Na introdução do artigo precedente desta série, referi o “tripé” em que assenta o trabalho de criação artística, seja esta não-partilhada, partilhada ou partilhada em diferido. Isso eu aprendi com o teatro, tal como se pratica (ou praticava) nos grupos de teatro que, a partir dos anos 1960/1970, por todo o mundo, assumiram uma posição radical de ruptura com o sistema político-social dominante. O que o artista transmite ao público, nos limites do seu talento e dos meios práticos de que pode dispor, é o resultado de uma tripla escolha – ética, estética e técnica. Como disse, na falta de um qualquer destes pés, o tripé “cai”. O mais frequente é vermos um destes “pés” ser desvalorizado em favor dos outros dois.
Nas últimas décadas, na música como em outras artes, por acção da ideologia pós-modernista (1), tem sido sistematicamente desvalorizado o compromisso ético, com a correspondente sobrevalorização das soluções técnicas e dos efeitos estéticos. A comunicação artística pós-modernista, tendencialmente acrítica quanto ao sistema em que se insere, foi reduzida aos seus aspectos não subversivos: assume o efeito ou a inovação formal como fundamento da legitimidade da sua presença no espaço comunitário e reivindica a despersonalização e o descompromisso do artista quanto ao efeito real da sua obra na comunidade.
Uma das incidências ético-estéticas da arte pós-modernista é, por exemplo, na música, a glorificação do minimalismo (Phillip Glass, Steve Reich, Brian Eno, Joseph Byrd e outros compositores) que consiste na repetição infindável de pequenos conjuntos de notas que se vão transformando e transmutando em saltos mínimos quase imperceptíveis, sem qualquer lógica melódica ou de frase para além da sua própria repetição. Essa música, também chamada “minimal-repetitiva”, mais não é do que a tradução estética da atomização da vida social provocada pelo, e necessária ao, capitalismo neoliberal dos tempos recentes. Interessaria percebermos o que significa o “esvaziamento” melódico das composições da esmagadora maioria dos compositores das últimas décadas, seja na música erudita seja na música popular de grande consumo, a qual afecta por igual tanto músicos e compositores de grande talento, com alguns dos quais tenho tido o privilégio de trabalhar, como os subprodutos comerciais que se vendem aos milhões e esvaziam as cabeças de gerações inteiras. E a questão é: o que poderá significar a perda de contacto com a qualidade do discurso melódico? Se há razão de ser na abordagem de Leonard Bernstein no seu livro The unanswered question [A questão por responder] quando, em 1976, tentou aplicar à música a teoria de Noam Chomsky que revolucionou a linguística em meados dos anos 1960 (a teoria da gramática generativa, ou da gramática universal) – abordagem essa que foi, desde a saída do livro, alvo de notáveis desenvolvimentos por músicos e linguistas –, isso significará que, na música, a melodia, ou melhor, a frase melódica assume um papel “sintáctico” fundamental na transmissão de sentidos, entendendo a sintaxe como uma teoria da estrutura dos sentidos nas frases de uma língua(2). Um caso curioso é, por exemplo, o uso do intervalo de quarta ascendente (por exemplo o salto de dó para fá no teclado de um piano, facilmente identificado como “o intervalo da Raspa”).
Esse intervalo aparece inúmeras vezes nas melodias heróicas e de incitamento, quase sempre em posição de ataque ou de destaque; é como se esse intervalo, usado em ritmo rápido e com palavras fortes, tivesse uma objectividade surpreendente no contexto subjectivo da música (Nietzsche dizia que a música é a mais subjectiva de todas as artes). A quarta ascendente tem lugar quase garantido nas canções heróicas e/ou de luta. Vários exemplos, entre milhares possíveis:
– na Internacional (aparece três vezes na primeira frase: “De pé, ó vítimas da fome! De pé, famélicos da terra! ”) (ouvir exemplo);
– no hino nacional brasileiro (igualmente as duas primeiras notas: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante”) (ouvir exemplo);
– no hino nacional português (as duas primeiras notas do refrão “Às armas! às armas!” (ouvir exemplo),
– no hino francês A Marselhesa (terceira e quarta notas, e de novo no clímax agudo da frase “Allons en-fants de la pa-tri-e”) (ouvir exemplo),
– e no hino dos EUA, na conclusão da sua primeira frase (“O-oh say, can you see…”) (ouvir exemplo).
