implica reformulações e uma estreita e coesa interligação entre as coordenações nacional, regional e local da saúde mental, para além de um forte, claro e assumido compromisso da tutela: "A implementação do Plano Nacional de Saúde Mental (PNSM) será tanto mais facilitada quanto maior a ligação orgânica e funcional entre quem coordena (Direção-Geral da Saúde), quem executa (Administrações Regionais de Saúde e respetivos gabinetes de saúde mental) e quem presta cuidados (Serviços)" (ler aqui)

Um PNSM de qualidade é imprescindível e existe neste momento, mas mais importante é a sua efetivação tendo em conta as realidades de cada uma das diferentes regiões do país e a absoluta necessidade de definição de um conjunto de serviços mínimos a disponibilizar obrigatoriamente pelos vários serviços locais.

Um outro aspeto relevante é a articulação entre, por um lado, as diferentes classes profissionais que trabalham em saúde mental e, por outro, os serviços de saúde mental e os cuidados de saúde primários (CSP). A integração de cuidados tem de ser o objetivo último e o modelo a utilizar tem de assentar nas necessidades das populações e nos papéis e responsabilidades dos diferentes intervenientes.

Um apontamento particular em relação ao Despacho n.º 11347/2017, de 27 de dezembro, que estabelece as disposições sobre o modelo de organização e de funcionamento da Psicologia Clínica e da Saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Refere o dito diploma que deve ser promovido “o alargamento das consultas e de outras intervenções na área da psicologia nos CSP, que devem abordar, de forma prioritária, as situações de depressão, as perturbações de ansiedade e a diabetes, identificadas e referenciadas pelas equipas de saúde familiar, locais de saúde mental e de intervenção comunitária, sem prejuízo de outras áreas de intervenção definidas de acordo com o perfil epidemiológico local e as consequentes necessidades do SNS”. Para melhor servir os doentes e para a desejável rentabilização e gestão efetiva dos recursos humanos, esta fonte de referenciação multideterminada obriga à criação de fluxogramas que agilizem a resposta clínica e a comunicação entre técnicos, para além de permitirem a circulação da pessoa doente nos diferentes níveis de cuidados.

Independentemente do modelo organizativo escolhido, a diferenciação das áreas de intervenção da psicologia clínica e da saúde deverá fazer-se no sentido de dar resposta aos três grandes eixos da estrutura orgânica atual da saúde – os cuidados primários, os cuidados hospitalares e os cuidados continuados – com as especificidades próprias de cada um deles. Será também importante definir critérios organizativos e clínicos próprios para as atividades de forense e da patologia aditiva, bem como a integração da psicologia social na área da Saúde Pública.

Do lado da enfermagem, estão formalizadas as especialidades de enfermagem de saúde mental e psiquiátrica e de enfermagem comunitária, estando também legislada a criação do grupo de trabalho para o desenvolvimento e acompanhamento de boas práticas do enfermeiro especialista em enfermagem de saúde familiar (Portaria n.º 281/2016, de 26 de outubro). Assim sendo, a rentabilização da especialização que já existe parece-me imprescindível, não fazendo qualquer sentido a rotatividade aleatória dos enfermeiros pelos diferentes serviços sem que, tantas vezes, essa especialização seja tida em conta. Tão importante como a multidisciplinaridade é a inter e a intradisciplinaridade.

Por último, não esquecer a importância e imprescindibilidade da ação de outras áreas profissionais na orgânica de um serviço de psiquiatria e saúde mental, como é o caso do serviço social e de terapia ocupacional, e a necessidade de articulação estreita com outas valências – por exemplo a farmácia e a nutrição –, com a área da administração hospitalar e com as associações de doentes e familiares.

Uma saúde mental a meio gás e várias velocidades é uma saúde mental injusta do ponto de vista social, não democrática e de menor qualidade. As necessidades estão identificadas, as estratégias definidas. O tempo esgotou-se, é agora ou nunca.

 

Uma área que deverá ter uma atenção especial é a saúde mental no local de trabalho, mote do dia internacional da saúde mental (10 de outubro) de 2017. Pode ler-se na página da OMS (tradução livre) “Durante a nossa vida adulta, uma grande parte do nosso tempo é gasto no trabalho. A experiência no local de trabalho é um dos fatores que determinam o bem-estar geral. Empregadores que implementam iniciativas no local de trabalho para promover a saúde mental e apoiar trabalhadores com perturbações mentais obtêm ganhos não apenas na saúde, mas também na produtividade laboral. Um ambiente de trabalho negativo, por outro lado, pode levar a problemas de saúde física e mental, uso prejudicial de substâncias ou álcool, absenteísmo e perda de produtividade.

