Resgatar o corpo: perspetivas feministas

O movimento feminista tem sido tomado, por vezes, por um discurso vitimista, muito devido à centralidade da violência doméstica e de género. Que efeitos produz essa agenda? Que mulheres resultam de um movimento que as projeta quase exclusivamente como vítimas? Que sexualidade e corpos sobrevivem a uma narrativa de medo e dor? Dossier organizado por Ana Catarina Marques.

31 de maio 2020 - 12:02
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Resgatar o corpo: perspetivas feministas

É evidente que a violência doméstica e de género têm de ser combatidas e que o movimento feminista tem um papel central nesse debate. É indispensável proteger as vítimas, responsabilizar as instituições públicas, punir os agressores. Mas o machismo não está só presente nas agressões físicas e verbais - é uma constante na nossa vida.

O modo como existimos é moldado por uma sociedade que nos quer controladas: vivemos num manual de instruções que nos diz exatamente como devemos comportar-nos ao longo da vida e nas diversas situações. Uma espécie de guião que, do nascimento à morte, nos lembra das obrigações que temos por termos nascido com uma vagina ou nos identificarmos como mulheres. A sociedade vai razoavelmente concordando que temos direito ao corpo, mas só se ele se vergar à lógica do consumo. E o que é o direito ao corpo? O que significa reclamá-lo do ponto de vista feminista? O corpo que nos autorizam a reclamar é o corpo patriarcal, um ideal feminino construído - não por nós próprias nem segundo as nossas determinações - mas um corpo que nos é imposto. Ensinam-nos a aceitá-lo sem questionar. Um corpo no qual nos encerram, mas que não nos permitem explorar. Quem decide o que aprendemos na escola? Quem faz e aplica as leis? Quem produz opinião na imprensa, nas revistas, na televisão? Quem dita as tendências da moda? Quem tem fundos para produzir cinema? Quem desenha as nossas casas, cidades e espaços públicos? Quem são os donos e os gestores das empresas? Maioritariamente homens, mas também mulheres. Em comum, a ausência de uma perspetiva crítica sobre as arrumações sociais que estruturam o sistema de dominação. Daqui resultam corpos domesticados, colonizados, e mulheres deles desapropriados.

Resgatar o corpo é, pois, uma tentativa de abrir janelas, de recuperar e reinventar uma parte tão importante das lutas feministas. Este dossier procura relacionar o corpo com o espaço público, analisando algumas consequências do poder patriarcal e propondo caminhos para a luta. É uma tentativa de contributo para um resgate do espaço, das instituições, das representações e do nosso próprio corpo.

Joana Pires, enfermeira, explica-nos, no seu artigo, de que forma o Sistema Nacional de Saúde nos instrumentaliza desde que somos adolescentes. A responsabilidade do planeamento familiar é exclusiva das mulheres, partem sempre do princípio de que somos heterossexuais e as nossas queixas vaginais são levadas pouco a sério - a não ser que queiramos ter filhos. Uma prova disso, é a endometriose ser tão tardiamente diagnosticada. Uma doença que afeta 10% das mulheres em idade fértil é sistematicamente subvalorizada pelos profissionais de saúde. Catarina Maia, ativista pela visibilidade desta doença, contribui para este dossiê com uma questão: “Quando seremos ouvidas?”.

A dicotomia entre o feminino e masculino está presente desde que nascemos, mas nem todas as pessoas nascem “menino” ou “menina”. Loé Petit, ativista pela consciencialização sobre as pessoas intersexo, descontrói a ideia de que os corpos intersexo são anormais e convida-nos a pensar sobre a binariedade patriarcal. A masculinidade e feminilidade são construções sociais patriarcais. Uma das provas mais evidentes está no nosso corpo: Porque é que a uma mulher se exige um corpo depilado e a um homem não?

O que representa esta dualidade de critérios? Ana Catarina Marques conduz-nos numa breve história da depilação provando que há dois pesos e duas medidas. O que tomamos por opção “higiénica” e estética é, afinal, uma opressão machista de ideal feminino. Ainda sobre o corpo, Patrícia Lemos, educadora menstrual e para a fertilidade, problematiza a ausência de auto-conhecimento. Apresenta-nos a Literacia de Corpo: o ciclo menstrual é um barómetro de saúde.

Quem tem acesso ao prazer numa sociedade patriarcal? Carmo Gê Pereira abre o leque das opressões sociais que ultrapassam as questões de género para uma Reflexão sobre o acesso ao prazer, associando-o com um sistema de opressão sistemática.

Introduzindo um olhar sobre o quotidiano, Cristina Vale Pires lança o mote: É tempo de desconfinar as mulheres na esfera pública. O assédio, a participação, a gestão da vida profissional, familiar e social - o lugar da mulher no espaço público é controlado, vigiado e determinado pelo patriarcado. Na rua, na imprensa, nas instituições públicas, quem tem o poder?

Por último, Andrea Peniche convida-nos a Ver para lá do espelho, a percebermos a linguagem como reflexo e expressão de poder, a segmentação do trabalho em produtivo e reprodutivo, em que um é reconhecido e valorizado e o outro é invisibilizado e desvalorizado, como injustiça e instrumento de exploração e a representação das mulheres no espaço público como um retrato de relações de poder patriarcais. E, perante tudo isto, a necessidade de fazer escolhas, num movimento que é diverso e tantas vezes contraditório.

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