A questão da autodeterminação dos povos tem sido um tema muito caro em espectros políticos à esquerda (embora não exclusivamente). Com este debate pretendemos levantar algumas questões, provocar o debate e tentar dar algumas respostas. Quando falamos de autodeterminação podemos falar de independentismos ou nacionalismos, embora o termo autodeterminação seja aquele que permite fazer a ligação com o direito internacional e a declaração das Nações Unidas.
Assim, a autodeterminação pressupõe a definição de uma comunidade humana que pretende, em nome de determinados critérios, ter o direito de se organizar politicamente por forma a reivindicar formas de soberania sobre os seus destinos e, ao contrário do que a retórica liberal dos nossos dias invoca, não decorre exclusivamente do nacionalismo enquanto ideologia.
Assim, pretende-se com este debate levantar algumas questões, umas mais teóricas, outras mais práticas, sobre os conceitos de “Estado”, “Nação” e sua relação com a esquerda. Para exemplo prático, iremos focar o percurso das três principais nações sem Estado dentro do Estado espanhol: Galiza, País Basco e Catalunha.
1. Existe um conflito entre “Estado” e “Nação”?
A resposta é que sim, existe um conflito entre estes conceitos, embora isso não os torne automaticamente excludentes um do outro; e no debate dos independentismos ainda mais importante se torna a sua relação.
Podemos afirmar que se tratam de realidades distintas, simplificando da seguinte forma: o Estado é uma realidade político-institucional, que se traduz num determinado ordenamento jurídico, sendo, assim, uma superestrutura jurídico-política. A Nação é uma realidade sócio-política, onde estão presentes elementos culturais, ideológicos, linguísticos, mas não jurídicopolíticos. Deste ponto de vista, podemos ter (e temos) nações sem Estado, Estados plurinacionais (federações, confederações, etc) e Estados uni-nacionais.
Quando o conflito entre Nação e Estado dá origem a nações sem Estado podemos verificar a existências das chamadas “questões nacionais”, sendo que, atualmente, vamos encontrar no Estado espanhol um dos seus exemplos mais prementes (embora não exclusivo).
Importa não ignorar que para que exista um processo de autodeterminação é necessário que exista uma consciência de identidade na própria consciência social assumida pelas classes dominantes (nacionalismos burgueses) ou pelas classes dominadas (nacionalismos populares).
As questões nacionais (como temos assistido na Catalunha, mas também na Galiza ou na Euskal Herria ou País Basco) radicam na relação conflituosa entre “Estado” e “Nação”, pois essa vinculação é indissociável desde o momento da formação dos Estado-Nação. Se, hoje, temos um “ressurgimento” de questões nacionais em determinados locais, nomeadamente no Estado espanhol, é porque elas nunca foram totalmente resolvidas, antes foram sendo abafadas de um modo institucional (não podemos esquecer que a Euskal Herria ou a Catalunha têm estatutos de autonomia bastante alargados, embora no último caso ela tenha vindo a ser atacada ou diminuída; apesar disso, desde a transição pactuada no Estado espanhol que o percurso tem sido o da tentativa de “espanholização” de todo o território).
2. A esquerda e as questões nacionais
Serão as questões nacionais (entendidas como resultantes de um conflito entre Estado e Nação) exclusivas de algum espectro político? Não. Mas, não sendo exclusivas, uma análise ao Estado espanhol, por exemplo, permite verificar que há um enorme potencial de aliança entre as questões nacionais e as questões sociais defendidas pela esquerda. Ou seja, importa talvez combinar a luta pela autodeterminação com uma perspetiva de classe e perceber as alianças que se podem formar.
No que toca às 3 nacionalidades discutidas no Estado espanhol, o papel de movimentos sindicais e políticos ligados à esquerda, com projetos nacionalistas emancipadores dos povos, foi fulcral. Estes movimentos fizeram com que várias organizações espanholas comprometidas com a concretização da rutura com o regime franquista assumissem, também, a realidade plurinacional, defendendo o direito das 3 principais nações à autodeterminação, preconizando um modelo republicano de estado, mais virado para uma organização federal ou confederal da realidade socio-política em causa.
