Publicamos aqui o artigo “L’eau privatisée, le temps des résistances” (A água privatizada, o tempo das resistências), de Christian Aubin
A água constitui um bem comum da humanidade cujo acesso para todos deveria ser considerado como um direito fundamental. Mas, para os homens de negócios que estão no comando da União Europeia trata-se de uma mercadoria como as outras. Por isso, eles incluíram o fornecimento da água, assim como o tratamento dos resíduos, no AGCS (Acordo Geral sobre Comércio dos Serviços).
Mais de mil e quinhentos milhões de pessoas no mundo não têm acesso a água potável e mais de 30.000 morrem todos os dias por problemas de saúde que têm a ver com o acesso à água. A gravidade desta situação conduziu as Nações Unidas estabelecer o objectivo de reduzir para metade, até 2015, a percentagem da população mundial que não tem acesso a água potável de forma satisfatória. Mas um obstáculo maior a esta ambição foi levantado em Haia, em 2000, quando 118 Estados assinaram um texto que opõe a noção de direito fundamental à de necessidade vital. Esta concepção foi confirmada na Cimeira Mundial da Água, no México, em Março de 2006. Conclui-se daí que a necessidade de satisfazer essa necessidade leva a considerar a água como uma mercadoria que deve ser vendida a “justo” preço – de facto, o preço que permita às multinacionais da água ganharem lucros chorudos.
Os povos da América Latina levantaram-se contra esta situação. NaBolívia, as revoltas de Cochabamba obrigaram o trust Bechtel a abandonar o país. No Uruguai, a água foi inscrita na Constituição como um bem comum que não pode ser privatizado. No Brasil, a Lyonnaise de Eaux teve de abandonar a sua concessão. Em Março de 2006, a Grande Buenos Aires rompeu o contrato com a Aguas Argentinas, filial da Lyonnaise.
Em França, as três grandes multinacionais da água partilham mais de 80% do mercado interno: Véolia (ex CGE – Compagnie Générale des Eaux), Ondéo Suez (a Lionnaise des Eaux) e a Saur-Bouygues. É uma situação de excepção que assenta numa parceria do tipo “delegação dos serviços públicos”, também chamada “escola francesa da água”, assim como num “laxismo dos eleitos”. Estas multinacionais esforçam-se evidentemente por exportar o modelo para o resto do mundo, onde a distribuição da água é na maior parte dos casos pública, da ordem dos 80% a 90% em média (95% nos Estados Unidos).
Este modelo é muito atraente e lucrativo para as multinacionais pois gera um crescimento rápido com lucros formidáveis (margens de 40% a 55% segundo a Que Choisir? de Novembro de 2007)... em detrimento dos utentes (tornados “clientes”) cujas facturas são 20% a 25% mais elevadas do que quando em domínio público, para não falar dos casos ainda muito mais escandalosos.
Desde Janeiro de 1999, o jornal mensal La Grande Relève abordava este assunto num número especial intitulado “Mas para onde vai o serviço público?”. No caso da distribuição da água, nós interrogávamo-nos sobre o que acontece ao serviço público quando se transforma em serviço ao público com estatuto privado... É o modelo a seguir? Perguntávamos. Dez anos depois, a resposta a esta questão é dada pelas mobilizações cidadãs que põem em causa a gestão privada da água:
- Em Paris, após 25 anos de gestão privada assegurada por duas multinacionais que são as primeiras sociedades de gestão da água em França e no mundo, a água foi remunicipalizada a 1 de Janeiro de 2010. O alcance simbólico deste acontecimento é considerável já que Paris, onde estão as sedes destas sociedades, é considerada como o centro mundial da privatização da água.
- Em Grenoble, os habitantes souberam pela imprensa, em Julho de 1994, as condições ilegais em que os serviços públicos de distribuição da água e saneamento foram privatizados em 1989. Cinquenta cidadãos escandalizados decidiram então criar a associação Eau Secors! tendo como objectivo a defesa do serviço público da água.
Esta iniciativa pode ser considerada exemplar porque levantou os problemas da democracia, da tomada de decisão e da solidariedade na cidade, e porque mostrou o controlo que os cidadãos podem exercer sobre os serviços públicos (ver documento em francês). Para retirar a gestão da água das mãos do sector privado, os cidadãos tiveram de demonstrar o nível de corrupção implicado nas escolhas de serviço impostas pelos dirigentes da multinacional. Foram organizadas reuniões públicas, foram feitos controlos das facturas da água, contra a vontade das autoridades locais, foram apresentadas queixas para procedimento judicial, com o objectivo de obter justiça. O processo judicial foi longo e trabalhoso: o primeiro processo foi depositado em 1989; a Câmara Regional de Contas só pegou no dossier em 1995; só em 1997 o Conselho de Estado anulou a decisão da delegação do serviço público de água e o regime estabelecido pela multinacional, a seguir à delegação, foram anulados em 1998. O julgamento de recurso sobre o caso de corrupção só se realizou em 1996, enquanto que os factos tinham ocorrido entre 1989 e 1990 e foram revelados em 1993.
Uma empresa transparente foi então recriada e constatou-se rapidamente que, com esta retomada pública do controlo da água, a qualidade progrediu; os custos baixaram e as decisões tornaram-se mais transparentes: comunicar integralmente a informação ao público tornou-se regra para a administração pública local, que para conseguir estes resultados assegura todas as tarefas essenciais, enquanto que outros serviços são confiados a prestadores privados, escolhidos através de concurso.
O pessoal cumpre agora a sua missão de serviço público independentemente do mercado e de qualquer interesse do lucro privado. Libertados do fardo do lucro privado, os empregados e os funcionários aplicam no quotidiano os objectivos da política pública. Isto permite fundar o desenvolvimento do serviço numa perspectiva de longo prazo, favorável à protecção dos recursos, à manutenção e renovação regular dos equipamentos, à realização de investimentos importantes e conduzir uma política de redução do consumo e de assistência social às famílias com dificuldades. Em consequência, a taxa de manutenção, de renovação e de melhoria dos equipamentos mais que triplicou em relação à situação existente nos anos 90 sob a gestão da multinacional. Hoje, a cidade de Grenoble dispõe de água a preço e qualidade notáveis.
Tendo assim atingido os seus objectivos iniciais em Grenoble, a associação Eau Secors! estendeu as suas acções a nível regional, num perímetro que corresponde à agência da água Rhône-Méditerranée. Ela opôs-se nomeadamente a um projecto de duplicação da conduta de água de Grésivaudan.
A Eau Secors! participa na Coordenação nacional das Associações de Consumidores de Água (CACE). A “remunicipalização” do serviço de água em Grenoble inspirou já numerosas outras cidades e acções cidadãs em França.
É preciso que o seu exemplo vá ainda mais longe.
Extracto do artigo de Christian Aubinpublicado em La Grande Relève, traduzido por Carlos Santos para esquerda.net