José Bação Leal: “Tentarei o canto mesmo de gatas”

Neste artigo, no qual reproduzimos, na íntegra, o documentário “Poeticamente Exausto, Verticalmente Só - A história de José Bação Leal”, um jovem e promissor poeta, falecido em Moçambique durante a guerra colonial, a realizadora, Luísa Marinho, explica o que a levou a desenvolver este projeto.

13 de outubro 2019 - 17:45
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Imagem do documentário “Poeticamente Exausto, Verticalmente Só - A história de José Bação Leal”.

Foi na passagem para o século XXI que o tema do passado fascista e colonial português começou a ser focado com mais frequência no cinema. Foi também por esta altura que surgiram os meios digitais para fazer filmes, o que de alguma forma democratizou a criação nesta área. Tudo isto está interligado. Pois uma geração que se começou a questionar sobre o passado e o quis resgatar e repensar, como uma espécie de urgência, tinha meios para o fazer. Mas se estas foram algumas das condições que me levaram a querer desenvolver o documentário “Poeticamente Exausto, Verticalmente Só - A história de José Bação Leal”, elas não foram, obviamente, o motivo.

Para falar dele, tenho de recuar até um sábado à tarde (talvez de 1999), à sala de redação do Jornal Universitário do Porto, onde decorria um curso intensivo de jornalismo, promovido pelo CENJOR (Centro Protocolar de Formação Profissional de Jornalistas). Essa tarde, o formador pôs-nos a ouvir um programa da Rádio Comercial que já tinha algum tempo, sobre literatura e guerra colonial. Excertos das cartas de José Bação Leal eram lidos pelo ator Luís Miguel Cintra:

Esta é a terceira carta que te escrevo num período temporal bastante curto. Ainda estou vivo, dentro desta morte, é claro. “Desculpa o apelo. Mas aqui no Alto Molocué, só consigo, melhor: já consigo conversar com os cães. Os homens não sei onde estão. Minto: sei, mas não digo!”

Aprendo que nunca fui criança, vivi uma infância manchada de egoísmo. Vivemos, nós-os-apesar-de-tudo-eleitos. É que o estômago dilatado duma criança magríssima, os muitos estômagos dilatados de muitas crianças negras são a fome, percebes: a Fome, não a fome em termos de comer pouco, mas em termos de não comer. Ontem, quando disse ao empregado negro que serve à mesa que tencionava provar um caldo de formigas com asas (que ontem invadiram a povoação) ele olhou-me, quase mansamente, e objectou: «Nós é que comemos formigas. Você, não tem o costume». Pensei e respondi que os costumes mudam. Mas ele não quis entender… Kid: esta é uma das mais (delicadamente) vergonhosas experiências dum homem. Apetece-me ficar num canto chorando até ao bronze da última lágrima. Como militar nada posso elaborar de construtivo. E o pior: ainda faltam bastantes kms e eu já não tenho pés. (..) Não posso, não quero, Recuso! As crianças magríssimas de estômago proeminente. Lembram espectros dos campos de concentração Nacional-Socialistas. São como punhais na carne da memória dos homens. *

Estas palavras, ouvidas num silêncio profundo, tiveram impacto sobre todos os que as escutaram. Nem sequer era preciso ter - como o meu caso - nenhuma relação mais direta com o passado colonial e a guerra para sentir com emoção, o medo, a solidão, a frustração e o desespero daquele jovem que escrevia.

O impacto foi tão grande que, algum tempo mais tarde, estava eu a trabalhar no meu primeiro emprego como jornalista, no diário “O Comércio do Porto”, propus, na edição de 25 de abril, escrever um artigo sobre literatura e guerra, referenciando José Bação Leal. De realçar que o único livro dele, o póstumo “Poesias e Cartas”, não se encontrava na altura nas livrarias e era preciso ter muita sorte (e bastante dinheiro) para o adquirir em alfarrabistas. E eu ainda não o tinha. Por isso, a referência foi necessariamente curta; mas suficiente para, passados alguns dias, a irmã de José Bação Leal, Ana, me telefonar a agradecer a referência, pois já há muito tempo o irmão não era recordado. Além disso, quem lhe levou o jornal - ela vivia em Lisboa - foi o seu amigo Francisco Silva Alves, um dos melhores amigos do Zé Bação.

Mas foi só em 2003 que a ideia de fazer documentário começou a ganhar força.

Nesse ano, fui assistir ao primeiro Fórum Social português em Lisboa e frequentei um oficina com a jornalista Diana Andringa, onde se discutia o cinema documental e a sua importância para resgatar a memória histórica. E foi durante essa conversa que decidi ligar a Ana, para a conhecer e conversar sobre a ideia. O telefonema deixou-a entusiasmada e, logo a seguir, ela contactou o Francisco Silva Alves, que, coincidência, também estava no Fórum. Foi nesse dia que conheci ambos, que se tornariam mais tarde protagonistas do documentário, a par de outros grandes amigos do Zé, o António Viana, o Zé Mário e o Luís Monteiro.

Desde há muitos anos que eles se reuniam com alguma regularidade para discutirem o que podiam fazer para que o amigo morto em África, com 24 anos, e a sua obra não caíssem no esquecimento - reeditar o livro, escrever a sua história?. Quando sugeri o documentário, a reação foi de imediata aceitação.

Era também impossível ficar indiferente ao visível impacto que Bação Leal teve, e continuava a ter, na vida daquelas pessoas. A sua sensibilidade, generosidade, lucidez, cultura e integridade fazem dele alguém fascinante, alguém que apetece partilhar com os outros, tal como ele partilhava as suas ânsias, descobertas, filmes, livros, dúvidas e medos, nas cartas que escrevia.

Finalmente, tive acesso ao livro e às memórias de quem o acompanhou na sua curta vida, de quem testemunhou a sua incessante procura por um caminho ideológico baseado num profundo humanismo, na procura da justiça e da felicidade. Quem viveu na insistência de não negar o outro.

“Poeticamente Exausto, Verticalmente Só” é um documentário sobre a vida e o pensamento de uma pessoa e sobre uma época, mas é também um testemunho sobre amizade e coragem, sobre a importância que cada um, individualmente, pode ter para mudar a vida do outro e, consequentemente, a vida em comum, mesmo nas circunstâncias mais adversas. E como isso também é rebeldia.

 

* Luísa Marinho nasceu a 25 de fevereiro de 1978, no Porto, cidade onde cresceu, estudou e começou a sua profissão de jornalista. Cursou Comunicação Audiovisual no Instituto Multimédia, ao mesmo tempo que começou a escrever para a secção de Cultura no diário já extinto “O Comércio do Porto”, onde permaneceu durante cinco anos.

“Poeticamente Exausto, Verticalmente Só – A História de José Bação Leal” é o seu primeiro filme.

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