“Quem controla a água controla a vida e quem controla a vida tem o poder”
Leonardo Boff– Teólogo brasileiro
Na presente campanha eleitoral o PSD apresentou no seu programa (de cariz abertamente neoliberal) a proposta de privatização da AdP (Águas de Portugal), a holdingestatal para os sectores do abastecimento de água e saneamento e dos resíduos. Ou seja, o PSD vai para além do vasto programa de privatizações constante do documento elaborado pelatroikae aceite por PS, PSD e CDS, e propõe em acréscimo uma privatização que implicaria a delegação no sector privado da gestão dos sistemas multimunicipais sejam eles em alta ou em baixa. Que valores, que princípios, que opções políticas, sustentam essas propostas? Quem beneficiaria e quem seria prejudicado com a sua aceitação? Os mais favorecidos economicamente ou os mais pobres? Os cidadãos portugueses e a economia nacional ou as multinacionais do sector?
De acordo com Riccardo Petrella são cinco os princípios fundadores da lógica neoliberal nodomínio da água: a) o da mercantilização, que estabelece que a água deve ser considerada principalmente como um bem tendo um valor económico; b) o da superioridade do investimento privado; c) o da passagem de uma cultura de direitos a umalógica de necessidades(o que pressupõe que os direitos do homem são essencialmente civis; nos domínios económico e social existem essencialmente necessidades: de transporte, de energia, de habitação, de água); d) o da privatização; e) o da liberalização. É com base nestes princípios que se vem processando o ataque das multinacionais do sector aos serviços públicos que consideram como mais interessantes nos cinco continentes.
Mas o que se constata, neste momento, é que não é com este modelo e esta lógica mercantilista e privatizadora que se vem conseguindo resolver os problemas das populações não abastecidas por sistemas de abastecimento de água e de saneamento, em especial nos países em desenvolvimento. Muito pelo contrário. De forma telegráfica pode referir-se, entre muitos outros aspectos, que se constata que:
a) a concorrência entre empresas operadoras a todos os níveis ( local, nacional, europeu e internacional) é quase inexistente, constituindo as multinacionais do sector um oligopólio estável e relativamente fechado;
b) os preços praticados pelos sistemas com gestão privada são superiores aos praticados nos sistemas com gestão pública (por exemplo em França 15 a 20% superiores);
c) as privatizações de sistemas foram acompanhadas, em regra, por importantes (e em certos casos brutais) reduções de postos de trabalho, que em muitas situações ocasionaram significativas quebras na qualidade do serviço prestado (por exemplo em Atlanta nos EUA);
d) os sistemas privados não mostraram a sua maior eficiência do ponto de vista ambiental, constatando-se até em Inglaterra uma significativa subida das perdas de água nas redes após a privatização;
e) a contabilidade dos sistemas com gestão privada apresenta um elevado grau de “opacidade”;
f) o serviço público de água e saneamento financiou arriscadas opções de investimento de multinacionais noutros sectores;
g) se registou uma clara desigualdade nos fluxos de investimento privado (inter-regional, intra-regional e sectorial), sendo preteridas as regiões do globo, os países, as localidades e as populações mais pobres, e preterido o saneamento relativamente ao abastecimento de água;
h) se verifica, um pouco por todo o lado, uma debilidade ou completa ausência de adequados sistemas de regulação;
i) a aplicação do princípio da recuperação total dos custos (full cost recovery) teve efeitos sociais devastadores um pouco por todo o mundo, inclusive nos países desenvolvidos (em Inglaterra o número de cortes de água por falta de pagamento triplicou nos cinco primeiros anos após a privatização, exigindo que uma nova legislação proibisse quer as práticas até então adoptadas nos cortes quer os sistemas de pré-pagamento);
j) contrariamente ao que alguns anunciaram e previram, a participação privada na gestão dos sistemas de água e saneamento poderá ter contribuído para o agravamento das desigualdades regionais e locais existentes no contexto da globalização económico-financeira.
Acresce que uma eventual privatização da AdP (dado o elevado montante que implicaria) levaria necessariamente ao seu controlo por um dos grandes grupos multinacionais do sector. O que, dada a política de verticalização praticada pelos esses grandes grupos (que implica que as empresas operadoras do grupo recorram sistematicamente às restantes empresas do seu grupo para a aquisição de materiais e serviços), implica enormes riscos para as empresas portuguesas que trabalham nos subsectores ligados ao abastecimento de água e saneamento e aos resíduos (gabinetes de estudos e projecto, empreiteiros, empresas vendedoras de materiais, equipamentos e produtos, empresas que prestam serviços de consultoria, de gestão da qualidade, de formação profissional, de fiscalização de obras, etc.).
É crescente o reconhecimento da falência do modelo neoliberal para a prestação de serviços públicos, nomeadamente no que respeita à água e à electricidade. De facto os fundamentos teóricos utilizados para promover e implementar o modelo são altamente controvertidos e inconsistentes e, em acréscimo, tanto a evidência histórica como a experiência mais recente contradizem consistentemente a maioria dos pressupostos do modelo.
A proposta privatização da AdP, a ser concretizada, traria uma gestão centrada nos interesses dos operadores e não no direito dos cidadãos à água e ao saneamento (e portanto com impactos sociais negativos), originaria um serviço com tarifas mais elevadas, traria mais desemprego e colocaria em risco a actividade de muitas empresas nacionais que trabalham a jusante e a montante do abastecimento de água e saneamento e dos resíduos.