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O regresso à anormalidade

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. Por Miguel Cardina, Historiador e Investigador do CES-UC.

Como será a investigação científica em Portugal no pós-pandemia? À semelhança do que acontece em tantos outros domínios, esperar que se regresse à normalidade não é apenas um desejo para que se retome o quotidiano, o trabalho e o rendimento. Pode ser, na verdade, um insidioso convite para que se prolonguem as disfunções do sistema. Perdendo-se assim uma boa oportunidade para as identificar, discutir e ultrapassar.

A investigação em Portugal teve um momento de viragem na década de 1990, no quadro do que se costuma designar como “consulado de Mariano Gago” e num contexto internacional e europeu favorável ao investimento na ciência. As últimas décadas assistiram a um aumento ímpar da qualidade e da quantidade da produção científica no país. Procurou-se intensificar a presença da investigação nas universidades e politécnicos. Ao mesmo tempo, um subfinanciamento crónico facilitou a penetração de lógicas perversas de mercantilização do saber. As unidades foram aprendendo a privilegiar a “busca de financiamento”, incapazes de constituir um corpo laboral estável. O universo crescente de pessoas dedicadas à investigação foi convivendo com a naturalização da precariedade na profissão.

É verdade que, nos últimos anos, a FCT promoveu a transformação de bolsas em contratos, possibilitando descontos para a segurança social e o consequente acesso a alguns direitos. Mas isso não combateu decisivamente a precariedade, o desemprego e a intermitência laboral. Para que tal desígnio se cumprisse seria necessário, entre outras medidas, tomar a sério a consolidação das carreiras, estabelecendo um razoável número de contratos ao abrigo do Estatuto da Carreira de Investigação. Esse passo seria fundamental para estimular a dignidade laboral, a solidez das inserções institucionais e, consequentemente, a própria produtividade científica.

O ministro Manuel Heitor optou por outro caminho, entendendo o “emprego científico” como uma coisa diferente da “carreira científica”. É disso exemplo claro o desenho dos concursos para “estímulo” à contratação de investigadores: pervertem o diploma que enquadra o trabalho científico (criando a categoria de “investigador júnior”) e tem transformado o acesso ao trabalho numa espécie de prémio de excelência, com taxas baixíssimas de concessão de contratos (cerca de 8% no último CEEC). Tirando os professores que possuem vínculo seguro às universidades e politécnicos, a larga maioria de quem hoje produz investigação tem bolsa ou contrato por um período determinado, no âmbito de projetos com tempo delimitado para se desenvolverem ou de contratos – eles próprios desenhados como “projetos” – individualmente alcançados.

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. O desenvolvimento de projetos e a captação de financiamento fora do orçamento oriundo da FCT é naturalmente importante, mas a subjugação total a essa lógica frequentemente circular – fazer novas candidaturas antes de fechar os projetos anteriores, buscar financiamento para garantir a saúde financeira dos centros ou o próprio salário, etc. – será sempre empobrecedora.

Infelizmente, a dependência de “projetos” tem determinado a prática científica, associada a uma pulsão bibliométrica que – não obstante o jargão sobre o “impacto social” - se enraizou nos mecanismos de avaliação e na própria subjetividade de quem investiga. Se não existe boa investigação sem equipas robustas e sem trabalho colaborativo, o certo é que se tornou recorrente a linguagem da “excelência”, individualizando uma prática que vive da colaboração e da discussão entre pares e fomentando índices disfuncionais de competitividade.

Paradoxalmente, e num momento em que o saber científico – na sua pluralidade temática, disciplinar e epistemológica – deve contribuir decisivamente para pensar o que temos diante de nós e propor boas respostas (e boas perguntas), é muito provável que a crise social e económica se abata também aqui. Sem alternativa política, mais do que um regresso a uma mitigada (a)normalidade, é provável que estejamos nas vésperas do seu aprofundamento: mais desemprego, mais precariedade, mais competitividade, menos financiamento das unidades. No fundo, pior ciência. O drama é que aqui, como noutras áreas, aceitar como adequado o que temos é pouco. Que a crise seja uma oportunidade para imaginar uma ciência melhor. Sobretudo para quem a faz.

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Neste dossier:

Transformar a Academia

Transformar é a palavra de ordem para os temas deste dossier: Democratização do governo das instituições de Ensino Superior, combate à precariedade laboral, a luta anti-propinas, por mais financiamento público e uma Ação Social que não deixe ninguém de fora.  E a centralidade do conhecimento científico para enfrentar a crise que vivemos. Dossier organizado por Luís Monteiro.

O Ensino da Economia na Universidade portuguesa

O ensino da economia nas universidades portuguesas é acanhado, acrítico e desligado dos verdadeiros desafios que a disciplina se propõe a enfrentar. Por André Francisquinho, Estudante de Economia na UNL.

 

Somos todos bem-vindos (?)

Há barreiras enormes no acesso ao ensino superior para os alunos do ensino regular, quer pelo método de seleção, alojamento, propinas, despesas. Nos cursos profissionais, a situação não é diferente. Apenas 18% dos estudantes do ensino profissional prosseguem estudos para o Ensino Superior. Por Eduardo Couto, Ativista Estudantil e LGBTI+, estudante do Ensino Profissional
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Por uma gestão democrática do ensino superior

É precisamente a ausência de democracia e poder real nas mãos dos estudantes, que o sabem concentrado num sistema piramidal e em interesses alheios ao serviço público, que os tem afastado da participação. Por Eduardo Esteves, estudante de Direito na UP, e Pedro Moura, estudante de Ciência política na UM.