Como se pode perceber, esta é uma vasta matéria de estudo e de investigação. O seu principal interesse, a meu ver, é o de contradizer – ou resolver – a referida opinião de Nietzsche e conseguir, apesar da infinidade de combinações possíveis (tal como na objectivação de sentidos de qualquer linguagem oral de palavras e frases), chegar a um razoável grau de objectivação do discurso musical.
De momento, contudo, interessa-nos perceber as implicações de sentido que, na criação de canções, pode haver numa melodia, nas suas diversas dimensões: linear (o sobe-e-desce dos intervalos), rítmica (a duração e acentuação de sons e silêncios), prosódica, quando associada a palavras (neste caso, a prosódia é a maior ou menor coincidência entre os tempos fortes da melodia e as sílabas tónicas das palavras cantadas), e dinâmica (a ênfase da frase melódica no seu decurso). Estas parametragens nunca são “pensadas” ou decididas a-priori por quem se exprime inventando ou cantando, tudo depende de questões de educação do gosto musical, de idiossincrasias próprias do sujeito expressivo, e dessa coisa chamada “talento” que, para mim, não é senão, como escrevi algures, «uma espécie de competência (intuitiva) nas condições desfavoráveis da ignorância». O normal é o compositor ou intérprete chegar a melhores ou piores resultados em função do seu instinto expressivo. E, para quem não seja praticante de métodos construtivistas, as parametragens acima só se fazem a-posteriori, em situação de análise musical.
Mas o que pode significar, na comunicação musical, essa secundarização pós-modernista do discurso melódico? Que consequências pode isso ter? Numa grosseira comparação, e levando a coisa ao extremo, poderia pensar-se em alguém que, na comunicação verbal, emitisse todos os sinais (sonoros e visuais-pragmáticos) próprios da linguagem falada, excepto as palavras; uma espécie de sucessão de grunhidos e interjeições, e de expressões faciais e gestos, num determinado ritmo de sons e silêncios. Se em qualquer trecho musical está sempre presente, mesmo que incipiente ou implícita, uma frase melódica qualquer, a sua capacidade comunicativa dependerá – para continuar a mesma comparação – da riqueza do léxico, ou “vocabulário”, do emissor (e em menor grau da riqueza do do receptor, mas isso é outra questão). É como aquelas pessoas que a toda a hora usam a palavra “coisa” porque não sabem (ou não têm disponível) o termo próprio para nomear o objecto ou o conceito a que se referem; ou que usam o verbo “fazer” como supletivo do verbo activo que definiria a acção que querem referir. Podemos chamar-lhe, esquematicamente, pobreza de linguagem. E isso, numa canção como no resto, significa pobreza de informação. As intenções e até o sentir profundo do próprio emissor podem ser absolutamente sinceros, mas o que é que passa para o lado de lá?
O resultado mais frequente deste tipo de limitação expressiva é o império dos clichés. A música popular de mercado está cheia disso (a erudita também, mas a gente não a ouve…). Se a mente (neste caso a memória musical) não fôr diariamente alimentada com a escuta da grande música, dos grandes autores, e de uma forma geral no contacto com o património de criação artística que foi sendo filtrado pelos tempos, não pode haver milagres: o tal léxico será bem reduzido e a sua expressão estará à mercê do que está mais à mão: o cliché – como, na fala, a frase feita e o estilo convencional.
