O PS, o PSD e a privatização dos sistemas de abastecimento de água

porJoão Bau

Na presente campanha eleitoral o PSD apresentou no seu programa a proposta de privatização da AdP (Águas de Portugal). A política do PS no que respeita às águas vai exactamente no sentido da entrega progressiva ao sector privado da operação dos sistemas multimunicipais e até de sistemas municipais. Ou seja, também neste tema as opções de PS e de PSD têm o essencial em comum.

02 de junho 2011 - 1:00
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Na presente campanha eleitoral o PSD apresentou no seu programa (de cariz abertamente neoliberal) a proposta de privatização da AdP (Águas de Portugal), a holdingestatal para os sectores do abastecimento de água e saneamento e dos resíduos. Ou seja, o PSD vai para além do vasto programa de privatizações constante do documento elaborado pela troikae aceite por PS, PSD e CDS, e propõe em acréscimo uma privatização que implicaria a entrega ao sector privado da gestão dos sistemas multimunicipais de abastecimento de água e saneamento (sejam eles em alta ou em baixa) e de resíduos.

Tal opção programática foi evidentemente criticada pelo BE e por outros partidos e sectores de esquerda. Também José Sócrates e o PS têm colocado tal proposta como um dos alvos principais das suas críticas ao PSD, considerando a posição do PSD nessa questão como sendo paradigmática do radicalismo neoliberal desse partido. Mas a realidade é que a política do PS no que respeita às águas vai exactamente no sentido da entrega progressiva ao sector privado da operação dos sistemas multimunicipais e até de sistemas municipais. Ou seja, também neste tema as opções de PS e de PSD têm o essencial em comum.

A política do PS e de José Sócrates relativamente ao abastecimento de água e saneamento está definida num “Plano Estratégico da Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais”, o PEAASAR 2007-2013, aprovado em 28 de Dezembro de 2006 pordespacho pelo então Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. As questões consideradas centrais em tal Plano são as tarifárias e as relativas ao modelo institucional, designadamente no que respeita aos sistemas em baixa.

Um dos dois aspectos inovadores do PEAASAR 2007-2013 em matéria de modelos de gestão é a assunção de uma opção privatizadora em larga escala, com a apresentação do modelo das “empresas gestoras de activos e concedentes de serviços”para os sistemas multimunicipais. O que é que isto significa na prática?Significa que uns (a AdP e os municípios, ou seja, as entidades públicas) respondem pelos financiamentos necessários para a construção e equipamento dos sistemas de abastecimento de água e saneamento, quer disponibilizando os capitais próprios das empresas, quer garantindo o crédito bancário que permite o aporte de capitais alheios, respondem por estes durante muitos anos perante a Banca e as suas empresas multimunicipais apresentam resultados negativos durante largos anos (o ”breakeven” ocorre apenas dez, onze, doze ou mais anos após o início da exploração do sistema). E que, após a construção dos sistemas, as entidades públicas concessionam a operação dos mesmos. E que, por conseguinte, outros (os privados) iniciam a operação dos sistemas sem necessidade de investir um euro em obras novas e estão portanto em condições de começar a distribuir dividendos aos seus accionistas desde o primeiro ano de operação.

Nesse documento já não se invoca, como justificação para a entrega da gestão dos sistemas a privados, a indispensabilidade do recurso aos capitais aportados pelas operadoras privadas para a realização das obras necessárias ao atendimento das populações, que é algo que foi proclamado durante anos pelos arautos neoliberais. Agora a entrega ao sector privado é considerada não como um meio indispensável à realização de obras, mas sim como um objectivo da política definida pelo Governo presidido por José Sócrates. Com a justificação expressa, em vários pontos do PEAASAR 2007-2013, de contribuir para a “optimização dos modelos actualmente existentes”, de se obter “uma maior eficiência na prestação dos serviços e a promoção do tecido empresarial”, “de melhorar a qualidade e reduzir o preço do serviço e (…) reanimar o mercado dos operadores privados”. Fala-se até no “desenvolvimento do sector empresarial a nível nacional e local”.