Saúde Mental no contexto universitário

Quando se é jovem e se está a começar uma vida como estudante do ensino superior, é-nos exigida a paz de espírito, o controle e a felicidade porque com a nossa idade ‘’ainda não existe experiência de vida suficiente para se estar mal”. No entanto, os números não mentem. Por Catarina Ferraz, ativista estudantil e social. Aluna do Ensino Superior.

 

Somos a voz adormecida que precisa de ser acordada

Se somos os mais preparados, então saibamos utilizar essa ferramenta para transbordar o papel do estudante enquanto agente passivo de um futuro mercado de trabalho explorador e excludente. Por António Soares, ativista estudantil na Universidade do Minho.

 

Sobre a gestão da Carreira Docente (concursos e progressão)

Talvez por tradição, a gestão de carreiras no Ensino Superior é notavelmente singular porque parece que estas instituições têm um procedimento que mais organização nenhuma tem em Portugal ou no estrangeiro. Por Rui Penha Pereira, Docente do Ensino Superior
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RJIES: tirar o esqueleto do armário

As instituições que adotaram o regime fundacional passaram a reger-se pelo direito privado em várias áreas, nomeadamente, na gestão financeira, patrimonial e do pessoal. A passagem a este regime revelou-se sinónimo de precarização das relações laborais de docentes, não-docentes e investigadores. Por Tomás Marques, estudante universitário e ativista estudantil.

 

Humanizar e Artestizar

As humanidades e artes continuam a ser os cursos a quem se pergunta o que fará da vida com isso. São áreas deficitárias que, enquanto se gasta dezenas de milhões para atrair (com cursos de gestão e afins) estudantes de países ricos, mantêm alunos de faculdades de Letras ou de Belas Artes a conviver com a degradação e até com a insalubridade. Por Pedro Celestino, Ativista Estudantil na Universidade de Lisboa

 

Para uma mudança do paradigma: o ensino superior a Nordeste

As instituições de ensino superior e as unidades de investigação desenvolvem as suas atividades recorrendo ao “exército” de bolseiros de investigação criado pela FCT que dá cobrimento ao já velho corpo docente que é, muitas vezes, um entrave à legalização da contratação dos recentes doutorados. Por Pedro Oliveira, Assistente convidado (precário) no Instituto Politécnico de Bragança.

A Universidade: do Elitismo à sua Democratização

Não podemos continuar a assumir, de uma forma indireta, que o aumento do número de alunos no Ensino Superior em Portugal vale por si só. É preciso saber, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade desse Ensino. Por Catarina Rodrigues, estudante e ativista.

“Dura Praxis, Sed Praxis”

Desde o horrível caso do Meco, que a sociedade civil se debruçou sobre este fenómeno social com outros olhos. Mas o que é, ao certo, a praxe? Um grupo de estudantes? Uma “instituição” académica? Uma seita? Uma tradição? Por Miguel Martins, ativista social e estudantil. Estudante do Ensino Superior
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O mal-estar da Universidade

Esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração. Por Pedro Levi Bismarck, Arquiteto e Docente Precário na Universidade do Porto

 

A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!

A entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.  Por Ernesto Costa, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra

 

O que é que o COVID-19 nos ensinou sobre a Ciência?

Depois desta pandemia passar, tem de ser pensada a criação de um programa de literacia cientifica. Não precisamos todos de perceber a fundo a investigação toda que se faz, deixemos isso aos investigadores profissionais. Mas seremos um país melhor se toda a gente perceber conceitos básicos de Ciência. Por Ana Isabel Silva, Investigadora do i3s e Ativista contra a Precariedade

 

A politização da mentira

Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Por Rodrigo Afonso Silva, ativista estudantil e membro da Greve Climática Estudantil

 

Desigualdade de género no Ensino Superior

Apesar de as mulheres, no geral, serem mais graduadas que os homens – existem mais mulheres licenciadas, mestres ou doutoradas do que homens - , são ainda quem ganha menos e quem tem menos acesso a posições de liderança dentro e fora das Instituições de Ensino Superior. Por Leonor Rosas, estudante universitária, ativista estudantil e feminista.

 

O Ensino Superior Politécnico em Portugal

Com o passar do tempo o ensino superior politécnico e o ensino universitário sofreram uma aproximação em algumas áreas científicas que se materializou no ministrar de licenciaturas de caráter semelhante. Mas esta aproximação não resultou numa uniformização ao nível do ensino e da carreira docente. Por Rui Capelo, estudante do Instituro Politécnico de Setúbal.

O (Sub)Financiamento do Ensino Superior e a Propina

Devido ao subfinanciamento crónico do Ensino Superior, houve um aumento cada vez maior do peso das propinas no financiamento das IES. Por consequência, apesar de a Propina poder variar entre o valor mínimo e máximo, tendo as IES autonomia nesta decisão, o valor fixado é sempre muito próximo do máximo, de forma a contrapor o subfinanciamento. Por Ana Isabel Francisco, Ativista Estudantil na FCT UNL.

 

O mantra da “Autonomia Responsável”

O confinamento ou o Estado de Emergência não podem servir de pretexto para comprimir a fraca vivência democrática que o RJIES trouxe ao Ensino Superior. Por Luís Monteiro, Museólogo e Deputado do Bloco de Esquerda.

O regresso à anormalidade

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. Por Miguel Cardina, Historiador e Investigador do CES-UC.

A Ciência Desconfinada

Como vamos “desconfinar” a ciência? Volta para o seu cantinho semi-escondido? Continuará ser um sector cronicamente subfinanciado? Continuará a ser a campeã da precariedade? Ou terá finalmente o reconhecimento que merece? Por Teresa Summavielle, Investigadora do i3S.