O século XXI trouxe novos ares e novas esperanças à América Latina que tão maltratada fora no final do século anterior. Os golpes de Estado que marcaram com um banho de sangue muitos dos mais importantes países deram lugar a novos governos genericamente apelidados de “progressistas”, que assumiram o poder através de vitórias eleitorais, reflexo, de uma forma mais ou menos direta, de lutas e movimentos sociais vitoriosos. Os governos de Lula e do Partido dos Trabalhadores, no Brasil, do casal Kirchner na Argentina, a Revolução Bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela, os governos de Evo Morales na Bolívia e a Revolução Cidadã de Rafael Correa no Equador marcaram o “núcleo duro” do “progressismo” no continente sul-americano. Apesar das diferenças entre eles, estes governos apareceram como uma alternativa ao neoliberalismo hegemónico nos anos anteriores e despertaram grandes esperanças entre os povos do continente, e na esquerda mundial, de que a América Latina deixaria de ser o quintal dos Estados Unidos e poderia encontrar um caminho alternativo, para beneficio dos seus povos.
A derrota eleitoral de Cristina Kirchner para Maurício Macri, um defensor da linha dura do neoliberalismo argentino, e o afastamento através de um golpe parlamentar de Dilma Rousseff no Brasil, em agosto de 2016, associados com as mudanças de rumo praticadas por Maduro, Morales, Rafael Correa e seu sucessor, Lenin Moreno, levantaram a questão do fim deste ciclo político do “progressismo”. Em julho deste ano, as eleições no México mostraram, porém, a emergência de um progressismo”, provavelmente tardio, com a vitória de Lopes Obrador no México, um governo de centro-esquerda inédito no país. Por outro lado, na Nicarágua, o governo de Daniel Ortega mostrou de uma forma grotesca como o dirigente de uma revolução vitoriosa no final dos anos 70 podia degenerar ao ponto de se tornar num ditador assassino do seu próprio povo.
O objetivo desta apresentação é discutir o balanço destes governos “progressistas”, de forma a procurar retirar as lições que ajudem a esquerda nestes tempos perigosos em que o dono do “quintal” é o sr. Trump. Esta discussão, por uma questão de tempo, irá centrar-se nos processos da Venezuela, Bolívia e Equador, onde os governos citados se mantêm no poder e são os mais paradigmáticos.
Temas para discussão:
-
- Os governos “progressistas” implementaram pequenas reformas que trouxeram benefícios aos mais pobres durante o período da alta dos preços do petróleo e das commodities; mas não aproveitaram estes tempos de folga económica para implantar outro modelo de desenvolvimento; em vez disso, mantiveram e aprofundaram o extrativismo como política económica. Desta forma, mantiveram e aprofundaram o seu papel dependente, de meros fornecedores de matérias-primas, à escala internacional.
-
- As suas vitórias eleitorais foram reflexo de lutas e movimentos sociais organizados. Mas após a formação dos governos, estes movimentos ou definharam, cooptados pelo aparelho de Estado, ou entraram em choque com os próprios governos que apoiavam.
-
- As divergências e os choques com as elites que governavam anteriormente, quando existiram, deram origem ao surgimento de novos estratos sociais privilegiados através do favorecimento do Estado, como a “boliburguesia” na Venezuela e a burguesia emergente na Bolívia.
-
- Durante estas primeiras décadas do século XXI, os Estados Unidos mantiveram-se atentos e atuaram sempre que surgiu uma oportunidade de apoiar ações mais efetivas, como o golpe de Estado contra Chávez em 2002; de um modo geral, pressionaram no terreno económico para impedir veleidades anti-imperialistas. Mas as esperadas pressões e intromissões do Tio Sam não podem servir de cortina de fumo para desculpar os fracassos dos “progressismos”.
-
- Quando terminou a conjuntura económica favorável, a retórica anti-imperialista dos “progressistas” foi substituída pelo pagamento atempado da dívida externa, aplicação de uma política de austeridade (caso Venezuela) e reforço do extrativismo. Até um país que fizera a auditoria da sua dívida, como o Equador, concluindo que uma parte era injusta, chamou o FMI de volta ao país.
-
- O caráter populista dos partidos que sustentam os progressismos levou, nos casos mais extremos, à eternização dos seus líderes: o populismo precisa de caudilhos. Maduro só sucedeu a Hugo Chávez devido ao falecimento deste. Mas já obteve as alterações legislativas necessárias para que o seu mandato não tenha limites. Evo Morales perdeu o plebiscito de 2016 em que propunha alterar a Constituição para revogar o limite de dois mandatos sucessivos; mas o Tribunal Constitucional revogou estes limites em 2017, abrindo o caminho para uma candidatura a um quarto mandato em 2019. Rafael Correa cedeu o lugar a Lenin Moreno, mas o plano era uma espécie de acordo Putin-Medvedev: depois do primeiro mandato de Lenin Moreno, Correa voltaria triunfal. Mas o plano aparentemente fracassou porque o atual mandatário mudou de ideias.
-
- Diante das dificuldades económicas e o crescimento da oposição, os governos “progressistas” reagiram de forma antidemocrática, com repressão contra movimentos que os haviam apoiado, ou mesmo, no caso da Venezuela, com recurso a golpes palacianos como foi a famosa Constituinte de Maduro, que serviu para acabar com a Assembleia Nacional maioritariamente de oposição e se transformou num supragoverno que parece preocupado com tudo menos com o cumprimento do seu suposto papel: escrever uma nova Constituição.
Algumas leituras sugeridas:
Entrevista a Miriam Lang y Edgardo Lander
América Latina: ¿fin de una edad de oro?
23/01/2018 | Franck Gaudichaud
América Latina. Entrevista a Franck Gaudichaud
Entre el reflujo de los progresismos y experiencias alternativas
04/04/2017 | Michèle Kiintz
Algunas reflexiones, autocríticas y propuestas sobre el proceso de cambio en Bolivia
25/02/2016 Pablo Solón
La nueva disputa por el poder en Ecuador
Sin Permiso, Décio Machado, 19/8/2018