A depressão e as perturbações de ansiedade são doenças mentais comuns que afetam a capacidade de trabalho. Globalmente, mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão, a principal causa de incapacidade. Mais de 260 milhões têm perturbações ansiosas. Muitas dessas pessoas vivem com os dois. Um recente estudo conduzido pela OMS estima que “as perturbações depressivas e ansiosas custam à economia global um trilião de dólares (a unidade seguida de 18 zeros…) a cada ano em perda de produtividade.”

Olhemos para o caso especial das “baixas” médicas.

Baixas” médicas, precariedade laboral e saúde mental... Que relação?

O número das chamadas “baixas médicas” – em rigor Certificados de Incapacidade Temporária para o trabalho - atribuídas em Portugal no primeiro trimestre de 2018 bateu recordes históricos, com um aumento de cerca de 18% face ao mesmo período do ano anterior (TSF, 2018). O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social refere que este aumento acompanha a tendência do crescimento do emprego (numa lógica de “há mais pessoas a trabalhar, logo haverá mais pessoas a ficar doentes”), no entanto os números observados são apenas comparáveis aos de 2001 em que a população a trabalhar (cerca de 5,1 milhões de pessoas) era superior à de hoje (4,8 milhões) (JN, 2018). Ademais, estes números têm vindo a crescer desde 2013, tendo-se observado um aumento de cerca de 32% das baixas médicas em quatro anos enquanto o emprego subiu apenas 7,4% (JN, 2018).

Entre as causas publicamente apontadas como estando na origem do aumento verificado face ao ano passado referem-se o surto de gripe observado no início de 2018, o aumento da população ativa com mais de 60 anos (mais vulnerável) e mesmo um aumento do número de baixas fraudulentas (TSF, 2018).

Não podemos, contudo, continuar a ignorar a relevante parcela de baixas médicas que decorre diretamente de causas relacionadas com a Saúde Mental. Portugal é apontado como o segundo país europeu com maior índice de perturbações psiquiátricas, calculando-se que cerca de 1/3 da população tem um diagnóstico (na sua maioria perturbações de ansiedade e depressão), um índice que cresceu assustadoramente desde o início da crise económica (DN, 2016).

Neste sentido, a elevadíssima taxa de absentismo média observada no último ano (12%) entre a classe dos enfermeiros (também este um valor histórico), vem alertar para a conjuntura social atual e expor a realidade portuguesa em contexto laboral (revelando ainda os impactos da precariedade na saúde mental dos trabalhadores portugueses), verificando-se entre estes profissionais uma elevada exaustão e desmotivação, além de diversas denúncias de casos de assédio moral (através de ameaças e coação) e que resultam na incapacidade de trabalhar destas pessoas (Lusa, 2018).

Infelizmente, estes sintomas não se limitam a esta classe, sendo apenas este cada vez mais o reflexo de uma sociedade marcada pela precariedade evidenciada nos baixos salários face ao crescente custo de vida, horários de trabalho longos (ultrapassando muitas vezes o limite das 40h de trabalho semanais e dificultando a separação e equilíbrio entre vida pessoal e profissional), poucas férias, ilegalidades e desproteção dos trabalhadores (em particular em trabalhos menos qualificados que, além de mal pagos, são muitas vezes sujeitos a situações de abuso e condições de trabalho desumanas (videA vida dura dos trabalhadores de supermercado”, Visão, 2017) que geram profundos sentimentos de desesperança, exaustão física e emocional e rutura psicológica.

É urgente que estas questões parem de ser ignoradas e que, por um lado, se invista numa larga sensibilização, educação e criação de estruturas sólidas de apoio no contexto da Saúde Mental, em particular e como recomenda a OMS em contexto laboral, capazes de alcançar os organismos governamentais, as empresas e todos os públicos considerados relevantes e, por outro, que se reflita profunda e criticamente nos fatores predisponentes e desencadeantes da doença mental e, sobretudo, nas consequências a médio-longo prazo de se insistir em alimentar um sistema que anda a deixar as pessoas, literalmente, doentes.

Termos relacionados: Fórum Socialismo 2018