A 15 de Março de 1961, um ataque sangrento reclamado pela UPA (União das Populações de Angola) é perpetrado nas fazendas isoladas do norte de Angola, onde colonos brancos e trabalhadores negros são trucidados a golpe de catanas. As imagens dos cadáveres dilacerados de homens, mulheres e crianças seriam exaustivamente exploradas pela propaganda colonial, que as utilizava e divulgava como prova das atrocidades cometidas contra os colonos portugueses. A defesa armada seria não apenas a resposta inevitável; seria a resposta legítima aos ataques sofridos1. Nunca oficialmente declarada, a guerra colonial iniciada em Angola em 1961, e estendida à Guiné-Bissau em 1963 e a Moçambique em 1964, estava justificada com base na defesa da integridade dos territórios ultramarinos portugueses, mas também, e a um nível mais afetivo, com base na urgência de proteção dos portugueses que viviam além-mar.
Após Salazar ter proclamado o enfático “para Angola, rapidamente e em força” a 13 de Abril de 1961, e até ao 25 de Abril de 1974, o quotidiano dos portugueses metropolitanos seria marcado pelas partidas e chegadas de contingentes militares. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, Lisboa, embarcavam rotineiramente tropas coloniais, mas também novas e volumosas levas de colonos que partem rumo às colónias. O início da guerra colonial coincide com a instituição, em 1962, da livre circulação de pessoas e bens no seio do “Espaço Económico Português”, fazendo aumentar o fluxo migratório destinado ao Ultramar2. No mesmo período, durante o mandato de Adriano Moreira como Ministro do Ultramar (1961-1962), são aprovadas medidas conducentes ao povoamento branco, que continua a ser encorajado até inícios da década de 1970. Nos últimos anos do colonialismo português, a população branca residente nos territórios ultramarinos cifrava-se em cerca de 500 000 indivíduos (vd. Quadro). Destes, apenas 35% haviam nascido em África, o que evidencia que o auge dos fluxos migratórios rumo às colónias só se dá no pós-Segunda Guerra Mundial, tendo sido fortemente propiciado pelo desenvolvimento das economias coloniais, sobretudo da angolana, mas também encorajado por programas estatais que viam no aumento da povoamento branco uma importante medida para combater o movimento anticolonial, já então em marcha.
Cláudia Castelo, “Migração colonial para Angola e Moçambique (séculos XIX-XX)”, p. 73.
Quando se dá o 25 de Abril de 1974, a notícia do derrube do Estado Novo não parece ter sido recebida com especial preocupação pelas populações colonas. Apesar dos treze anos de conflito, o mal-estar em relação à guerra colonial parecia atingir mais as populações metropolitanas que as coloniais, que geralmente estavam estabelecidas nos centros urbanos, longe dos teatros das operações. Além disso, estas frequentemente encaravam a mudança do regime como um problema que concernia à metrópole, e que não as iria afetar. Com efeito, uma eventual saída dos territórios ultramarinos parecia estar fora das perspetivas dos colonos. Esta perceção era acalentada, no seio da população colona, não só pelo crescimento económico e pelos níveis de bem-estar que se registavam então nas colónias, mas também pela ideia, disseminada pela propaganda colonial, de que as colónias portuguesas eram um caso singular de convívio harmonioso entre raças, povos e culturas, não havendo, por isso, razão que justificasse a descolonização daqueles territórios. Isto apesar da realidade da situação colonial, marcada pela segregação racial e pelo trabalho forçado. Além do mais, se bem que “Descolonizar” fosse um dos eixos do Programa da Revolução e o novo governo tenha posto imediatamente termo às guerras que o Estado Novo travava em África contra os movimentos de libertação, o direito das colónias à independência revelou-se uma questão sensível, acabando mesmo por ser omissa do Programa do Movimento das Forças Armadas. As promessas que ecoavam nas colónias no pós-25 de Abril eram as acalentadas pela expressão presente na declaração da Junta de Salvação Nacional feita pela voz de António de Spínola: “Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental”.
Província de Angola, 26 de Abril de 1974, p. 1.
