“É urgente tirar filhos de militares portugueses da invisibilidade”

Catarina Gomes, jornalista, e autora do livro Furriel não é nome de pai, defende que é preciso romper com o “silêncio social” em torno deste assunto e reconhecer a cidadania portuguesa aos filhos que os militares deixaram na Guerra Colonial. Entrevista conduzida por Mariana Carneiro.

13 de outubro 2019 - 17:44
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Foto de Barnabé Freixo, Flickr.
Foto de Barnabé Freixo, Flickr.

Escreveste, na tua página na internet, que foram precisos quase 20 anos a trabalhar como jornalista no Público para perceberes que o que mais gostas de escrever são histórias de vida. Mas as histórias de vida sobre as quais escreves estão relacionadas com a Guerra Colonial, e refiro-me aos livros Pai, tiveste medo? e Furriel não é nome de pai. O que é que te fez dedicares-te aos estilhaços deixados pelos cerca de quatorze anos de guerra nas ex-colónias?

Esse interesse foi algo que descobri em mim. Há uma idade em que os nossos pais não são motivo de interesse, temos a nossa vida e o passado deles não nos suscita grande curiosidade. Mas depois chegamos a um momento em que isso muda. E foi exatamente nessa altura que o meu pai morreu, tinha eu 22 anos. Fiquei com imensas perguntas para as quais gostaria de ter respostas. Mas não tive tempo. E esse silêncio eterno incomodou-me.

No Público, onde já estava há bastante tempo, deparei-me com uma investigação da Universidade de Coimbra que falava sobre “os filhos da Guerra”. Eram pessoas que não tinham vivido a Guerra, não tinham vivências diretas, mas tinham aquilo a que eles chamavam de pós-memórias. Senti-me identificada ali: não tendo vivido a Guerra, ela foi-me transmitida, transformei-a e adicionei-lhe conteúdo. Também por causa do silêncio com que fui confrontada, essa realidade era, no meu caso, bastante intensa.

Decidi escrever um texto sobre essa investigação, acrescentando-lhe um testemunho na primeira pessoa, coisa que nunca tinha feito antes. Chamava-se Tiveste medo? porque a primeira pergunta que me lembro de fazer ao meu pai, na adolescência, foi “Mataste alguém?”. Como se se tratasse de um filme de aventura. Ele deu-me uma resposta vaga, dizendo que era uma guerra de guerrilha em que atiravam para a vegetação sem saberem se tinham acertado em alguém. Foi a resposta com que fiquei. O meu pai falava muito sobre a guerra mas sempre numa perspetiva prazenteira: que levou uma guitarra, que convivia com os seus amigos...

Lembro-me que, quando escrevi esse testemunho, fartei-me de chorar. A ideia do silêncio. Há, de facto, muitas coisas na vida do meu pai que não pude aprofundar. Ainda era muito nova para me interessar. Sei que fez espeleologia, teatro... Mas só fiquei com informações dispersas.

Após publicar o artigo, a editora contactou-me para me perguntar se não queria escrever um livro. A ideia agradou-me, mas, sendo jornalista, não queria escrever sobre mim ou sobre o meu pai. Decidi escrever sobre como a Guerra tinha chegado à nossa geração. O que é que tinha sido contado, transmitido, o que é que tinha sido silenciado e o que é que tinha sido inventado pelas nossas cabeças. Apercebi-me que, durante a infância, os pais tinham dourado um pouco a pílula do lado da aventura e que, posteriormente, a narrativa começava a ser mais sofisticada, à medida que os filhos iam crescendo, até chegarem à idade adulta. Não pude chegar a essa fase. Escrevi sobre aqueles testemunhos com uma enorme pena de não poder fazer perguntas. Na introdução, digo que gostaria que o meu livro fosse um pretexto para conversas intergeracionais enquanto é tempo, já que os pais que ainda estão vivos têm 60, 70 ou 80 anos. Quis que o livro fosse um desafio para que, quem ainda tem os pais vivos, fizesse perguntas. E descobri que resultou. Tive muitas pessoas a dizer-me que tinham oferecido o livro ao pai e que iniciaram essa conversa.

