Está aqui
O regresso à anormalidade
Como será a investigação científica em Portugal no pós-pandemia? À semelhança do que acontece em tantos outros domínios, esperar que se regresse à normalidade não é apenas um desejo para que se retome o quotidiano, o trabalho e o rendimento. Pode ser, na verdade, um insidioso convite para que se prolonguem as disfunções do sistema. Perdendo-se assim uma boa oportunidade para as identificar, discutir e ultrapassar.
A investigação em Portugal teve um momento de viragem na década de 1990, no quadro do que se costuma designar como “consulado de Mariano Gago” e num contexto internacional e europeu favorável ao investimento na ciência. As últimas décadas assistiram a um aumento ímpar da qualidade e da quantidade da produção científica no país. Procurou-se intensificar a presença da investigação nas universidades e politécnicos. Ao mesmo tempo, um subfinanciamento crónico facilitou a penetração de lógicas perversas de mercantilização do saber. As unidades foram aprendendo a privilegiar a “busca de financiamento”, incapazes de constituir um corpo laboral estável. O universo crescente de pessoas dedicadas à investigação foi convivendo com a naturalização da precariedade na profissão.
É verdade que, nos últimos anos, a FCT promoveu a transformação de bolsas em contratos, possibilitando descontos para a segurança social e o consequente acesso a alguns direitos. Mas isso não combateu decisivamente a precariedade, o desemprego e a intermitência laboral. Para que tal desígnio se cumprisse seria necessário, entre outras medidas, tomar a sério a consolidação das carreiras, estabelecendo um razoável número de contratos ao abrigo do Estatuto da Carreira de Investigação. Esse passo seria fundamental para estimular a dignidade laboral, a solidez das inserções institucionais e, consequentemente, a própria produtividade científica.
O ministro Manuel Heitor optou por outro caminho, entendendo o “emprego científico” como uma coisa diferente da “carreira científica”. É disso exemplo claro o desenho dos concursos para “estímulo” à contratação de investigadores: pervertem o diploma que enquadra o trabalho científico (criando a categoria de “investigador júnior”) e tem transformado o acesso ao trabalho numa espécie de prémio de excelência, com taxas baixíssimas de concessão de contratos (cerca de 8% no último CEEC). Tirando os professores que possuem vínculo seguro às universidades e politécnicos, a larga maioria de quem hoje produz investigação tem bolsa ou contrato por um período determinado, no âmbito de projetos com tempo delimitado para se desenvolverem ou de contratos – eles próprios desenhados como “projetos” – individualmente alcançados.
A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. O desenvolvimento de projetos e a captação de financiamento fora do orçamento oriundo da FCT é naturalmente importante, mas a subjugação total a essa lógica frequentemente circular – fazer novas candidaturas antes de fechar os projetos anteriores, buscar financiamento para garantir a saúde financeira dos centros ou o próprio salário, etc. – será sempre empobrecedora.
Infelizmente, a dependência de “projetos” tem determinado a prática científica, associada a uma pulsão bibliométrica que – não obstante o jargão sobre o “impacto social” - se enraizou nos mecanismos de avaliação e na própria subjetividade de quem investiga. Se não existe boa investigação sem equipas robustas e sem trabalho colaborativo, o certo é que se tornou recorrente a linguagem da “excelência”, individualizando uma prática que vive da colaboração e da discussão entre pares e fomentando índices disfuncionais de competitividade.
Paradoxalmente, e num momento em que o saber científico – na sua pluralidade temática, disciplinar e epistemológica – deve contribuir decisivamente para pensar o que temos diante de nós e propor boas respostas (e boas perguntas), é muito provável que a crise social e económica se abata também aqui. Sem alternativa política, mais do que um regresso a uma mitigada (a)normalidade, é provável que estejamos nas vésperas do seu aprofundamento: mais desemprego, mais precariedade, mais competitividade, menos financiamento das unidades. No fundo, pior ciência. O drama é que aqui, como noutras áreas, aceitar como adequado o que temos é pouco. Que a crise seja uma oportunidade para imaginar uma ciência melhor. Sobretudo para quem a faz.
Adicionar novo comentário