Contudo, pressionado pelos movimentos de libertação nacional, pelas agendas internacionais e pela opinião pública do país, o governo provisório tinha pouco poder negocial, e acaba por conceder na independência imediata de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, e São Tomé e Príncipe em 1974 e 1975. Para Moçambique, a independência é negociada na Zâmbia com a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e em 7 Setembro de 1974 são assinados os Acordos de Lusaka. A independência do novo país é agendada para 25 de Junho de 1975. Para Angola, as negociações para a transferência da soberania realizam-se em Janeiro de 1975, na localidade de Alvor, no Algarve, Sul de Portugal, tendo o Acordo do Alvor sido assinado em Janeiro desse ano entre o novo Governo português e os principais movimentos de libertação de Angola (MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola; FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola e UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola). O Acordo estabelece os parâmetros para a partilha do poder entre o novo regime português e os três movimentos de libertação e a data para a proclamação da independência de Angola fica definida para o dia 11 de Novembro de 1975.
Embora o ambiente das negociações tivesse sido positivo, a realidade cedo se revelou pouco pacífica. Em Moçambique, a relutância de grupos de colonos brancos e dos partidos dissidentes em reconhecer a FRELIMO como único representante de Moçambique independente resulta em ações de insurreição colona, como foi o caso do levantamento popular do dia 7 de Setembro de 1974, que, tal como as ações contra-insurrecionárias que lhe seguiram, levanta uma onda de pânico, saque e morte que haveria de conduzir à fuga em massa de muitos portugueses do território, ora para a antiga metrópole, ora para territórios vizinhos, como a África do Sul e a então Rodésia. Para os que ainda ficaram, a deterioração das condições económicas e sociais, a instabilidade política, os conflitos raciais, bem como as intenções de coletivização da propriedade privada anunciadas pela FRELIMO, são as subsequentes razões apontadas para a debandada de grande parte da população branca.
Em Angola, a existência não de um, mas de três movimentos de libertação considerados legítimos herdeiros do Governo do novo país, cria um clima de tensão que rapidamente haveria de resultar numa luta sangrenta pelo controlo do país, dando início ao conflito armado que teve início nesse ano e que continuou, com alguns intervalos, até 2002: a Guerra Civil de Angola. Cedo se instaura um cenário de violência generalizado e o caos instala-se nas ruas. Falta água em Luanda, falha o abastecimento de bens essenciais, e o comércio e os serviços públicos colapsam. Para muitos, a fuga era vista como a única saída possível. Através de uma ponte aérea, que envolveu o exército e a aviação civil portugueses, com o apoio da aviação americana, russa, britânica, belga e alemã, 260 000 indivíduos foram evacuados de Angola entre meados de Julho e Novembro de 1975, nas vésperas da independência no novo país.
Ponte Aérea Luanda-Lisboa. Fotografia reproduzida em Júlio Magalhães, Os Retornados. Um Amor Nunca se Esquece (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008), p. 119.
Como resultado da descolonização, estima-se que entre 500 000 e 800 000 colonos tenham abandonado a sua residência em África entre 1974 e 1979. De acordo com os Censos de 1981, Portugal recebeu 471 427 migrantes das ex-colónias, dos quais 290 504 de Angola (61,6%), 158 945 de Moçambique (33,7%) e 21 978 de outras ex-colónias (4,7%), embora, de acordo com o sociólogo Rui Pena Pires, que organizou esta estatística, o número real de repatriados pudesse ser maior, já que os números não incluem “os repatriados entretanto emigrados ou falecidos” ou os “não recenseados”3. Não incluem também os que “retornaram” à ex-metrópole só anos mais tarde, bem como os amplos fluxos de refugiados originários das ex-colónias que vieram para Portugal depois da descolonização, mas que foram excluídos da cidadania portuguesa.
