Financiamento do ensino superior e ciência

Texto de Luís Monteiro, introdutório ao debate, com o tema do título, que terá lugar no domingo, 2 de setembro, às 14.30h no Fórum Socialismo 2018, que tem lugar este fim de semana em Leiria, na Escola Superior de Ciências Sociais.

31 de agosto 2018 - 14:15
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“De fundação em fundação o ensino vai ao chão”, protesto de estudantes de março de 2017 – Foto de Filipa Bernardo, Lusa (arquivo)

"De súbito, a guerra não só se instalou como fim e como necessidade na democracia, mas
também na política e na cultura. Tornou-se o antídoto e o veneno - o nosso pharmakon.”
Achille Mbembe in Políticas da Inimizade

Este Pharmakon de que nos fala o filósofo Achille Mbembe, pulsa no presente que vivemos. Podemos admitir que é uma nova vaga da Política do Medo, alicerçada em narrativas de factos alternativos que encontram neste sentimento de desconfiança a oportunidade para pôr em causa um dos bens mais essenciais: o Direito ao Conhecimento. Quando Donald Trump desmente estudos científicos e afirma que as alterações climáticas são um mito, está a pôr em causa o Direito ao Conhecimento.

Esse Direito que vos falo é imprescindível para a sobrevivência de uma sociedade democrática e moderna. Não existe desenvolvimento sem conhecimento livre. E essa missiva está ameaçada. Cabe-nos a nós resistir a este Império do Absurdo que, silenciosamente, se vai instalando nos governos, nas instituições governativas nacionais e supranacionais, nas empresas e nos espaços públicos e privados do quotidiano. As Universidades são, ao mesmo tempo, vítimas e parte da solução para os problemas deste novo tempo.

O clima de guerra que se instalou no seio das várias Instituições de Ensino Superior é o maior obstáculo a uma vivência democrática e a um projeto de autonomia científica. O modelo de gestão feudal que hoje impera na Academia , a dependência da mesma perante o investimento privado (que continua a ser mais desculpa do que solução) para sobreviver atirou o setor para uma verdadeira entropia.

À medida que, nos últimos anos, se impôs uma política agressiva de cortes nas “despesas”, implementou-se um novo modelo de gestão nas instituições universitária. O modelo fundacional veio roubar democracia e impor uma lógica mercantilista, onde as empresas privadas contam com mais peso nos conselhos gerais para decidir políticas de propinas do que os próprios estudantes. Este modelo, que desresponsabiliza o Estado das suas obrigações, acaba por significar, a médio prazo, o aparecimento de poderes absolutos, paralelos à Democracia.

A empresarialização da gestão académica, combinada com o défice democrático, tornou a Academia uma fábrica de precários: falsos bolseiros, professores contratados de semestre em semestre para assegurar tarefas permanentes, uso e abuso da figura de “docente convidado” para evitar a abertura de concursos para lugar de carreira são apenas alguns exemplos do estado de degradação da contratação que o setor atingiu.

Dez anos depois da experiência neoliberal com o RJIES e o Modelo Fundacional em algumas Universidades, podemos afirmar que não existe Autonomia sem Democracia nem sem Investimento Público.

Por isso, a defesa do Conhecimento, passa hoje por uma frente ampla que consiga criar laços de contacto entre os vários atores e atrizes do setor. Para esse combate, é necessário contar com estudantes, professores, investigadores e funcionários.

Para a construção de um novo paradigma, os caminhos que o Movimento Social em Portugal tem tomado merece a nossa reflexão. A clara ineficácia dos principais agentes do movimento estudantil em enfrentar os sucessivos governos e as suas políticas tornou o movimento associativo burocrata e longe da realidade. Esse modus operandi resulta numa confiança rasgada entre os próprios estudantes e os seus representantes. Reinventar o movimento estudantil, voltar a ouvir os seus protagonistas e trocar a lógica de gabinete pela rua é um dos garantes para o seu sucesso.

‘Aceder à Universidade’ continua a ter dois significados muito poderosos. Por um lado, o discurso mais simplista sobre esta matéria sustenta-se no número de diplomados que, nas últimas décadas, tem vindo a aumentar. Por outro lado, se nos obrigarmos a uma análise dialética deste problema, rapidamente compreendemos que o ‘acesso à Universidade’, aquele que tem como base um período de tempo maior do que um ciclo de estudos, continua barrado à esmagadora maioria da população. Para explorar esta contradição, aproveito o pensamento escrito de Jorge Ramos do Ó num artigo na Revista Práticas da História, intitulado “Em defesa da universidade: autorreflexividade, dúvida radical e escrita do devir”:

Ler e escrever têm sido sinónimos de uma fratura entre duas possibilidades de vida bem distintas. Temos, por um lado, esse mundo exíguo, constantemente rarefeito por ação da escola, composto por aqueles que concebem e assinam os

objetos – exagere-se e tome-se aqui o escritor simbolicamente como o ator social que corporiza a invenção e a criação –, narcisicamente eleitos por todos os meios de comunicação como celebridades no seu domínio de ação, seja este económico, científico ou cultural e artístico; temos, por outro lado, a multidão, sempre em crescimento à medida que o século XX afirmou a chamada “escola para todos”, composta pelos que dela foram obrigados a sair e que, no máximo, podem aspirar a assistir ou a desejar consumir – estes poderiam, de acordo com o mesmo raciocínio, ser designados de leitores. É porque se apresenta como a instituição por excelência da conservação social que a escola faz crer à maioria que a imaginação criadora é, justamente, um patamar cognitivo só ao alcance dos predestinados, daqueles que resistem incólumes à absurda máquina escrava da mimesis. ”1

A relação entre Academia e Política é estreita. Essa ‘intimidade’ gera possibilidades várias: a Política pode condicionar a Academia e vice-versa. No entanto, se cada um destes espaços detém esse poder sobre o outro, os papéis também se podem vir a reverter: a Política exponenciar o papel da Academia e esta contribuir para pensar esse exercício.

E que perigo corremos com essa subversão? O de contrapor as leis do mercado, que invadiram a Academia, torceram os mais básicos entendimentos acerca da justiça social, da igualdade, do respeito e do direito ao Conhecimento.

O Hipermercado, metáfora para um mundo regido pela imposição da competitividade irracional, é a triste ironia do destino para muitos que passaram pela Academia sem nunca terem pertencido a ela.

Texto de Luís Monteiro


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