Cidades que cuidam

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Artigo de Maria Manuel Rola.

09 de janeiro 2022 - 15:41
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Pessoas a passear num parque. Fotografia: Jorge Franganillo/Flickr

A organização das cidades em que vivemos valoriza sobretudo duas realidades: a produção de mercadorias e o consumo individual. Temos cidades organizadas à volta de um eixo casa-trabalho, que privilegiam o transporte rodoviário e que foram estimulando os mega-espaços de aglomeração de consumo, de que o shopping é um exemplo maior. A par desta forma de organização das cidades, temos tido, nas últimas décadas, uma tendência global de suburbanização do território que contrariou a densificação dos centros históricos que tinha ocorrido com as migrações rurais. Estes espaços eram claramente insuficientes para receber todas as pessoas que, nos séculos anteriores, acederam às cidades para trabalhar na indústria ou nas casas burguesas. Esta lógica de suburbanização fez também estilhaçar algumas das dimensões essenciais a uma cidade que cuida: proximidade e infraestruturas comunitárias que serviam um largo conjunto da população, principalmente mulheres pobres, no seu trabalho de manutenção de si e dos outros. Existem ainda resquícios dessa presença: os tanques comunitários, alguns balneários e casas de apoio públicas, chafarizes para dar de beber a quem brincava na rua, bancos de jardim e os próprios jardins.

A expansão territorial através da suburbanização contou com a desindustrialização, o desinvestimento público e a privatização do espaço público e do edificado que levou a centros das cidades despovoados e abandonados, nomeadamente pelos poderes públicos, ao mesmo tempo que se criaram vastos territórios dormitório que não servem para ser vividos, mas apenas para conter em escassas horas dos dias as pessoas que aí vivem e no resto da maioria do tempo quem trabalha na “fábrica da vida”. Os espaços centrais das cidades, despovoados e entregues à especulação são agora, por seu turno, as fontes das mais valias da cidade capitalista que penaliza as classes populares e particularmente  as mulheres e as pessoas que delas dependem. Numa primeira fase, assistiu-se à expulsão de uma parte das pessoas que viviam nesses espaços densificados dos centros das cidades, com a população que resiste a ser abandonada pelo Estado e pelas respostas sociais que aí existiam e que foram encerrando. À medida que este processo se acentuou, essa população foi violentamente expulsa pelos serviços turísticos e pela especulação financeira.

Os centros tornaram-se menos capazes de constituírem espaços de inclusão e de cuidados

É que cuidar implica interdependência e atenção aos atos reprodutivos e à manutenção, até ao limite possível, da autonomia de cada pessoa. E essa liberdade individual - da qual não falam os autores liberais - só se garante com uma cidade preparada para a diversidade, e, desde logo, para os mais frágeis, ou as menos autónomas. Pensar uma cidade que cuida implica, então, uma concepção diversa - e distinta da atual - de ‘o que’ e ‘a quem’ uma cidade deve servir. De facto, pensar  cidades que cuidam implica uma grande reestruturação dos nossos territórios, em que i) os caminhos são utilizados para as pessoas se deslocarem em modos suaves, gratuitos e seguros para locais próximos sem necessitar de um carro; ii) os serviços públicos são de proximidade e garantem tarefas tão fundamentais como o cuidado de várias crianças - através de creches públicas - ou de pessoas dependentes, a alimentação também se garante na proximidade e através de trabalho justo, de comércio local e hortas urbanas; iii) existe uma partilha de infraestruturas de limpeza, de lavandaria, de alimentação e também de leitura, conhecimento, transmissão de saberes, cultura e ócio; iv) o uso dos solos privilegia e é regulado para a utilização do espaço na satisfação das necessidades quotidianas de quem vive nesses locais e com a sua participação. Cidades para viver - mais que para percorrer velozmente - e diversificadas - mais que segmentadas por função - são cidades mais capazes de  criarem espaço para o cuidado e com isso para a autonomia.

Aprender com o passado e com o presente

Existem, na história, vários exemplos e propostas de cidades, espaços e casas pensadas com base naqueles fundamentos. Podemos ir bastante atrás no tempo e referir o Falanstério de Charles Fourier (1829) ou os modelos anteriores de Robert Owen (1800)[1]. Podemos ainda falar das propostas de várias feministas ao longo dos séculos que refletiram sobre o espaço, o trabalho produtivo e reprodutivo e o modo como as cidades condicionam e condenam à miséria trabalhadores e trabalhadoras. No século XIX, em 1840, Flora Tristán denunciava já a “infame situação das cidades'', antes mesmo do nascimento do urbanismo como disciplina e dos escritos de Engels em “Para a questão da habitação” [2].

Susana Torre [3], Dolores Hayden [4] ou Zaida Muxi [5], sistematizam a evolução do pensamento da geografia, arquitetura e urbanismo feministas. Todas partem de um princípio base: as cidades foram maioritariamente construídas por homens e para homens. E não só de uma forma genérica, mas de uma forma bem concreta. As casas, as cozinhas, as lavandarias, os espaços de cuidado de crianças, de conectividade do espaço, da mobilidade e transporte, os passeios e as passadeiras, os parques e o mobiliário urbano, os espaços de encontro são pensados por um conjunto de pessoas sob uma ideologia com uma perspetiva de eficiência muito própria: especialização e rapidez na produção estandardizada. Poucas vezes foi proposta uma perspectiva integrada de cidade e as experiências em contracorrente foram sobretudo pontuais ou à margem da sociedade dominante e do planeamento urbano feito pelo poder. As consequências nefastas de se pensar o espaço construído para apenas uma parte da população nunca foram suficientemente valorizadas.

Como resgatar, então, experiências e propostas do passado e presente, algumas vistas como utópicas, outras que foram implementadas, funcionaram e funcionam - como a habitação pública da Viena Vermelha - para construir a cidade que cuida, a cidade que dá respostas à diversidade da vida e do contexto físico, pessoal, de classe, género, idade ou etnia? Se pensarmos à escala do bairro ou até da freguesia, várias propostas existem e devemos torná-las mais conhecidas e mais visíveis. Em Viena, podemos reportar-nos à resposta em que os complexos habitacionais públicos garantiam creches, lavandaria comunitária, serviços para pessoas mais velhas e uma grande relação entre os espaços público e privado. Também atualmente, em Zurique, por exemplo, estas respostas existem e continuam a ser construídas [6]. Podemos ainda aprender  com  lutas como a de Jane Jacobs contra Robert Moses - bem visíveis no filme “Citizen Jane: The Battle for the City”. Moses, urbanista de Nova Iorque, pretendia esquartejar a cidade com autoestradas. A vitória contra a destruição do agora gentrificado bairro de Greenwich Village foi um momento de embate que mostra que a cidade para quem a vive não pode depender e dar prioridade a políticas especulativas que usam a urbanização e destruição de zonas para a criação de mais-valias. Essa perspetiva do passado já se mostrou penalizadora da vida em comunidade.

Atualmente, a campanha autárquica “Paris en Commun” ou o plano Pós-Covid “Milão 2020” [7] ou ainda as Superilhas de Barcelona são exemplos de estratégias que pretendem que as respostas desçam ao espaço do local e da proximidade e que priorizem a deslocação a pé ou por bicicleta e transportes públicos - sem custos e que liberta uma grande parte do espaço usado com o carro para o uso das pessoas. Esta reorganização garante espaços onde as crianças podem brincar e deslocar-se, onde as pessoas mais velhas ou mais dependentes podem movimentar-se sem obstáculos (de falta de passeios, falta de rampas, falta de espaço pedonal, excesso de carros) e descansar no percurso (com o recurso a espaços com sombra, com água, com casa-de-banho), onde o comércio local tem utilizadores, onde vivem e trabalham pessoas, onde devem existir serviços públicos de saúde comunitária ou de apoio social, de creche e apoio a pessoas mais velhas, a pessoas em situação de sem abrigo, minorias de todas as condições… toda essa diversidade tem em comum a necessidade de uma cidade que responda ao seu cuidado e segurança, que se faz garantindo mais gente na rua e mais espaço público. Este tipo de espaço urbano pode ainda inspirar-se em espaços de encontro que resistiram enquanto lugares de sociabilidade, de forma mais perene, em alguns espaços rurais: coretos, bancos, hortas, ruas pedonais - e que em muitos casos foram, nas cidades,  sequestradas por carros. 

Portugal: rentismo e apropriação privada da propriedade pública e dos comuns

Em Portugal, as cidades estão marcadas fortemente pela utilização individualizada do espaço público, pela lógica da privatização dos serviços públicos, pela canalização do espaço para o carro ou para a especulação através de duas estratégias. A primeira é a manutenção da hegemonia do abandono em detrimento do uso da propriedade. A segunda - muitas vezes decorrente da primeira - é a reorganização do território através de grandes obras de reabilitação urbana que privilegiam a privatização do espaço e não a sua vivência ou a sua naturalização. 

Os Planos Diretores Municipais recentemente revistos ainda privilegiam e permitem acesso a direitos adquiridos em zonas de servidão comum - de rio, leito de cheia, de solo público - ou essenciais ao combate às alterações climáticas. O poder político continua, em cidades como o Porto, mas não só, a entender que uma zona central de uma cidade, como a Rotunda da Boavista por exemplo, necessita de mais um centro comercial - o quarto em cerca de 500m de raio - e que para tal deve também ser recortada na cidade mais uma “via estruturante”. No nosso país, demora demasiado tempo para que o direito comum e ao espaço público se sobreponha ao da propriedade, mesmo que para recuperar infraestruturas ilegalmente destruídas e essenciais a uma cidade próxima e de cuidado, como o espaço de mercado da cidade e dos seus comerciantes, em Viana. Ou para proteção de Zonas Naturais, como na Caniçada no Gerês, na Costa Azul em Grândola. Também raramente vemos o poder público a reivindicar os seus terrenos expropriados por entidades privadas, como ocorreu a muito custo no caso Selminho e não ocorreu sequer no da Escarpa da Arrábida, para dar novamente um exemplo do Porto.

Simultaneamente, enquanto o espaço público e comum continua a ser capturado para mais valias, as cidades permanecem sem estruturas suficientes de cuidado na infância, na velhice e na dependência que garantam autonomia na diversidade. Ora, podiam  existir diretrizes territoriais e sociais para obrigar a coberturas de serviços e à limitação das mais valias, para definir um zoneamento inclusivo e misto, definir quotas de habitação pública a ser entregue aos municípios e tantas outras a que assistimos em cidades da Europa e do mundo.

Também as redes de cuidados domiciliários e o reconhecimento concreto do cuidado prestado por centenas de milhares de pessoas em base familiar ou de laços de amizade é ainda feita através de respostas simbólicas que não tomam em conta a urgência do mínimo de qualidade de vida a quem cuida e é cuidado. E a resposta passa ainda e tantas vezes pela institucionalização - quantas pessoas mais velhas são frequentemente canalizadas para instituições quando o seu contrato de arrendamento termina? 

Que fazer?

As alterações demográficas bem nos alertam: a política sensata passa por modelos que respondam a estas pessoas no seu quotidiano, retirando-lhes os entraves para que possam saudar vizinhas das varandas, conversar às janelas das cozinhas, sentar-se no corredor de passagem dos apartamentos, deslocar-se ao supermercado no seu próprio tempo e conforme as capacidades de deslocação e manter a sua vida em autocuidado e com a garantia do cuidado e segurança “dos olhos” da comunidade - ao invés de qualquer câmara de vigilância - e do espaço público desenhado à medida das suas necessidades.

Por outro lado, as cidades em Portugal ainda não largaram totalmente a política da privatização do solo e demolição da habitação pública. Ao invés de aprender com o que foi feito, para dar apenas dois exemplos, em Bordeaux no Bairro “Grand Parc” ou em Berlim no complexo habitacional cooperativo de “Nettelbeckplatz”, em Portugal ainda assistimos a processos como o da demolição  do bairro do Aleixo. Mais que desmontar estes bairros, a aposta social e ambiental atual deveria direcionar as  intervenções para a requalificação do espaço doméstico e o acrescento de espaço público. No caso do Porto, Rui Rio e Rui Moreira optaram pelo passado e por ceder a fundos de investimento financeirizados que não respondem pelo interesse público e que não construíram a habitação que demoliram.

Quando cada um trata da sua refeição, da sua louça, da sua deslocação - com várias casas com mais do que um carro - da “sua” criança, da “sua” pessoa dependente, multiplica-se o consumo de materiais de apoio, multiplicam-se deslocações em carros, multiplicam-se doenças e dependências. Só que a vida, a sua manutenção e reprodução têm outra perspetiva de eficiência que responde pela qualidade e comunidade. Essa resposta diminui até os gastos com saúde curativa e com infraestrutura, mas aumenta o investimento em saúde pública e em respostas sociais. Poderá também diminuir a catrefada de produção desnecessária à multiplicação de gadgets domésticos e as infindáveis deslocações de pessoas e cargas. Precisamos muito mais, por isso mesmo, de territórios que cuidam das pessoas, mas também do planeta e da vida. E se o cuidado começa precisamente nas nossas casas e nos nossos bairros, sabemos também que este não é um desafio individual, mas uma questão de políticas públicas para mudar os territórios em que vivemos.


Maria Manuel Rola é designer gráfica e ativista contra a precariedade. Deputada e dirigente nacional do Bloco de Esquerda.

Notas:
[1]  Zan, C.C. (2020), “Habitação Colaborativa: ensaio num lote da Rua de Dom João IV na cidade do Porto”. Faculdade de Arquitetura do Porto. Consultado em 27.12.2021.

[2] Muxi, Z. (2019), Mujeres, Casas y Ciudades. Más alla del umbral. dpr-barcelona

[3] Torre, S. (1981) Space as Matrix. Heresis, 11:51.

[4] Hayden, D. (1982) “The Grand Domestic Revolution”.  The MIT Press.

[5] Muxi, Z. (2019), “Mujeres, Casas y Ciudades. Más alla del umbral”. dpr-barcelona.

[6] Zan, C.C. (2020), Habitação Colaborativa: ensaio num lote da Rua de Dom João IV na cidade do Porto. Faculdade de Arquitetura do Porto. Consultado em 27.12.2021.

[7] Pisano, C. (2020). Strategies for Post-COVID Cities: An Insight to Paris En Commun and Milano 2020. Sustainability, 12(15), 5883. doi:10.3390/su12155883

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