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Endometriose: quando seremos ouvidas?

A Rebeca tem 28 anos e não consegue engravidar. Para além disso, tem dor quando urina, quando evacua, quando tem relações sexuais. Quando menstrua sente enjoos, desmaios e faz febre. Assustada com a dor que sentia, a Rebeca pediu ajuda ao seu ginecologista, que lhe disse que a dor se deveria provavelmente ao facto de “o marido andar a errar o buraco”.
A dificuldade em engravidar levou-a a procurar um médico especialista em reprodução humana para dar início a um ciclo de Fertilização In Vitro. Mas antes mesmo de arrancar o processo, depois de realizar alguns exames, a médica identificou lesões de endometriose.
A endometriose é uma doença crónica, benigna, que afecta 1 em cada 10 pessoas com vagina e cujos sintomas podem variar, sendo o mais alarmante as cólicas menstruais, mais ou menos intensas. Esta doença tem infertilidade associada em 30% - 50% dos casos, pode acometer órgãos (como ovários, intestino, bexiga, pulmões) e a forma de tratamento mais eficaz é a cirurgia, que nem sempre garante a cura.
A Rebeca tem a bexiga, o intestino e o útero acometidos pela doença e a sua cirurgia exige, como em muitos casos, o envolvimento de cirurgiões de outras especialidades. Neste caso, um urologista e de um gastroenterologista. Irá perder parte do intestino e precisa urgentemente desta intervenção. Recorrendo ao Serviço Nacional de Saúde, teria de esperar pelo menos 1 ano e 4 meses para realizar o procedimento. Quanto ao privado, o valor aproximado apontado pelo hospital supera os 40 mil euros e nem com o apoio do seguro a Rebeca consegue pagar a operação.
Com algumas nuances deixadas propositadamente de parte, o caso da Rebeca é semelhante a milhares de outros casos de endometriose pelo país fora: descredibilização da dor, consideração pela infertilidade em detrimento da dor, urgência na realização de uma cirurgia e impossibilidade de a financiar.
1 em cada 10 pessoas com vagina tem endometriose. Dessas, nem todas têm dores lancinantes. Mas quando é esse o caso, as dores são menosprezadas, ainda que se vá às urgências do hospital, ainda que se queixe a diversos médicos. A proposta é a pílula ou acompanhamento psicológico. Dificilmente há meio termo. De vez em quando, um sorriso de troça ou um revirar de olhos, porque “as mulheres são tão mariquinhas”. Ouvem-se coisas macabras em consultório com maior frequência do que se poderia imaginar.
1 em cada 10 pessoas com vagina tem endometriose. Existe um medicamento que pode ajudar quando a pílula não funciona e quando a cirurgia tem de esperar, mas não é comparticipado e custa 50 euros por mês. É certo que nem todas estas pessoas precisam de cirurgia urgentemente. Mas quando é esse o caso, existem duas alternativas em Portugal: viver um pesadelo enquanto se espera pela demorada ajuda ou contrair um empréstimo, hipotecar a casa, recorrer a amigos e a familiares para sustentar o procedimento.
À semelhança do relato da Rebeca, tantas outras pessoas com vagina choram em gabinetes de hospital implorando por ajuda. E essa ajuda tarda em chegar.
Este não é um problema só de Portugal mas, noutros países, já se sente uma brisa de mudança, que beneficia quem sofre da doença e também o próprio país.
É que a endometriose tem um impacto sócio-económico relevante.
No Reino Unido, em 2019, estabelecia-se que o atraso no diagnóstico era de 8 anos.
São 8 anos de consultas e exames infrutíferos que custam dinheiro ao Estado. Os ministros do parlamento britânico lançaram um inquérito sobre endometriose cujo relatório revelou que “42% das mulheres diagnosticadas consideram não terem sido tratadas com dignidade e respeito pelos profissionais de saúde”.
Numa análise preparada pelo Exército Americano, concluiu-se que a endometriose custa $2,6 milhões ao longo de 6 anos, apenas devido à hospitalização para cirurgia. O custo relativamente à generalidade da população será superior, porque quem sofre com sintomas da doença não está disponível para trabalhar nos dias em que têm sintomas severos associados à doença.
Na Austrália, país na vanguarda do reconhecimento da doença e na prestação de apoio às mulheres, foi estimado que cada pessoa que sofre desta doença representa um custo anual de 30 mil dólares australianos (cerca de 18 mil euros) para a economia do país. Entre 2018 e 2019, após conhecer as histórias de várias mulheres que sofrem com endometriose, o ministro da saúde Greg Hunt emitiu um pedido de desculpas público e alocou 15 milhões de dólares australianos (cerca de 9 milhões de euros) para investigação da doença e de métodos de diagnóstico e para apoios e comparticipações a quem tem endometriose.
Não conhecemos os números em Portugal mas dificilmente serão muito distantes destes apresentados. O primeiro passo para a resolução de um problema é reconhecer que ele existe. Não aconteceu até agora por variados motivos: o tabu da menstruação, o medo da ridicularização, a vergonha da dor que supostamente é normal, o descarte imediato das queixas pela sociedade e pela comunidade médica.
O trabalho para garantir uma melhor qualidade de vida a estas pessoas deve ser feito por diversas vias: actualização da comunidade médica quanto aos sintomas e diagnóstico da endometriose, a consciencialização social para a dor menstrual e uma maior intervenção do Estado em providenciar apoio a quem sofre ciclicamente (ou até diariamente) com esta doença.
O problema já está reconhecido. É chegada a hora de pôr mãos à obra.
Catarina Maia, ativista pela visibilidade da endometriose. Tem a conta de instagram @omeuutero
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