Gestão pública e gestão privada dos sistemas de abastecimento de água (II)

porJoão Bau

A ofensiva que nos últimos anos vem sendo desenvolvida visando a privatização dos sistemas de abastecimento de água e saneamento exige a reafirmação, em contraponto às soluções da cartilha neoliberal, de uma nova dinâmica e de uma outra perspectiva de toda esta problemática.

02 de junho 2011 - 0:55
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Quem controla a água controla a vida e quem controla a vida tem o poder”

Leonardo Boff– Teólogo brasileiro

A ofensiva que nos últimos anos vem sendo desenvolvida visando a privatização dos sistemas de abastecimento de água e saneamento, e que tem uma expressão concreta na campanha eleitoral em curso, exige a reafirmação, em contraponto às soluções da cartilha neoliberal, de uma nova dinâmica e de uma outra perspectiva de toda esta problemática. Com outra visão do que devem ser, neste Século XXI, os serviços de abastecimento de água e saneamento, com outros valores, com outra cultura. Que reconhece, expressamente, o “direito à água”, condição necessária à garantia do direito à vida, como sendo uma responsabilidade colectiva. E que reivindica a adopção de políticas da água baseadas nos princípios da ética social, da solidariedade e da igualdade. É esta a visão dos que defendem uma gestão pública de qualidade, que assuma as suas responsabilidades perante a comunidade e perante cada um dos cidadãos consumidores.

De entre os princípios fundamentais desta “visão” apontam-se os seguintes:

a)A universalização da prestação do serviço de abastecimento de água, garantindo dessa forma o exercício do “direito à água” de cada um dos cidadãos e evitando a marginalização das populações mais pobres ou cuja localização geográfica exige investimentos com taxas de retorno reduzidas (ou mesmo negativas).

Este ponto é crucial e implica o abandono da ideia de que a água deve ser considerada principalmente como um bem económico e de que, por consequência, as leis do mercado permitiriam resolver, da forma mais eficaz, os problemas da repartição do recurso pelos diferentes utilizadores (ou candidatos a utilizadores)

Dar-se-ia assim cumprimento ao disposto no documento “O direito à água”, aprovado em 2002 no Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, e que estabelece que o referido direito é um direito do homem. De acordo com o referido documento, “o direito à água consiste no fornecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um”. É ainda salientado que “a noção de fornecimento de água adequado deve ser interpretada de uma forma compatível com a dignidade humana e não em sentido estrito, pela simples referência a critérios de volume e a aspectos técnicos”.

É estabelecido também que a água deverá ser considerada como um bem social e cultural e não principalmente como um bem económico”.

O documento das Nações Unidas em causa refere as obrigações dos Estados subscritores do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (e Portugal subscreveu-o em 1976) na garantia do direito atrás referido, quer à escala nacional quer internacional.

Entre as quais se conta, nomeadamente, a de “garantir o acesso a um saneamento adequado que não é somente fundamental para o respeito da dignidade humana e da vida privada, mas que constitui também um dos principais meios de proteger a qualidade do abastecimento e dos recursos em água potável”.

b)A prestação de um serviço de qualidade aos utentesdos serviços de água e saneamento, que contemple não apenas a qualidade em sentido estrito (sob os pontos de vista físico, químico e bacteriológico) do “produto” da actividade desenvolvida (água de abastecimento ou água residual rejeitada), mas também aspectos de ordem social, económica e ambiental.

Prestação de serviço essa que se tem de processar em condições de máxima eficiênciaeconómica, o que implica nomeadamente a maximização da eficiência de utilização dos seus factores produtivos.

c)A consideração dos operadores como instrumentos de política de ambiente, adoptando uma óptica de sustentabilidade, de promoção da conservação da água e de gestão da procura.

d)A consideração dos operadores comofactores de desenvolvimento regional e local, o que implica nomeadamente um contacto estreito e um trabalho conjunto com os responsáveis políticos a esses níveis.

e) A tomada em consideração do longo prazo, nomeadamente no que respeita à necessidade de investimentos pesados, em tantos casos irreversíveis e que não são imediatamente rentáveis, factores que a gestão feita na lógica dos mercados ignora.

f) A adopção de uma política de relação e de comunicação com os cidadãos, com associações (de consumidores, ambientalistas, de cariz local, desectores de actividade) e com os órgãos de comunicaçãosocial, de verdade, de transparência e incentivadora da participação.De forma a permitir o controlo social dofuncionamento dos serviços por parte dos cidadãos.

g)O reconhecimento de que uma “cultura de serviço público”no seio dos trabalhadores, quando existe, constitui uma importante mais valia, pelo que deve ser acarinhada, promovida e desenvolvida.

h)A preocupação com o reforço da capacidade de gestão dos serviços de abastecimento deágua e saneamentocomo factor essencial para que seja assegurada a sustentabilidade da qualidade dos serviços prestados. O que exige especial atenção, nomeadamente, à política de financiamento global, à política tarifária, à política de capacitação tecnológica e à política de recursos humanos e formação.

i)Num mercado cada vez mais aberto, em que os grandes grupos internacionais que dominam o mercado mundial, assumem uma política de verticalização do sector (que implica que recorram preferencialmente às suas empresas de projecto, de consultoria, de construção, de fornecimento de equipamentos e materiais) compete a cada país a assunção de uma política depromoção dos interesses, capacidades e competências nacionais, quer no mercado nacional quer no mercado internacional. Que não será evidentemente de esperar das grandes empresas multinacionais que operam no sector.

Esta é a visão do que devem ser, neste Século XXI, os serviços de abastecimento de água e saneamento, assente numa nova cultura da água e numa nova cultura de serviço público. Que reconhece, expressamente, o “direito à água”, condição necessária à garantia do direito à vida, como sendo uma responsabilidade colectiva. E que reivindica a adopção de políticas da água baseadas nos princípios da ética social, da solidariedade e da igualdade. É esta a perspectiva dos que defendem uma gestão pública de qualidade, que assuma as suas responsabilidades perante a comunidade e perante cada um dos cidadãos consumidores.

Em suma, as grandes orientações, as “palavras de ordem” dos dias de hoje, não são “escolha, mercado, concorrência, competitividade”. As “palavras de ordem” que importa seguir são, porventura, outras: “transparência, participação, solidariedade, cidadania”.

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