Tradicionalmente as mulheres estavam confinadas ao espaço doméstico, sendo-lhes imposta a vocação reprodutiva e consequentes tarefas de cuidado, de gestão do espaço doméstico e de guardiãs da moral e dignidade da sua família.
Nas últimas décadas a participação das mulheres em atividades produtivas e em domínios tradicionalmente masculinos passou a ser tolerada e, em alguns casos, incentivada. No entanto, esta feminização da vida pública não se traduziu em igualdade efetiva. Enquanto matriz estrutural e profundamente enraizada na nossa cultura, as formas de opressão e subalternização das mulheres ajustaram-se às novas circunstâncias, colocando-as perante múltiplas dicotomias e papeis difíceis de conciliar: mãe/trabalhadora, sexy/provocadora, empoderada/radical, independente/promíscua, assertiva/histérica, líder/macho, entre muitas outras. Ou seja, para além das tarefas relacionadas com os papeis que a tradição já lhes impunha, as mulheres têm vindo a acumular outras funções numa sociedade patriarcal que as precariza, inibe, oprime e menoriza.
Em espaço público as formas de violência de género mais subtis emergem para inibir a sua autodeterminação, controlar, vigiar e, muitas vezes, degradar a sua participação pelo simples facto de serem mulheres. Por esse motivo o acesso das mulheres aos tradicionais segundos e terceiros espaços (trabalho e espaços públicos e conviviais) é condicionado, constantemente vigiado e oprimido pelas velhas garras do patriarcado.
Nas ruas e transportes públicos das cidades, os corpos mulheres são controladas e consumidos por olhares, toques, comentários de homens que fazem questão de impor o seu direito a esse corpo objetificado.
Nas suas atividades laborais, muitas mulheres, têm de conciliar a sua falta de oportunidades e desvalorização profissional com situações de assédio que calam por medo ou pelas possíveis represálias e exposição que antecipam. Em posições de liderança, o seu profissionalismo é questionado pela sua aparência, desconfiança em relação aos motivos que a fizeram chegar a esse lugar ou pela maternidade que as obriga a cumprir horários.
Quando saem à noite, os corpos das mulheres são públicos. Os ambientes de lazer noturno, principalmente os mais mainstream, optam pelo sexismo como forma de promoção dos seus estabelecimentos/eventos. Nestes contextos, os homens continuam a ser os grandes consumidores. Em grupo, o excesso e a perda de controlo reforçam a sua masculinidade e, apesar do risco de intoxicação aguda e de violência interpessoal ser maior entre eles, a sua agressividade condiciona a segurança e a liberdade de expressão e movimento de mulheres e pessoas com identidades não-binárias. Por outro lado, são as mulheres que ocupam as pistas de dança. Muitas sabem que a noite exige um dress code sexy, mas também sabem que não podem exagerar para não parecerem “fáceis”. As mulheres sabem que beber faz parte da sua experiência de lazer noturno, até porque em muitos contextos a entrada e as bebidas lhes são oferecidas. No entanto, sabem que têm de se auto-controlar para não perderem a “postura” e a respeitabilidade, e para garantirem a sua segurança. Em ambientes de lazer noturno, mulheres embriagadas são consideradas corpos disponíveis e acessíveis para consumo masculino. Em caso de violência sexual, a palavra e o sofrimento da mulher de nada valem se participou em atividades consideradas diruptivas para com os seus papeis de género (sair à noite, beber...). Em oposição, aos homens é atribuída uma hipersensibilidade como se estes não se conseguissem controlar face à “provocação” das mulheres pelo simples facto de participarem nesse contexto. Mas desenganem-se aqueles/as que continuam a acreditar que os violadores são homens desconhecidos e vis que premeditam a agressão. À semelhança do que acontece noutros contextos, vários estudos têm vindo a demonstrar que as situações de violência sexual contra mulheres em contextos de lazer noturno são perpetradas por pessoas que a vítima conhece: amigos, conhecidos, amigos de amigos. Por isso “nem todos os homens” agridem mulheres, mas demasiados se sentem legitimados para o fazer numa cultura que lhes ensina que as mulheres nascem para os satisfazer e que sexo é o que aprendem quando veem pornografia hegemónica.
Na noite, na rua, nos transportes públicos, no trabalho... as formas mais ou menos subtis de violência contra as mulheres mantêm-nas confinadas e auto-vigilantes nos seus comportamentos e pressões dicotómicas. É tempo de se perceber que em casa os nossos corpos não são dos nossos “homens” e na rua os nossos corpos não são públicos.
Cristiana Vale Pires, Kosmicare e Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa.