Drogas: desbloquear avanços esperados nos últimos 20 anos

A implementação da primeira Sala de Consumo Assistido contou com o apoio de moradores, das associações locais, das Juntas de Freguesia e das forças de segurança. Esta implementação tranquila e participada foi já valorizada como boa prática pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência. Por Ricardo Fuertes.

01 de fevereiro 2020 - 21:51
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unidade móvel de consumo vigiado
Primeira unidade móvel de consumo vigiado funciona desde abril na zona oriental de Lisboa. Imagem SIC.

Portugal tem uma abordagem na área das drogas reconhecida como exemplo dentro e fora do país. A descriminalização associada a um aumento de respostas sociais e de saúde permitiu aumentar o acesso a serviços e tratamento, reduzir o número de infeções por VIH e diminuir os consumos de risco.

Ainda assim, as possibilidades propostas na estratégia nacional de 1999 e na legislação de 2000/2001 não foram aplicadas na sua totalidade.

Estavam ainda por concretizar as Salas de Consumo Assistido, resposta prevista na legislação portuguesa com o nome de Programas de Consumo Vigiado. Trata-se de serviços desde há muito defendidos por associações e profissionais, e identificados como necessários em Lisboa nos diagnósticos da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) em 2015.

Os programas de consumo vigiado são espaços onde se pode consumir de forma mais segura para a partir daí oferecer outros apoios. Dirigem-se a fenómenos concentrados de consumo a céu aberto, sem higiene, de alto risco e que cria as condições para o aparecimento de problemas de saúde e exclusão, afetando as pessoas que usam drogas e a comunidade mais alargada.

A primeira Sala de Consumo Assistido do país começou a funcionar, em Lisboa, em Abril de 2019 com financiamento da CML, e articulação com a ARSLVT e o SICAD, entre outros parceiros. É uma unidade móvel que se aproxima de alguns dos locais onde o consumo já existe, neste caso, na freguesia do Beato e Arroios. A implementação da primeira Sala contou com o apoio de moradores, das associações locais, das Juntas de Freguesia e das forças de segurança, que tiveram oportunidade de conhecer previamente o projeto, esclarecer dúvidas e discutir localizações. Esta estrutura estabeleceu-se com normalidade e rapidamente se tornou mais um espaço de saúde no território, sendo um recurso para pessoas que usam drogas e outras. Esta implementação tranquila e participada foi já valorizada como boa prática pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (Conferência Solidify, Dezembro 2019).

A equipa, composta por mediadores e profissionais de saúde, incentiva os consumidores a realizarem os seus consumos na carrinha, sem se esconderem como o fizeram durante décadas. Além de contar com a supervisão dos profissionais, nesse espaço pode-se consumir com privacidade e higiene. Ao mesmo tempo são propostos outros serviços como rastreios, encaminhamento para tratamentos, e soluções para um conjunto de problemas legais, de habitação, de desemprego, de solidão e desamparo que se foram criando paralelamente aos consumos.

Dois outros Programas de Consumo Vigiado Fixos no Lumiar e no Vale de Alcântara, estão em processo de preparação, tendo sido já aprovado em reunião de câmara o financiamento para um dos Programas.

O apoio e co-financiamento da CML criou também condições para mais uma vez em 2019  materializar  outra possibilidade já prevista por lei desde 2001: um serviço permanente de drug checking (análise de substâncias), intervenção anteriormente realizada apenas de forma muito pontual em eventos de acesso restrito (festivais).

Trata-se de um serviço que inclui a análise laboratorial das substâncias e o aconselhamento por parte de profissionais especializados. Face ao número crescente de novas substâncias psicoativas (NSP) em circulação- 731 novas substâncias identificadas desde 1997, 55 só em 2018, o serviço de drug checking é um contributo importante para a monitorização dos mercados informais de drogas, contribuindo para um conhecimento mais aproximado da realidade e redução do risco de substâncias com composição desconhecida.

Para o OEDT, o drug checking consiste num serviço mais individualizado do que campanhas gerais pois incentiva os consumidores a procurar apoio especializado para discutir a prevenção e a redução de danos. Em conjunto com outras intervenções em contextos festivos, como informação, ventilação adequada, hidratação e outros, é considerada uma intervenção com potencial de salvar vidas

A necessidade de um serviço deste tipo era uma reivindicação de consumidores, profissionais e associações e tinha sido objeto de uma petição à Assembleia da República em 2018 (Petição 519/XIII/3) onde se defendia a criação de “ um serviço de análise de substâncias, disponível de forma gratuita, permanente e continuada. (…) A disponibilização deste serviço impulsiona a criação de canais de comunicação, particularmente com pessoas utilizadoras que não são abrangidas pelos serviços formais de saúde (…) Um serviço permanente de drug checking aumentaria a efetividade das respostas do país em matéria de drogas, representando o próximo passo numa política que tem sido tida como referência a nível mundial.”

O espaço agora aberto pela Kosmicare na Penha de França, com apoio do SICAD e da CML, é o único drop-in no país dirigido à intervenção em ambientes recreativos noturnos. Além do serviço de drug checking, é disponibilizada informação e materiais, uma consulta dirigida à integração de experiências difíceis relacionadas com o consumo de substâncias psicoativas, educação de pares e intervenção de proximidade em eventos de lazer noturno.

Ao longo dos anos foi também identificada a necessidade de valorizar o trabalho de pares na área das drogas, questão abordada e documentada pela Rede Social de Lisboa.

O trabalho de pares pode ser definido como intervenções desenvolvidas por pessoas com condições ou circunstâncias semelhantes ao público para o qual se dirige determinada resposta. Na área das drogas esse apoio pode abordar o consumo ou o acesso a serviços ou tratamentos (dependências, VIH, Hepatite C, Tuberculose, entre outros). Além disso, o envolvimento de pares é importante pois envolve nas intervenções populações historicamente excluídas e estigmatizadas. Em 2019 alterámos o Regulamento de Atribuição de apoios (linha de financiamento a associações) de forma a valorizar os projetos nas várias áreas dos Direitos Sociais que incluam pares e mediadores nas suas equipas. Dá-se assim mais um passo para responder a uma reivindicação das pessoas que usam drogas “Nada sobre nós sem nós”.

Além das já destacadas, Lisboa tem uma rede sólida de respostas em várias áreas: programas de prevenção, tratamento, equipas de rua, programas de metadona e acolhimento especializado, que continuam a contar com apoio da autarquia.

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