Há que fazer aqui uma ressalva. A força social dos clichés, sobretudo nas músicas mais tipificadas, é tão grande, tão avassaladora, que um criador que queira estar junto da sua comunidade não pode ignorar a sua existência, sob pena de ficar isolado na sua torre de marfim. A instrumentalidade social das canções levanta esse problema: como é que as pessoas podem receber as minhas canções se eu usar formas que, fugindo aos clichésdominantes, elas não podem perceber? Seria como escrever uma carta a um amigo no estilo de Aquilino Ribeiro ou Guimarães Rosa, com os seus super-léxicos de uma variedade e de uma precisão estonteante! Nos vários géneros de canções tipificadas – as marchas heróicas, as marchas populares, o fado, etc. – eu sempre fui obrigado a praticar o que chamo “esgrimir com o cliché”; consiste, afinal, em adoptar os sinais formais característicos desses géneros de canção, preservando o seu carácter tímbrico e (em parte) o carácter rítmico, mas introduzindo um gosto mais elaborado, por vezes até heterodoxo, nas vertentes melódica e harmónica. Constatei, ao longo do tempo, não só como autor mas também enquanto director musical e orquestrador de outros artistas, que isso tem o efeito de um íman que puxa o ouvinte para cima, para a compreensão e a aceitação de uma qualidade superior à do cliché – o qual é, desse modo, posto em causa e (parcial e temporariamente) vencido.
Esse tem sido o papel, mesmo que involuntário, de grandes autores contemporâneos de canções, de que destaco Kurt Weil, Gershwin, Léo Ferré, José Afonso, a dupla MacCartney-Lennon, Atahualpa Yupanqui, e os brasileiros João Gilberto, Jobim e Chico Buarque. Em todos eles está presente essa mestria de espadachins da música popular, como se tivessem ouvido mil vezes os madrigais de Gesualdo, as canções eruditas de Schubert e de Copland e os improvisos de Charlie Parker e Billie Holiday – e se calhar ouviram mesmo.
Os grandes artistas – pelo menos nas canções – revelam-se com uma espécie de despojamento extremamente eficaz, como acontece com os grandes poetas e a sua inigualável capacidade de sintetizar o que é complexo e multiforme.
Essas virtudes da expressão musical existem, em elevado grau de concentração, nas músicas tradicionais dos povos. Enquanto no mundo capitalista, urbanizado, estandardizado e atomizado, proliferam os clichés, o vazio de sentidos e a desresponsabilização ética dos pós-modernistas, existem ainda – enterrados e conservados no gelo dos tempos, como aqueles mamutes da Sibéria – inúmeros tesouros da música popular das eras pré-capitalistas, que são de uma riqueza e de um bom gosto indescritíveis quanto às melodias, aos ritmos, à variedade tímbrica e tonal, às técnicas de execução e à força concreta das palavras, quando as há. Desde há muitas gerações, naturalmente, nós perdemos o contacto com essa riqueza que apenas nos foi chegando (1) através do quanto, aqui e ali, inspiraram Bach, Mozart, Beethoven, Grieg, Rimsky-Korsakov, Bartók ou Kodály; (2) através das suas formas corrompidas que a nova classe dominante ciclicamente pretendeu impingir-nos; e (3) como objecto de estudo através das recolhas e da divulgação do trabalho de inúmeros etnomusicólogos. Milhões de temas e atitudes musicais diversas, que exprimem o trabalho, a luta, os amores, a relação com a natureza, a religiosidade, em suma, a condição humana.
Quase seria matéria de outro artigo: o que nos mostra uma escuta atenta das músicas tradicionais dos povos é, além do já dito, que elas podem ser objecto de um estudo comparado – a etnomusicologia comparada. Em condições materiais – geográficas e sociais – semelhantes, o resultado musical da expressão popular ganha semelhanças que não são pura coincidência. Um dia, numa aula de etnomusicologia, o meu Mestre Luís Monteiro deu-nos a ouvir um canto que, de imediato, todos identificámos como uma “moda” das imensas planícies do Baixo Alentejo [sul interior de Portugal], com o coro masculino grave e poderoso, o “ponto” que canta a antífona, o “alto” que faz a ponte para o coral uníssono e sustenta o dramatismo na terceira ou quarta superior, o ritmo lento, triste e compassado; até o timbre ligeiramente palhetado das vozes alentejanas e aquele típico destemperamento entre terceira maior e menor lá estavam. Só que nenhum de nós conseguia perceber a letra daquela “moda”. “Pois não”, disse ele, “é que isto canta-se nas planícies da Ucrânia”. O celeiro da Europa Oriental, tal como o Baixo Alentejo é o celeiro de Portugal – exemplos: canto do Alentejo e canto da Ucrânia.
Texto originalmente publicado em passapalavra.info