Um dos testemunhos que recolhi era de uma filha de um ex-combatente com stress pós traumático (SPT). Nunca tinha feito o diagnóstico, mas ela sabia que o pai sofria de SPT. Um dia disse-me que, para ela, a guerra era apenas a Guiné e a irmã que o pai tinha tido com uma senhora guineense. A certa altura, a irmã foi trazida para Portugal e foi criada pela avó. Quando a entrevistei, a irmã estava na Suíça. Acabei por aguardar que regressasse. Aí surge a história da Júlia, que tinha sido trazida pelo pai, fuzileiro. Lembrei-me que situações como estas aconteceram no Vietname. Recordava-me de ter lido sobre “Os Filhos do Pó”. Comecei a pesquisar sobre casos idênticos que envolvessem ex-combatentes da Guerra Colonial. Não encontrei nada.

Afirmas que Furriel não é nome de pai é um livro de pós-reportagem, que vem na sequência das reportagens que escreveste para o Público em 2013 e 2015. Como é que essas reportagens se tornaram no rastilho deste livro e o que é que encontramos nas mais de 200 páginas da obra?

A primeira reportagem, sobretudo, teve tal impacto que comecei a receber inúmeros emails. O processo envolveu uma procura ativa: eu queria encontrar os pais daqueles filhos que tinha conhecido na Guiné. Criámos um espaço no Público com os rostos deles, umas fotos muito bem tiradas pelo meu colega Manuel Roberto. Tive sempre o cuidado de manter o anonimato dos alegados pais, até porque não podia confirmar se as suspeitas dos filhos sobre quem eram os seus progenitores tinham ou não fundamento. Aliás, as suas histórias eram, muitas vezes, incompletas e a ideia não era ser algo persecutório ou justiceiro. No espaço criado no jornal, divulgámos um email, pedindo a quem tivesse informações sobre estes pais para nos contactar. Tal não aconteceu. Recebi, isso sim, inúmeras mensagens de familiares, sobretudo de irmãos dizendo-me que achavam que os seus pais tinham deixado um filho em África e que queriam conhecê-lo. E já não eram apenas casos da Guiné, mas também de Moçambique e Angola. Percebi que havia ali uma história, que era uma coisa latente e silenciosa mas nada única.

Já quando estive na Guiné tive essa perceção. Na altura, levei apenas quatro contactos, mas rapidamente me transformei numa espécie de repartição pública. O Fernando Hedgar da Silva, o homem que chegou a pensar que o seu pai se chamava Furriel, foi a última pessoa com quem falei, e estava prestes a apanhar o avião. Entusiasmei-me de tal forma que perguntei àquele filho por que razão não criavam uma associação, já que eram tantos em situações similares. Ele respondeu-me que esse era um sonho antigo. Passei-lhe os contactos de todas as pessoas que entrevistei. Depois de a minha reportagem ser publicada, ele sentiu-se encorajado e avançou para a criação da associação. Surgiu ali uma identidade: eram irmãos.

Muito mais tarde, já em Portugal, chegou um email de uma senhora a dizer que era tia de um rapaz cujo rosto aparecia no jornal e que, apesar de o pai, seu irmão, não querer saber dele, ela queria conhecê-lo. O irmão nunca escondeu que tinha engravidado uma senhora, mas alegava que a família dela não tinha permitido que ele trouxesse o bebé. Ainda que não tivesse condições para voltar à Guiné, decidi continuar esta história. A tia acabou por pagar a viagem para Portugal ao seu sobrinho, o Óscar. E eu pude continuar a acompanhá-los.

Mas eu estava interessada em ter também a história de um pai e um filho e, por isso, mandei apelos para a blogosfera. Acabei por encontrar o António, que me fez viajar até Angola. Era um homem que tinha vivido cerca de dois anos com uma senhora angolana, de seu nome Esperança – até parece um nome encomendado. Encontrei-me várias vezes com ele durante as minhas folgas, mas não tinha meios para ir com ele a Angola para que se reencontrasse com o filho. Fizemos a viagem dois anos depois. A narrativa, sobretudo a televisiva, saiu muito cor-de-rosa. A história não acabou ali, após os abraços e choros. No livro transparece a ideia, inclusive, de que eles permanecem dois estranhos. Houve ali uma união, o filho completou a sua identidade e o pai tranquilizou-se, podendo morrer em paz, mas não há forma de recuperar todo o tempo perdido.

À medida que se foram apercebendo do meu interesse, várias pessoas mandaram histórias, ao ponto de ficar soterrada com tanta informação. Tive de tomar uma decisão sobre que rumo tomar. Queria muita a história de uma irmã. Por causa da minha primeira reportagem na Guiné, a irmã de um ex-combatente teve conhecimento dos filhos gémeos do seu irmão, e decidiu ajudá-los à distância.

Portanto, os rastilho foram os emails que recebi e o facto de ter percebido que, ainda que existisse um silêncio na sociedade portuguesa sobre esta matéria, havia aqui famílias para reunir, que estava perante histórias incompletas. A reportagem desencadeou histórias. E são essas histórias que eu conto no livro. É compensador ver que o jornalismo pode ir mais longe. O Fernando ocupava quatro parágrafos da reportagem, mas acabou por dar origem a um livro.

Assumes que passas a fazer parte desta história, deixando de a olhar como uma estranha. Qual foi a herança deste projeto em termos pessoais? De que forma este envolvimento mudou a tua perspetiva?

Este foi um dos trabalhos mais importantes que fiz até hoje. Quando tomei conhecimento da história da Júlia percebi que não havia nada escrito sobre esta realidade. Achei isso estranhíssimo. Entretanto, apercebi-me de que era um silêncio significativo. Um silêncio social sobre uma questão que era desconfortável. Enquanto que, no que respeita ao Vietname, começaram a ser publicadas notícias sobre estas questões nos anos 80, em Portugal não havia uma linha escrita sobre esta realidade.

Passei a visitar as “casernas virtuais” - como eles lhes chamam -, os blogues de ex-combatentes. Foi aí que vi, pela primeira vez, a questão a ser abordada. Era um micro grupo intitulado “Filhos do Vento”. Um ex-furriel perguntou no grupo se alguém se lembrava “daqueles clarinhos que ficaram por lá”. As respostas variaram entre “o que é que isso interessa?”, “isso é inevitável”, “o homem é homem” ou “what happens in Vegas, stays in vegas”. Foram várias as afirmações, que levantavam a questão da inevitabilidade e da irrelevância do assunto, que me chocaram. Era como se a vida daqueles filhos não pudesse ser mudada. E o facto de terem a minha idade era muito impactante. Como se nesta idade não fosse importante sabermos quem é o nosso pai... Se a existência destes filhos era um segredo social, entre os ex-combatentes era um segredo de polichinelo. Todos eles, quando não deixaram filhos nas ex-colónias, sabiam, pelo menos, que havia quem tivesse deixado. Mas era incómodo falar sobre isso, até porque alguns eram casados ou tinham namoradas. Ou porque não existia à vontade para falar sobre o sexo, principalmente em contexto de prostituição ou de troca de favores sexuais em situações de extrema-pobreza. O facto de ser mulher também se tornou num obstáculo . As primeiras conversas que tive com o António foi sobre o sexo, e ele sentiu-se, no início, bastante reticente.

Este projeto teve tal impacto em mim que o livro é todo escrito na primeira pessoa. Já não estou de fora. E intervim quando sugeri ao Fernando a criação de uma associação, como também intervim, quando confrontada com a situação do Óscar, que foi trazido para Portugal e está cá ilegal, apesar de ter um teste de DNA a provar que é filho de um português. Decidi, durante treze dias, divulgar no meu facebook nomes de filhos de ex-combatentes que tinha conhecido. E um ex-combatente sugeriu a criação de uma petição para conceder aos filhos africanos de combatentes da Guerra Colonial a nacionalidade portuguesa. Ele criou a petição e eu ajudei a redigir o texto. Infelizmente, ainda tem pouquíssimas assinaturas. Pela primeira vez, também decidi escrever um artigo de opinião para o Público a defender esta iniciativa. Conceder a nacionalidade é uma questão do Estado português, não é culpabilizar os pais. É fechar um ciclo, como se fez com os judeus sefarditas. Atualmente, este tema continua na invisibilidade, estas pessoas não existem. Às vezes sinto que estou a falar sozinha.

As histórias dos filhos dos ex-combatentes são, como escreveu Miguel Cardina, histórias de “vidas que ficaram do outro lado”. Pelo que já disseste, concluo que encontraste uma grande clivagem entre as expectativas dos filhos e filhas dos ex-combatentes e a forma como estes últimos encaram, ou não chegam sequer a encarar, o facto de terem deixado os seus filhos para trás...

A maior parte das pessoas encara este tema com uma ligeireza que choca. Existe uma desresponsabilização, como se não se tratassem de verdadeiros filhos. Mesmo o António, o pai que levámos a Angola, faz a distinção entre ter tido um filho fruto de uma relação de amor com uma mulher angolana, como foi o caso, ou ter o filho de uma prostituta com quem se envolveu. É a ideia de que a prostituição não obriga à responsabilização.

Os ex-combatentes dispostos a abordar o tema são um verdadeiro nicho. A maioria não quer falar e outros falam do assunto de forma anedótica, do reino da piadola viril. Também descobri que, para homens de 60, 70 anos, descobrirem que têm filhos é quase como se fosse um troféu de macho. Mas tenho cuidado para não cair em qualquer julgamento fácil, simplista e primário. Há um contexto que, se existe para compreender os filhos, também existe para compreender os pais. Às vezes, o jornalismo cai na tendência de apontar o dedo e de ser justiceiro, mas parece-me que não é o mais correto. Até porque estas mulheres também douraram a pílula para os filhos.

Na tua obra, referes, exatamente, que as relações entre militares portugueses e mulheres africanas são, muitas vezes, romantizadas, seja pelas mulheres como pelos filhos e filhas. Sabemos, contudo, que muitas destas crianças tiveram origem em casos de prostituição, de agressões sexuais ou de violações. Ou, pelo menos, numa relação de interesse e subjugação. Que justificação encontras para esta realidade?

Do lado das mulheres, é a vergonha. É teres de assumir, perante um filho, que tiveste de dar o corpo para ter comida. O Fernando, a certa altura, dizia “se calhar, sou filho de uma lata de sardinha”. Uma mãe não diz isto a um filho. Como também não reconhece que esteve com um ex-combatente para garantir a sua proteção ou ter acesso a cuidados de saúde. E é preciso lembrarmo-nos que muitas destas mulheres tiveram filhos aos 14, 15 ou 16 anos. No livro conto uma história de uma senhora que contava que era professora e que o português viu-a a passar no mercado e apaixonou-se logo por ela, pedindo-lhe em casamento. Na realidade, essa senhora tinha sido prostituta.

Por outro lado, os filhos não querem acreditar que a sua origem é tão casual, tão arbitrária, tão triste, tão sem sentido. E tentam dar sentido à sua vida. O mito do pai incógnito preenche-se idealizando-se aquela pessoa: “De certeza que o meu pai anda à minha procura”, “O meu pai e todos os pais são bons”, “O meu pai é muito bom, porque um dia abriu o quartel e deu carne a toda a aldeia”, “Ele queria levar os filhos mas a minha mãe ou os meus avós não deixaram”. Todos eles têm uma história dourada no meio. E tentam convencer-se de que os pais queriam trazê-los para Portugal. Mas depois contradizem-se frequentemente.

Ao romantizar as relações entre os seus pais, os filhos também limpam a honra das suas mães. É um assunto que, se cá é tabu, lá ainda mais. Muitos filhos sabiam à partida que não são filhos dos seus padrastos. Contudo, só se atreveram a abeirar o assunto de uma forma completamente encriptada. Lembro-me de o Óscar me dizer que, a primeira vez que teve coragem para falar com a sua mãe, perguntou-lhe “Pode um homem pode ter dois pais?”.

Relatas, no teu livro, toda a estigmatização e exclusão social a que foram condenados estes filhos e filhas. Por onde é urgente começar? Que medidas concretas podem e devem ser tomadas para quebrar este círculo vicioso?

Eles passaram por momentos críticos logo após a independência. Eram o símbolo do colono. Era preciso acabar com aquela era, a era do tuga, e aquelas crianças representavam o que tinha ficado. Mas a ideia da pessoa que não é negra nem branca, que está “no meio da barcaça”, como me dizia um deles, ainda hoje os afeta, apesar de já terem criado as suas armaduras psicológicas.

Já realcei a importância de conceder a nacionalidade a estes filhos e filhas. No entanto, estamos numa fase ainda mais atrasada. Era importante passar para a fase de investigação, para percebermos quantos filhos e filhas existem, que realidade têm... Fazer um levantamento no terreno.

É urgente tirar estas pessoas da invisibilidade. Nem sequer temos um termo para os designar. “Filhos do vento” foi um termo criado por um ex-combatente e é uma expressão que tem em si mesmo a desresponsabilização. “Filhos de tuga” foi o termo com que eles próprios se auto-denominaram, porque é uma expressão que os estigmatizou que eles usam agora para se dignificarem. Isso é bonito.

Portanto, é preciso passar para a investigação académica e, a nível do poder político, dar um passo no sentido de falar sobre a história destas pessoas. De lhes reconhecer direitos. E aí o Bloco de Esquerda também pode ter um papel. Outra questão prende-se com o facto de, na Guiné, a língua oficial ser a língua portuguesa, apesar de eles falarem maioritariamente o crioulo. A dignificação do crioulo como língua oficial seria muito importante. Já para não falar que a grande maioria destas pessoas não tem internet, e nem eletricidade, que lhes permita agilizar os seus processos. Não lhes é dado qualquer apoio.