No que respeita às soluções institucionais o PEAASAR 2007-2013 adopta a visão e os valores essenciais da política neoliberal e aplica-os ao sector da água e saneamento.Defende a superioridade da gestão privada sem a suportar em nenhuma análise do desempenho dos modelos de gestão pública e privada, nem em Portugal, nem em países estrangeiros. Até porque a evidência empírica e os estudos realizados disponíveis não suportam tal asserção. Também admitir que o recurso pelas empresas multinacionais ao “outsourcing” da operação dos sistemas permitirá “reduzir o preço do serviço” é outra afirmação que não é suportada por quaisquer estudos, nem sustentada pela evidência empírica, muito pelo contrário.

A minha posição no que respeita às responsabilidades e funções das entidades públicas no abastecimento de água e saneamento afasta-se, portanto, da constante da Estratégia governamental e aproxima-se da adoptada pela quase totalidade dos países desenvolvidos (EUA; Canadá, Japão, Austrália, Nova Zelândia e Europa, com excepção da França, Inglaterra e, em parte, a Espanha). Não posso pois defender a constituição das “empresas gestoras de activos e concedentes de serviços”, nem o “outsourcing” da operação dos sistemas multimunicipais já existentes. Nem deixar de referir que o conjunto das empresas multimunicipais em operação (tendo como accionistas entidades públicas) foi responsável por um significativo passo em frente na qualidade e fiabilidade do serviço prestado em Portugal em água e saneamento, e tem significativa e reconhecida competência do ponto de vista técnico e de gestão. E recordo, ainda, que o modelo de gestão decorrente do PEAASAR 2000-2006, e que agora se pretende alterar (com a justificação falaciosa de o “optimizar”), foi considerado pela União Europeia como um modelo para os países do Leste da Europa, motivo pelo qual as nossas empresas receberam sucessivas visitas de delegações desses países…

Convém frisar que as empresas operadoras de sistemas têm uma importância estratégica para todos os agentes que trabalham no sector do abastecimento de água e saneamento, pois são elas que contratam estudos e projectos, a construção de obras, a fiscalização destas, serviços de consultoria, de gestão da qualidade, de formação profissional, e que compram materiais, equipamentos e produtos. Seria, pois, muito grave para as empresas portuguesas do sector, e para os seus trabalhadores, que os grandes grupos internacionais que dominam o mercado mundial dos sistemas com gestão privada (e que assumem uma política de verticalização do sector) passassem a controlar a operação dos nossos grandes sistemas.

Ora não é possível ignorar a realidade da existência de um oligopólio privado dominante em todo o mundo na gestão privada de sistemas de água e saneamento. Não é realista, em meu entender, definir como objectivo o “surgimento de novos operadores nacionais”. Este mercado da operação de sistemas, como os restantes aliás, não é um mercado nacional, fechado às empresas estrangeiras. É pelo menos europeu e é na Europa (mais especificamente em França) que se encontram os únicos operadores de dimensão mundial.

Falemos claro. Em Portugal, neste momento, fazer a defesa da “privatização” e combater a chamada “estatização” dos serviços de água e saneamento, não é defender os portugueses, as empresas portuguesas e a economia nacional. É defender, objectivamente, o controlo do sector pelos grandes operadores estrangeiros.

Considero que a política de que Portugal carece para resolver os problemas que ainda enfrentamos no domínio da água e saneamento não pode assentar em propostas que se apoiam num neoliberalismo em vias de esgotamento, sem sensibilidade social, e que não acautela os interesses da economia nacional, das empresas nacionais e dos portugueses. Como o são as agora apresentadas pelo PSD e as constantes do plano estratégico em vigor aprovado pelo Governo do PS. São necessárias uma “visão” e uma nova dinâmica assentes numa nova cultura da água e em valores de ética social, de solidariedade, e de serviço à comunidade e aos cidadãos consumidores.

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