Historicamente, a direita espanhola (e, em parte, também o PSOE) teve um papel determinante em rejeitar propostas do País Basco, da Galiza e da Catalunha, limitando estas nações ao basear o seu estatuto, não na questão nacional, de identidade, mas sim numa organização territorial e administrativa.
Em vários momentos se verifica que nestes 3 casos (no caso da Galiza talvez de forma mais preponderante, sobretudo porque, ao contrário dos casos basco e catalã, se verifica uma ausência de uma direita soberanista) que são os movimentos/partidos de esquerda que lideram o processo de emancipação dos seus povos, ao mesmo tempo que defendem, numa lógica republicana e democrática, direitos sociais.
Esta relação deverá ser o foco do nosso debate. Os ataques surgem porque a tentação da direita e do centro-direita que, hoje, tentam focar o seu discurso baseado no “senso comum” e na suposta defesa de liberdade e democracia, em atacar qualquer defesa da esquerda de movimentos de autodeterminação de povos colando-nos imediatamente à extrema-direita mais reaccionária, é uma jogada política para tentar confundir o público sobre o que está em causa.
A defesa da autodeterminação dos povos não é inimiga da defesa de um movimento de trabalhadores internacionalista; a autodeterminação dos povos não é contrária à necessidade de reivindicação social e às lutas contra a austeridade. Pelo contrário, um movimento forte pela autodeterminação aliado a um movimento forte contra regras austeritárias que promovem pobreza, degradação de condições de vida e degradação de leis laborais, etc, ajudam a colocar em causa um sistema, um regime que oprime trabalhadores e, por vezes ao mesmo tempo, trabalhadores que também lutam pela autodeterminação da sua nação.
3. Nacionalismos periféricos vs nacionalismo centralista
Voltando a focar no caso do Estado espanhol existe hoje uma contradição forte, que causa já confrontos, mais ou menos violentos, em várias regiões, decorrentes no último ano e meio do procès catalão. Com o crescer do apoio na Catalunha (não excluindo a Galiza nem o País Basco) à causa independentista, cresce também um fervor nacionalista espanholista (dentro e fora da Catalunha).
O que coloca em confronto duas visões de nacionalismos: por um lado, a defesa da autodeterminação da Catalunha (ou da Galiza ou do País Basco), com base num modelo republicano, que quer uma rutura com o poder monárquico vindo do franquismo; por outro lado, a defesa do nacionalismo centralista, espanhol, que tem na sua génese a ideia (antiga) de subjugar as várias nações do território do Estado espanhol a uma uniformização que, na prática, não existiu.
Numa narrativa neoliberal e conservadora comum a praticamente todos os nacionalismos de Estado, a ordem constitucional espanhola, ao assegurar a democracia, retiraria aos catalães, como a quaisquer outros cidadãos do Reino de Espanha, qualquer direito de autodeterminação coletiva porque esta só pode ser exercida pelo conjunto do povo espanhol.
Esta narrativa coloca os nacionalismos de Estados, centralistas, num grau de pretensa superioridade face a nacionalismos periféricos, que decorrem de processos políticos, culturais, linguísticos, e têm como conclusão a existência de nações sem estado.
Esta dicotomia é aquela que tem nos últimos tempos dado relevo a retóricas altamente inflamadas de um europeísmo que não é mais do que uma transversão de nacionalismos de má memória, tentando acantonar movimentos independentistas, defensores da autodeterminação dos povos, com mais ligações a movimentos de esquerda, a um passadismo que não nos assiste. A autodeterminação dos povos deve ter sempre uma perspetiva democrática e progressista, seja na definição de quem somos enquanto comunidade cidadã que se identifica como nação, e que, ao fazê-lo, reclama o seu direito a se constituir como vontade coletiva, seja na sua necessária ligação a políticas sociais de esquerda, de direitos laborais e valorização de salários, de luta contra regimes que confundem poder político e poder judicial, e de confronto com políticas que não respondem às necessidades dos povos.