Um órgão de comunicação social publicou, em maio do ano passado, um artigo com o título: “Um dos últimos tabus da guerra colonial passa por 'Furriel Não É Nome de Pai'". Acreditas que este é, de facto, um dos últimos tabus ou há ainda muitos tabus por resolver no que concerne à Guerra Colonial?

Ainda há muitos tabus, com certeza. Por exemplo, o massacre, no pós-independência, dos combatentes africanos que lutaram ao lado dos portugueses. A Sofia Palma Rodrigues, que é jornalista e investigadora, está a acabar a sua tese de doutoramento sobre o massacre dos comandos africanos na Guiné. Provavelmente, a maior parte das pessoas desconhece que as fileiras portuguesas foram engrossadas por pessoas locais e que o governo português deixou-as lá à mercê da vingança. Se eu não tivesse entrado por este universo, também não fazia ideia. Creio que falta aqui a vertente audiovisual – do cinema, do documentário – para a mensagem passar. Infelizmente, a escrita não é tão abrangente.

Os livros Pai, tiveste medo? e Furriel não é nome de pai foram incluídos no Plano Nacional de Leitura. Além disso, adaptaste dois dos teus livros para a revista espanhola para crianças !La Leche!. Qual é a importância de trazer a Guerra Colonial para as escolas, de consciencializar as crianças para o tema?

Creio que é fundamental. É, de certa forma, o lado B da história oficial. Assim como, por exemplo, vejo agora no Plano Nacional de Leitura a história trágico-marítima, que na minha altura não se dava. E, no caso da Guerra Colonial, agora já está em causa uma história mais remota, já não são as histórias dos pais mas a história dos avós das crianças que agora andam na escola. Mas muitos deles estão vivos e os seus netos podem ainda fazer-lhes perguntas. Falo muitas vezes sobre isso aos meus filhos, transmito-lhes que, para além da história oficial, existem muitas coisas que acontecem nas entrelinhas. Durante muito tempo, a história da Guerra Colonial permaneceu História privada. História que se conta em família, ou nos almoços de ex-combatentes, mas que não passa para o espaço público.

É preciso não só ter livros sobre a Guerra Colonial como também levar às escolas estes avós que ainda podem dar o seu testemunho. Às vezes malbaratam-se estas histórias vivas. Tenho dois filhos, um com seis e outro com nove anos. Quando me disseram que não queriam aprender a ler, expliquei-lhes que têm duas bisavós que não puderam aprender a ler porque na altura não era dada essa oportunidade às mulheres. A Guerra é tão recente, assim como a Revolução e a Democracia. Parece-me que é fundamental que se dê rostos e se humanize esta História.

Já falaste aos teus filhos sobre a Guerra Colonial?

Falei, ainda que mais numa perspetiva de aventura. Cada vez que lanço um livro reservo um para cada um, com uma dedicatória de acordo com a sua idade. O mais velho já me disse que quer ler o Furriel não é nome de pai, mas eu expliquei-lhe que talvez seja melhor guardar para mais tarde, até porque eles ainda nem percebem muito bem como se fazem filhos. Mas já lhes falei sobre a ditadura, já lhes disse que os jovens com vinte e poucos anos eram mandados para a guerra para manter países que, na altura, faziam parte de Portugal. Quando fomos a Moçambique referi que aquele país antes era Portugal mas não devia ser. expliquei-lhes que aquela estátua gigantesca de um senhor português chamado Mouzinho de Albuquerque antes estava numa praça de Maputo, mas depois passou a estar escondido no forte de Maputo. Faço questão de ir introduzindo estes temas.


* Catarina Gomes - Entrou para o Público como jornalista em 1998. Lançou em 2014 o seu primeiro livro, Pai, tiveste medo? (Matéria-Prima Edições), sobre a experiência da guerra colonial vista por filhos de ex-combatentes. Foi durante a pesquisa que se apercebeu da existência de filhos que alguns ex-militares tiveram com mulheres africanas e que deixaram para trás. As duas grandes reportagens que dedicou ao tema foram premiadas, Filhos do Vento com o prémio Gazeta Multimédia (2014) e Quem é o filho que António deixou na guerra? recebeu o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha (2015). Foi argumentista do documentário Natália, a Diva Tragicómica (RTP2). Em 2002 e 2003 fez uma pausa e esteve em Londres a tirar o Master of Sciences in Media and Communication na London School of Economics. Em 2018 lançou o segundo livro, Furriel não é nome de pai - Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial.

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