Os portugueses metropolitanos veem-nos subitamente chegar, de barco ou por avião. Muitas pessoas, sobretudo as que vieram na ponte aérea, chegam destituídas, fugidas da guerra e da violência que se instala nos territórios coloniais, com a roupa que trazem no corpo e deixando para trás todos os seus bens materiais. À chegada recebem um subsídio de acolhimento providenciado pelo Estado e são encaminhados para casa de familiares ou, na falta deste recurso, para pensões, hotéis, cadeias, parques de campismo ou quaisquer outras instalações que pudessem servir de alojamento aos muitos milhares que todos os dias chegavam, numa gigantesca operação de salvação e socorro providenciada pelo Estado português.
Desalojados de Angola. Empresa Pública Jornal O Século. 1975/06/16. Imagem cedida pelo ANTT.
Em Portugal são chamados “retornados”, um nome que resulta da criação, em 1975, do Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN), um organismo instituído para dar apoio à chegada e integração desta população.4 Mas rapidamente o nome se banaliza no senso-comum, adquirindo um sentido pejorativo e tornando-se um estigma. Nesse “Verão quente” de 1975, a chegada repentina dos “retornados” foi recebida com hostilidade e ressentimento. Num país imerso num profundo e conturbado processo de mudança social e política nestes anos pós-Revolução e massacrado por 13 anos de guerras nas colónias, os retornados eram considerados aqueles por cujos privilégios tantos jovens metropolitanos tinham perdido a vida no conflito em África. As feridas abertas por treze anos de guerra colonial voltavam-se agora contra os retornados de África, que se tornavam no bode-expiatório do colonialismo português.
Ultrapassados os conturbados anos do PREC5, a estabilização democrática e o desenvolvimento social e económico do país, especialmente após a adesão de Portugal à União Europeia em 1986, contribuíram para que as tensões resultantes da descolonização se amenizassem. Apesar da catástrofe social que a chegada repentina à ex-metrópole de centenas de milhares de desalojados fazia anunciar, em poucos anos dá-se a sua completa assimilação na sociedade portuguesa, tanto do ponto de vista social e económico como do ponto de vista cultural. Com efeito, a população retornada não só não evidenciava fatores de marginalidade social como também não se constituiu como uma força de reivindicação política ou como um movimento de afirmação de uma identidade distintiva. Apesar de muitas vezes este sucesso ser visto como o resultado da iniciativa dos próprios retornados, que empreenderam na reconstrução das suas vidas, o facto de para muitos deles se tratar efetivamente de um regresso à antiga metrópole de onde haviam saído apenas anos antes e onde mantinham família, propriedade e laços sociais, juntamente com a atuação do Estado português no desencadeamento do apoio ao acolhimento e integração desta população – através de subsídios de alojamento e alimentação, de mecanismos conducentes à sua integração no mercado de trabalho (como o Quadro Geral de Adidos) ou da criação de programas de atribuição de crédito com condições particulares (como é o caso dos programas geridos pela Comissão Interministerial de Financiamento a Retornados – cifre), – terão contribuído fortemente para que na maior parte dos casos a reintegração dos retornados tivesse sido bem sucedida. Além do mais, a maior parte dos retornados, além de beneficiarem da cidadania plena e do domínio da língua, não contrastavam com as demais populações portuguesas pela cor da pele, já que na maioria eram brancos. Este fator terá largamente facilitado a diluição destas pessoas na sociedade de acolhimento. Já para aqueles que detinham marcadores de diferença visíveis, negros e mestiços, essa diluição foi mais difícil6.
Refugiados de Angola chegando ao aeroporto da Portel em Lisboa. Flama, 23/05/1975. Imagem cedida pelo ANTT.
Mas independentemente do maior ou menor sucesso da integração dos retornados, a descolonização deixou uma memória fraturante na sociedade portuguesa. Esta fratura, mais do que a cisão ideológica entre campos opostos do espectro político, resulta da difícil acomodação da descolonização e do retorno nas narrativas identitárias que sustentam a identidade portuguesa no período democrático. Por um lado, a consciência histórica nacional, na medida em que é expressa pelos discursos políticos, pelas agendas das instituições culturais, e pelas banais aceções do senso-comum, continua a assentar na narrativa do império e das descobertas. Nesta narrativa, os acontecimentos que marcaram o fim do domínio colonial português em África, a guerra colonial e o retorno, não encontram espaço de inscrição. Reconhecer estes acontecimentos, e integrá-los na memória nacional, obrigaria também a reconhecer que o império português foi colonial e não uma mera quimera histórica feita por argonautas e missionários que se lançaram à descoberta e à cristianização do mundo há mais 500 anos atrás. Por outro lado, a refundação da identidade portuguesa faz-se, a partir de 1974, a partir da narrativa da “Revolução dos Cravos”, da herança democrática e de viragem para a Europa, que libertou o país ditadura e libertou os povos colonizados. Também aqui, a feridas causadas pela descolonização, como sejam o repatriamento de milhares de colonos ou a escalada de conflitos nos novos países independentes, são dificilmente integradas nesta narrativa triunfante. Ambas as narrativas trazem colada à pele a mácula de uma herança difícil, da guerra colonial, da descolonização e do retorno de África, uma herança que ainda aguarda por uma plena inscrição no discurso da história e da memória do Portugal contemporâneo.
* Elsa Peralta - Doutorada em Antropologia (Universidade de Lisboa, 2006), é investigadora auxiliar do Centro de Estudos Comparados (CEC), Faculdade de Artes e Humanidades, Universidade de Lisboa. Durante o semestre de primavera de 2019, foi professora visitante da FLAD / Michael Teague no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University. O seu trabalho baseia-se em perspetivas da antropologia, estudos da memória e estudos pós-coloniais e foca-se na interseção entre formas privadas e públicas de evocação de eventos passados, em particular do passado colonial. Atualmente, coordena o projeto Legados do Império e Colonialismo em Perspectiva Comparada e trabalha no projeto de investigação Narrativas de perda, guerra e trauma: memória cultural portuguesa e fim do império. Tem vários artigos e capítulos publicados, além dos volumes editados Heritage and Identity: Engagement and Demission in Contemporary Society (Routledge, 2009), Cidade e Império: Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais (Edições 70, 2013), Retornar: Traços de Memória do Fim do Império (Edições 70, 2017). É também autora de Lisboa e a Memória do Império (Deriva, 2017). Foi curadora e coordenadora científica da exposição “Retorno - Traços de Memória”, produzida pela cidade de Lisboa em 2015.
1 Maria José Lobo Antunes, “O que se vê e o que não pode ser visto: fotografia, violência e Guerra Colonial”. In Elsa Peralta, Bruno Góis e Joana Oliveira (orgs.), Retornar: Traços de Memória do Fim do Império (Lisboa: Edições 70, 2017), pp. 215-226.
2 Cláudia Castelo, “Migração colonial para Angola e Moçambique (séculos XIX-XX)”. In Elsa Peralta, Bruno Góis e Joana Oliveira (orgs.), Retornar: Traços de Memória do Fim do Império (Lisboa: Edições 70, 2017), pp. 63-84.
3 Rui Pena Pires, “O regresso das colónias”. In F. Bethencourt, K. Chaudhuri (dir.), História da Expansão Portuguesa, vol. 5 (Lisboa: Círculo de Leitores, 1999), pp. 182-196, p. 185.
4 O IARN foi criado em 1975 pelo Decreto-Lei n.o 169/75 de 31 de Março para responder ao súbito e massivo afluxo de retornados que chegavam das ex-colónias, tendo sido extinto em 1981 pelo Decreto-Lei n.º 97/81, de 2 de Maio.
5 O Processo Revolucionário em Curso – PREC – designa o período revolucionário iniciado com o 25 de Abril de 1974 e concluído com a aprovação da Constituição Portuguesa, em Abril de 1976.
6 Estima-se que cerca de 25 000 a 35 000 retornados tinham ascendência africana. Stephan C. Lubkemann, “Race, class and kin in the negotiation of ‘internal strangerhood’ among Portuguese retornados, 1975-2000”. In A. L. Smith (ed.), Europe’s Invisible Migrants. (Amesterdão, Amsterdam University Press, 2003), pp. 75-93, p. 89.